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Die Ehe der Maria Braun – O Casamento de Maria Braun


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Um dos grandes clássicos do cinema alemão, Die Ehe der Maria Braun mostra o cineasta Rainer Werner Fassbinder em sua melhor forma. Ambientado no período da Segunda Guerra Mundial, o filme mostra o que uma mulher, naquela época, precisava fazer para sobreviver. Hanna Schygulla, musa do cineasta, estrela de Lili Marleen, entre outras produções, revela aqui parte de seu potencial. (Detalhe: comentei recentemente no blog um dos últimos filmes da atriz, o ótimo Auf der Anderen Seite). Ela literalmente vai de 8 a 80 na história de Maria Braun, uma mulher apaixonada que acaba virando o protótipo de mulher moderna calculista e ambiciosa por contingência do destino. Com uma direção cuidadosa e com a câmera implantada entre as pessoas – especialmente os figurantes -, Fassbinder nos aproxima de uma realidade pouco contada pelo cinema: dos que sofreram com a guerra pelo lado alemão.

A HISTÓRIA: Maria (Hanna Schygulla) se casa com Hermann Braun (Klaus Löwitsch) em um dia comum na Alemanha, em meio a bombardeios provocados pela Segunda Guerra Mundial iniciada por aquele país. Corta a narrativa. A cena seguinte é a da mãe (Gisela Uhlen) de Maria molhando pedaços de pães envelhecidos para conseguir devorá-los. A época é de pobreza, de falta de comida, e Maria volta para casa depois de passar adiante o seu vestido de noiva e conseguir, em troca, alguma comida para a família. Além de lutar pela sobrevivência, ela também não desiste de buscar o marido, desaparecido pouco depois do casamento. Diariamente ela ruma para a estação de trem da cidade com um cartaz no qual pergunta se alguém conhece a Hermann Braun. Sem uma resposta positiva para sua pergunta, ela busca um emprego e, através dele, descobre os caminhos para conseguir melhorar a sua vida e de seus familiares – e neste caminho está incluído o relacionamento com outros homens.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a assistir quem já assistiu a Die Ehe der Maria Braun): Como qualquer filme já produzido, Die Ehe der Maria Braun deve ser visto de forma contextualizada. Parte de uma trilogia do diretor sobre diferentes trajetórias femininas, ele foi lançado em 1979, um ano sem grandes marcos na história alemã, mas que finalizou uma década bastante produtiva para o polêmico Fassbinder. Versátil como poucos cineastas de sua – ou de outras gerações -, ele mostrou de forma assustadora, para o crítico Joe Ruffell, do site Senses of Cinema, a realidade de uma sociedade “que permite que o materialismo se torne mais importante do que os seus habitantes”.

Die Ehe der Maria Braun é um bom exemplo desta visão crítica de Fassbinder que, de uma maneira muito peculiar, trouxe as influências do cinema “sentimental” de Hollywood para o cenário alemão, criando uma obra inovadora. A história de Maria e Hermann Braun, seus encontros e desencontros e a insistência um tanto mecânica de ambos em manter um relacionamento – existia mesmo amor, no fim das contas? – mostra um bocado da Alemanha que surgiu durante e depois da segunda grande guerra mundial. Os sentimentos, naquele contexto, pareciam ser apenas agregados de um cotidiano em que outros valores (como o dinheiro, o poder e a sobrevivência) contavam muito mais. Uma sociedade materialista, como foi citado anteriormente. 

Outro elemento que chama muito a atenção neste filme é o da noção de “comprometimento” das pessoas umas com as outras. Mais que uma relação de afeto, muitos dos personagens parecem nutrir, uns pelos outros, mais um sentimento de obrigação. Além disso, podemos questionar o amor que unia o casal Braun… no fim das contas, Hermann abre mão de ficar com a mulher para conseguir, como ela, dinheiro para sustentá-los. Uma questão de orgulho, está claro. Algo curioso para um homem que não se importava com as traições da mulher – talvez porque se sentisse um pouco responsável pela vida “degradante” que ela acabou assumindo depois que ele sumiu do mapa.

