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Der Amerikanische Freund – O Amigo Americano


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É impossível falar do cinema alemão sem citar alguns diretores. Wim Wenders é um destes nomes obrigatórios. Demorei um pouco para falar dele nesta sequência de filmes alemães porque eu já havia assistido algumas de suas obras-primas. Vale citar (e recomendar): Paris, Texas (de 1984), Der Himmel über Berlin (1987), In Weiter Ferne, So Nah! (1993), entre outras produções. Então fui atrás de algum filme mais antigo do diretor ao qual eu não tivesse assistido. E dei de cara com esta preciosidade chamada Der Amerikanische Freund, com dois atores soberbos – e bastante jovens: Dennis Hopper e Bruno Ganz. Só para citar os protagonistas, porque há outros atores fantásticos nesta história de ambição, intriga, assassinatos e uma dose de humanidade comum no cinema europeu, mas bastante ausente naquele que é feito em Hollywood. Uma bela peça de cinema, sem dúvida.

A HISTÓRIA: Tom Ripley (Dennis Hopper) é um negociante de obras de arte que nunca aparece. Ele faz a ponte entre artistas como Derwatt (o ótimo diretor Nicholas Ray) e os leiloeiros que estão ganhando alto com os estrangeiros que começam a viver com a especulação da arte. Sem uma profissão que pode ser definida, Ripley é considerado um bon vivant neurótico, que vive sozinho em uma mansão e que tem como amigos pessoas perigosas como Raoul Minot (o francês Gérard Blain). Apresentado por casualidade ao artesão Jonathan Zimmermann (Bruno Ganz) após um leilão, Tom vê em seu novo “amigo” a pessoa ideal para assumir, em seu lugar, o papel de assassino.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Der Amerikanische Freund): Uma das grandes qualidades do diretor Wim Wenders é a sua percepção para os detalhes da história e, principalmente, pelos efeitos da dualidade humana. Em seus filmes, dificilmente, encontramos como óbvios os papéis de “bandidos” e “mocinhos”. O mais comum é nos depararmos com personagens que vivem sobre a linha que separa os conceitos de bem e mal, algumas vezes parecendo uma coisa, outras vezes, o oposto. A fragilidade e os dilemas humanos, com especial atenção para o nosso carácter de “sermos capazes de quase tudo”, está presente em muitas de suas obras. E nesta, Der Amerikanische Freund, essas características do diretor ficam ainda mais evidentes.

Apenas quase no final do filme, quando é citado o nome completo do personagem de Dennis Hopper, é que eu fiquei com uma pulga atrás da orelha. Seria o personagem de Der Amerikanische Freund o mesmo vivido por Matt Damon em The Talented Mr. Ripley? Mas não pode ser… afinal, eles são tão diferentes! Mas é claro, eles são – e não são, ao mesmo tempo – os mesmos. Me explico: Tom Ripley é uma criação da escritora Patricia Highsmith, uma estadunidense morta em 1995 que ficou conhecida por “reinventar” o gênero de ficção criminal, como define este artigo. Ripley foi o protagonista de cinco livros da escritora – logo, ele poderia assumir “personalidades” muito diferentes, dependendo de que livro foi adaptado para o cinema e, claro, das intenções do roteirista que o adaptou. No caso de Der Amerikanische Freund, Wim Wenders deu um toque todo especial no personagem – como o chapéu de “cowboy” que até vira motivo de piada entre Ripley e Derwatt.

Esclarecido que sim, o personagem de Dennis Hopper é o mesmo de Matt Damon, mas baseado em outra obra da escritora, vamos ao que interessa deste filme de Wim Wenders: a manipulação das pessoas e os dilemas morais que cercam qualquer um de seus personagens. Do “invisível” Tom Ripley até o pintor Derwatt, do comum Jonathan Zimmermann até a sua esposa Marianne (Lisa Kreuzer), todos passam por dilemas morais e acabam sucumbindo ao lado “obscuro” de suas personalidades. Derwatt e Marianne se esforçam para ignorar de que forma suas vidas estão sendo usadas de forma maléfica por outras pessoas. Ripley age como um “diretor invisível” ou um titeteiro que manipula sua marionete Jonathan Zimmermann. O manipulado, por sua vez, sucumbe com uma certa facilidade à manipulação graças a sua própria cobiça – ainda que revestida de medo e altruísmo, (SPOILER – não leia se você ainda não viu ao filme) na busca por deixar uma vida melhor para sua família já que ele passa a acreditar que pode morrer em breve.