Enfim, o filme trata tão bem de questões pessoais como a traição, a fidelidade, a culpa e o afeto quanto dos dilemas morais de uma Alemanha próxima de se encontrar com sua própria decadência – e ressurgimento.  Além da direção cuidadosa de Fassbinder, merecem aplausos o roteiro com tintas de realismo “nu e cru” do próprio diretor com Pea Fröhlich e Peter Märthesheimer. Para quem gostou da direção de fotografia, ela é obra do excelente Michael Ballhaus. A trilha sonora, importante para a história, é de autoria de Peer Raben. A edição, de Fassbinder – que utiliza o pseudônimo de Franz Walsch, em homenagem a um de seus ídolos, Raoul Walsh – e Juliane Lorenz (com quem o diretor foi casado).

E ainda que Die Ehe der Maria Braun não toque no “polêmico” tema dos casais homossexuais, ele aborda outras questões espinhosas – especialmente para a sociedade alemã. Como, por exemplo, o envolvimento da mulher de um soldado alemão desaparecido na guerra – e tido como morto – com um soldado norteamericano e, pior, negro. Todos sabem que muitos alemães tem um verdadeiro preconceito racial contra negros – algo que acabou sendo bastante diluído com o passar do tempo. Mas a questão racial está em jogo neste filme, ainda que de forma indireta. Assim como a “liberação sexual” de pessoas mais velhas, como é o caso da mãe de Maria que, no mesmo passo em que a filha vai se tornando uma figura importante e que consegue colocar mais dinheiro em casa, consegue também um namorado – depois de muitos anos sem um parceiro. O foco do diretor não é nem a questão racial e nem a da liberação sexual, mas estes temas também fazem parte desta obra. 

NOTA: 9,7.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Para Rafael Morata Cantón, do site “Rainer Werner Fassbinder, el genio alemán” (o qual eu recomendo), Die Ehe der Maria Braun seria a terceira produção do cineasta dentro de uma corrente de “identidade e história” da Alemanha. Segundo Cantón, as filmagens de Die Ehe der Maria Braun foram realizadas nos primeiros meses de 1978, quando o diretor já se encontrava “imerso” na preparação de um projeto ambicioso, a série para a TV Berlin Alexanderplatz, um projeto com 15 horas e meia de duração. 

Pelo texto de Cantón, a história de Maria Braun começa em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, e termina em 1954, com a cena filmada na casa da protagonista depois da morte de Karl Oswald (Ivan Desny, ótimo ator). Hermann se casa com Maria sabendo que teria que retornar logo em seguida para a frente da batalha. O corte na história nos mostra a realidade dela e de sua família logo após o fim da guerra. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme ainda). Quando Hermann sai da prisão, depois de se declarar culpado de um crime para livrar a esposa, ele viaja para o Canadá, cumprindo um contrato que havia estabelecido com Oswald na prisão – não era isso que eu tinha entendido quando assisti ao filme, para ser franca, mas agora a história (especialmente o final) faz muito mais sentido. 

Como bem define Cantón, esta história se mostra uma parábola do Milagre Econômico Alemão, ocorrido após o fim da guerra. Esta nação no pós-guerra “aparece tranvestida em uma mulher livre, inteligente e poderosa que, no final, é superada em suas estratégias porque não foi mais que um objeto de troca entre dois homens, uma transação mais neste mundo feito para o negócio e a especulação e não para o amor”. Ótima análise. Na época, Fassbinder comentou que o que aparentemente parecia ser um filme que “falava a favor da instituição do casamento” se mostra, na verdade, uma história de quanto ódio, hipocrisia e destruição existe na vida conjugal. Uma bela síntese, eu diria. Complementada pela seguinte declaração de princípios do diretor: “Eu quero que a audiência rompa com seus rituais (do casamento) e ponha ponta final ao estilo de vida burguês”.

Uma interessante declaração do homem que ficou conhecido por seus dois casamentos – com mulheres – e por seus diversos amantes (homens). O tema da homossexualidade, aliás, foi tratado pelo cineasta em vários de seus filmes – normalmente em segundo plano, com casais gays como coadjuvantes, até que filmou Querelle, em 1982, um marco por colocar o tema no primeiro plano. Nascido na cidade de Bad Wörishofen, na Bavária, no dia 31 de maio de 1945, ele viria a morrer aos 37 anos depois de uma overdose de cocaína e da ingestão de pílulas para dormir. Mesmo morrendo tão jovem, ele deixou um legado de 44 produções finalizadas em 16 anos – segundo o IMDb. Na sua época, ele declarava que “podia dormir quando estivesse morto” – uma frase repetida mundo afora sem que seja conhecida, muitas vezes, sua real autoria. 