O roteiro escrito por Wim Wenders, livremente adaptado do terceiro livro de Patricia Highsmith sobre Tom Ripley, tem várias surpresas pelo caminho. Eu diria que pelo menos duas grandes surpresas e/ou reviravoltas: a primeira, quando Ripley “suja suas mãos” para ajudar (?) Jonathan no segundo assassinato de sua “carreira”; a segunda, o próprio final.

(SPOILER – não leia se você não viu ao filme, porque vou estragar as surpresas). Depois de ser vítima de uma “grosseria” de Jonathan quando foi apresentado a ele, Ripley fica sabendo que o antigo restaurador de obras de arte sofre de uma doença grave e sem cura – que, mesmo sem ser nominada, se trata de leucemia (ainda que, atualmente, poderia ser a AIDS, por exemplo). E quando é pressionado por um gângster ao qual deve favores, que sugere que ele execute um ou dois alvos, Tom não pensa duas vezes e entrega de bandeja o “desafeto” que não agiu como um cavalheiro com ele. Por isso mesmo é tão surpreendente quando ele resolve ajudar Jonathan no segundo crime, no trem – há quem diga que Ripley estivesse apenas com “saudade” de colocar, ele mesmo, a mão na massa. Depois, o final… quando Jonathan resolve dar um “chapéu” no “amigo” – que, como sempre, se safa mais uma vez. E o final depois daquela cena marcante na praia, é ainda mais impressionante. No filme de Wim Wenders e nas histórias de Tom Ripley não adianta torcer para o “mocinho” ou contra o bandido, porque escapa quem deve escapar. (O mais forte e/ou o mais preparado, segundo a lei da sobrevivência?)

Além de uma história interessantíssima, com boas reviravoltas e surpresas, o filme apresenta uma direção e um roteiro no melhor estilo de Wim Wenders, com seus típicos momentos de “introspecção” da narrativa intercalados com um estilo de ação bastante direta. Em outras palavras, se vemos sequências de puro “suspense hitchcockiano”, como aquelas cenas nas estações de metrô parisienses, também presenciamos momentos de pura reflexão e contemplação dos personagens, especialmente de Jonathan (em mais de uma sequência em sua casa, contemplando a paisagem exterior do apartamento e a vida que mantinha com a família, a mulher e o filho) e de Tom (seus momentos de solidão um tanto incômoda em sua mansão sem mais habitantes). A verdade é que este trabalho do diretor/roteirista acaba aproximando os personagens de Tom e Jonathan, divididos entre o que parece ser suas vidas “oficiais”, aparentes, públicas, e suas vidas particulares, repletas de dilemas e de um sofrimento que não pode ser compartilhado. 

Der Amerikanische Freund é, por tudo isso, uma interessantíssima história sobre uma “amizade” inusitada, cercada por interesses e por uma proximidade de vivências que seria difícil de ser percebida por alguém que conhecesse os personagens diretamente – afinal, ninguém parece ser mais diferente do que o refinado Tom Ripley e o simplório homem de família Jonathan Zimmermann. Mas além do roteiro, o filme apresenta uma direção de fotografia, assinada por Robby Müller, muito interessante e que destaca uma Alemanha um tanto “decadente” e, ao mesmo tempo, bela em seu lado “sujo”. Paris, por sua vez, é vista com um filtro muito mais “progressista” e desenvolvido – uma autocrítica dos autores que pode não ser tão evidente, mas que está ali. Gostei muito também da trilha sonora de Jürgen Knieper, que faz um trabalho importante de marcação da história – e mesmo separada do filme, imagino que a trilha seja bacana de apreciar.

NOTA: 9,5.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Para quem quiser saber mais sobre o personagem de Tom Ripley, criado pela escritora Patricia Highsmith, recomendo este comentário e, especialmente, este artigo do New York Times em que consta a informação de que ele estaria próximo de completar 80 anos – se fosse real, é claro.

O filme de Wenders seria uma adaptação da obra Ripley’s Game, publicada em 1974. Em uma entrevista para a TV britânica nos anos 80, a criadora do personagem Tom Ripley reprovou a interpretação de Dennis Hopper em Der Amerikanische Freund – ela disse preferir a de Alain Delon, que interpretou o personagem em 1960 no filme Plein Soleil. Depois de procurar bastante, achei esta crítica (em inglês) que faz um bom resumo do que é a obra original adaptada por Wenders.

O filme propriamente dito talvez merecesse a nota 10. Mas, para ser franca, não gostei de alguns detalhes da adaptação de Wim Wenders. Certo que qualquer “leitura” de um romance e sua adaptação para o cinema não precisa ser fiel ao original, mas achei exagerada pelo menos uma grande mudança nesta história. Tudo certo na escolha do diretor em levar a narrativa do livro de Patricia Highsmith da França para a Alemanha. Nenhum grande problema também na diferença da caracterização de Tom Ripley, que seria um homem muito mais refinado do que aquele que vemos encarnado por Dennis Hopper. O problema mesmo está, para o meu gosto, no fato de que Ripley virou um homem solitário e um tanto paranóico no filme de Wenders, muito diferente do homem que está casado e vive paparicado por uma empregada, segundo o romance de Highsmith. Achei que a “adaptação” de Wenders procura tornar Tom Ripley mais “vulnerável” e até objeto de pena, algo que era desnecessário.

Além da participação do importante diretor de cinema Nicholas Ray no papel do pintor Derwatt, existem outras duas pontas curiosas neste filme. A primeira, do também ótimo diretor Samuel Fuller como o Gângster Americano que vira um dos alvos de Jonathan; e a segunda do próprio Wim Wenders, como a “figura cheia de curativos” que está na ambulância pouco antes do final do filme. Ou seja: três grandes diretores de cinema fizeram a festa neste Der Amerikanische Freund.

Lançado em 1977, o filme recebeu, em sua época, quatro prêmios e foi indicado a outros dois – incluindo, entre as indicações, a Palma de Ouro em Cannes e o César de Melhor Filme Estrangeiro. Mas o que conta mesmo são os prêmios que ele recebeu… o prêmio de “melhor performance estrangeira” para Bruno Ganz no Sant Jordi Awards e três prêmios – incluindo direção e edição – no German Film Awards. 

Os usuários do site IMDb conferiram a nota 7,2 para o filme – acho que nem preciso dizer que achei ela muito, mas muito baixa, não é mesmo? Por sua vez, os críticos que tem textos publicados no site Rotten Tomatoes dedicaram 15 críticas positivas e duas negativas para a produção, o que lhe garantiu uma aprovação de 88% – um bocado melhor que o IMDb.

Para quem gostou das locações do filme, vale citar que ele foi rodado em Hamburgo e em Munique, na Alemanha; em Paris, na França; e também em Nova York. 

E não sei vocês, mas eu fiquei muito satisfeita em ver a Bruno Ganz dando o show de interpretação que ele dá. E Dennis Hopper também… em um de seus grandes trabalhos na vida, acredito.

Um ponto que eu já ia me esquecendo: o caráter curioso da figura do “estrangeiro” nesta história. Afinal, Tom Ripley está na Alemanha, mas se comunica mal no idioma de Goethe. Jonathan, por sua vez, viaja para Paris sem saber comunicar-se em francês. A impressão que estes personagens – entre outros no filme – nos dão é que um estrangeiro, deslocado de sua terra natal, parece ser capaz de atos que não teria se estivesse em solo conhecido. Para alguns, esta é uma crítica do autor (ou seria dos autores, incluindo Highsmith?) ao que os estrangeiros fizeram em sua Alemanha natal. Pode até ser. Mas o fato é que esta “coragem” que toma conta da pessoa deslocada territorialmente pode ser realmente um fenômeno real – e bastante compreensível, afinal, o indivíduo vive uma falsa ilusão de que ninguém o conhece e que, assim, ele está livre de julgamentos.