Para muitos, Die Ehe der Maria Braun acabou se tornando o filme de Fassbinder que teve maior êxito (pelo menos internacional, já que na Alemanha muitos torceram o nariz pelo retrato mordaz que o diretor estampou em película de seu país no pós-guerra). Além do reconhecimento do público, através das bilheterias, a produção foi merecedora de 12 prêmios e de duas nominações – incluindo um Globo de Ouro. Entre os prêmios que levou para casa, se destaca o de Melhor Atriz para Hanna Schygulla no Festival de Berlin e o de Melhor Filme Estrangeiro conferido pelo Círculo de Críticos de Cinema de Londres. Com a morte do diretor, os críticos consideraram que o Novo Cinema Alemão, do qual ele era figura central, havia também morrido.

Die Ehe der Maria Braun recebeu a nota 7,8 pelos usuários do site IMDb. Os críticos que tem textos publicados no Rotten Tomatoes, por sua vez, dedicaram 13 críticas positivas e apenas uma negativa para o filme – o que lhe rende uma aprovação de 93%.

Para quem gostou das “paisagens” que o filme mostra – ele tem poucas cenas externas, na verdade -, vale citar que esta produção foi rodada em Berlim e na cidade de Coburg, na Bavária.

Achei curioso que o final do filme realmente reproduz, em sete minutos, o final da Copa do Mundo que garantiu, para a Alemanha, o título de campeã. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme ainda). No site de Cantón, ele analiza este final trágico e apoteótico ao mesmo tempo como uma ironia entre a “vida privada que se destrói e a pública que dá gritos de júbilo pela vitória”, no que ele considera como a evidência da visão do diretor de que estava ocorrendo o “fim de uma utopia íntima que se transforma em cinzas e escombros frente a arrogância de uma nação que celebra o lema de ‘voltamos a ser alguém'”.

Para quem quiser saber mais sobre Fassbinder, indico esta matéria do site do jornal Deutsche Welle; este texto do site CinePlayers; o ótimo trabalho de Rafael Morata Cantón com o site “Rainer Werner Fassbinder, el genio alemán” (em espanhol); este texto muito bom do site Senses of Cinema (em inglês) e este artigo da Wikipédia.

E um comentário sobre a nota que dei para o filme: não dei um valor maior por algo simples… acho que o filme acabou perdendo parte da sua força com o passar do tempo. Ainda que continue sendo um grande filme, mesmo 30 anos depois de ter sido lançado, acredito que ele tenha “envelhecido” um pouco especialmente por sua edição – e algumas partes da dinâmica do roteiro. Ainda assim, por se tratar de uma peça importante da obra de quem ele é fruto, merece todo o respeito e a nota acima.

Além dos atores principais já citados, vale comentar as atuações de Elisabeth Trissenaar como Betti Klenze, amiga de infância de Maria; Gottfried John como Willi Klenze, marido de Betti e soldado que vai para a guerra e volta dela antes de Hermann; Hark Bohm como Senkenberg, braço direito e homem de confiança de Karl Oswald; George Eagles como Bill, o militar estadunidense que cai nos encantos de Maria quando ela trabalhava em um bar da cidade em que eles viviam; Claus Holm como o doutor que acompanha Maria em suas desventuras; Anton Schiersner como o “avô” Berger; e Günter Lamprecht como Hans Wetzel. 

No geral, todos os atores estão muito bem, mas fiquei impressionada, em especial, pelo desempenho das atrizes Hanna Schygulla e Gisela Uhlen, que fazem um trabalho muito técnico e, ao mesmo tempo, inspirado. O ator Ivan Desny também se sobresai.

Ui, esqueci de comentar antes… Die Ehe der Maria Braun é seguido de outros dois filmes da trilogia sobre a Alemanha do pós-guerra: Lola, de 1981, e Die Sehnsucht der Veronika Voss, de 1982. 