CONCLUSÃO: Uma das obra-primas do respeitado e talentoso diretor Wim Wenders, que faz aqui uma adaptação bastante livre de um dos livros da escritora estadunidense Patricia Highsmith – conhecida por sua obra de ficção criminal. Anterior a clássicos como Paris, Texas e Der Himmel über Berlin, Der Amerikanische Freund trata de diversos dilemas morais, da figura “invisível” de um homem que manipula outros para conseguir seus objetivos e da conivência de algumas pessoas para que ele consiga os seus fins. Um grande trabalho do então jovem ator Bruno Ganz – conhecido recentemente pelo magistral trabalho como Hitler em Der Untergang. Na verdade, o filme todo está cercado por grandes atores, assim como por uma direção de fotografia inspirada e cuidadosa e por uma trilha sonora exemplar. Bastante recomendado.

SUGESTÕES DE LEITORES: Este filme faz parte de uma série de produções alemãs que estou assistindo motivada pelo resultado da primeira enquete feita neste blog, que foi encerrada em fevereiro. A Alemanha foi o país campeão na votação dos leitores, e por isto estou assistindo uma série de filmes originados daquele país – seja a produção inteira feita lá, ou pelo menos o seu diretor tendo origem germânica.

Como falei no início deste texto, Wim Wenders tem uma série de filmes de primeiríssima qualidade no currículo. Para mim – e para quase todos -, ele é um nome impossível de evitar quando se fala do cinema alemão. Além dos filmes aqui citados – já assisti a todos, por isso os recomendo -, nunca é demais continuar acompanhando este diretor, que há algum tempo já vêm se dividindo entre produzir filmes na Alemanha, França (e algum outro país europeu) e Estados Unidos. Agora falta menos para terminar a minha lista de filmes alemães… 😉

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 25 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing, professora universitária (cursos de graduação e pós-graduação) e, atualmente, atuo como empreendedora após criar a minha própria empresa na área da comunicação.

3 respostas em “Der Amerikanische Freund – O Amigo Americano”

Seus textos sempre servem de apoio para uma maior compreensão dos filmes. O que dizer de “Der Amerikanische Freund”? Soberbo! Me encantou tanto que dou nota 10!

Só um adendo: existe outro filme adaptado desta mesma obra de Patricia Highsmith. Se chama “Ripley’s Game” (e aqui no Brasil recebeu o título de “O Retorno do Talentoso Ripley”, obviamente, para atrair os fãs do filme com Matt Damon), dirigido por Liliana Cavani e com John Malkovich no papel de Tom Ripley. Apesar de ser um filme regular, ao meu ver, não chega nem perto da obra magistral de Wenders.

Por fim, parabéns pelo texto. Maravilhoso!

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Oi Fernando!

Puxa, fico feliz que você goste dos textos e ache que eles contribuem de alguma forma. Bacana.

Bem observado. O livro da Patricia Highsmith que inspirou Der Amerikanische Freund é o mesmo que acabou rendendo o mais popular The Talented Mr. Ripley, com Matt Damon. Importante observar, contudo, que outros dois filmes, posteriores, se inspiraram também no personagem de Tom Ripley: Ripley’s Game, com John Malkovich; e Ripley Under Ground, com o menos conhecido Barry Pepper.

Não assisti a todos, mas comparando apenas Der Amerikanische e o filme com o Damon, sem dúvida prefiro o primeiro. Muito mais denso e com atores mais afinados. Como disseste, magistral.

Obrigada por tua visita e pelo teu comentário. Incentivos como o teu me fazem continuar. 😉

Abraços e volte sempre!

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