CONCLUSÃO: Um marco do chamado Novo Cinema Alemão, se trata de uma das obras-primas do premiado cineasta Rainer Werner Fassbinder. Com roteiro e edição do próprio diretor, o filme é um belo documento crítico da Alemanha nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial e, principalmente, da fase seguinte vivida coletivamente pelos alemães – em busca de uma ascensão econômica forte que, em muitos sentidos, desprezava as relações pessoais entre os indivíduos. Colocando a câmera sempre próxima dos atores, Fassbinder valoriza as interpretações e o ritmo da narrativa, se ausentando da posição de testemunha “ocular” da história apenas quando chega o derradeiro final – o que pode demonstrar, apenas, sua vontade de voltar as costas para o que vemos na tela, uma forma de desprezo pela falta de sentimentos em cena. Inovador dos créditos iniciais até os que encerram esta história, Fassbinder demonstra – através de seu filme e de sua vida – uma vontade imensa de ir contra os discursos vigentes de sua época, conclamando as pessoas a viverem o seu tempo de maneira crítica e inconformada. 

SUGESTÕES DE LEITORES: Desde que a Alemanha ganhou na votação do blog que decidiu os próximos filmes que eu comentaria por aqui, penso em que filme assistir do tão comentado diretor Rainer Werner Fassbinder. Ao lado de Wim Wenders e Werner Herzog, este cineasta é apontado como um dos principais responsáveis pela divulgação do cinema alemão no mercado internacional. E mesmo admitindo que faltam muitas produções suas para assistir ainda, ouso dizer que ele chegou a este posto por seus méritos e talento. Um grande nome a ser descoberto por mim em sua plenitude ainda – tarefa que vou deixar para o futuro deste blog. 😉

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 25 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing, professora universitária (cursos de graduação e pós-graduação) e, atualmente, atuo como empreendedora após criar a minha própria empresa na área da comunicação.

4 respostas em “Die Ehe der Maria Braun – O Casamento de Maria Braun”

Oi Alessandra! Que bom que você gostou do filme! Eu o assisti há muitos anos, mas lembro que me impressionou bastante.
Parabéns pela crítica.

Um abraço,

Leandro Soares

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Oi Leandro!!

Gostei do filme sim… imagino que ele não seja o mais polêmico deste diretor prolífico, mas ainda assim é um clássico. Talvez eu até tenha assistido a algum outro filme do Fassbinder, mas não me lembro… mas o que posso dizer é que ele me pareceu um autor muito, mas muito interessante mesmo.

Obrigada por tua visita e pelo teu comentário. Fico feliz que tenhas gostado do texto.

Um grande abraço!

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Crítica, antes de mais nada, esclarecedora.
Confesso que apesar de ter gostado muito do filme, em especial por ter como pano de fundo a Alemanha pós-guerra, fiquei meio perdido (e algumas coisas não ficaram muito claras pra mim) justamente por não fazer a contextualização adequada, se assim posso dizer.
Portanto, só tenho a agradecer pela crítica que “me norteou” no entendimento do mesmo.

Ótimo texto, excelente blog! Passarei a ser um visitante assíduo.

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Olá Fernando!!

Puxa, muito obrigada por teus elogios. Fico especialmente feliz quando os textos ajudam as pessoas que assistiram aos filmes a entenderem melhor o que aconteceu ali, naqueles minutos de projeção. Bacana que meu texto te ajudou nesse sentido.

Filmes como Die Ehe der Maria Braun – e o que eu comentei ontem aqui no blog, Der Baader Meinhof Komplex – são muito complexos para se “autoexplicarem”, por assim dizer. Por isso é importante que as pessoas busquem mais informações depois de assistirem a determinada história – o que você fez. Sempre acho que o cinema é uma forma de arte e que, como tal, está imersa em uma série de outros contextos (políticos, econômicos, sociais, etcétera). Mesmo este texto sobre o filme, se formos analisar friamente, está incompleto. Mas se ele servir como uma das fontes de informação, fico feliz.

Espero que venhas por estas “bandas” muitas vezes ainda. Quero que te sintas bem-vindo sempre. Como podes perceber, eu respondo todos os comentários – ainda que demore, algumas vezes, para fazer isso.

Um grande abraço, Fernando, volte sempre e que assistas a bons filmes!!

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