Categorias
Cinema Cinema europeu Crítica de filme Filme premiado Movie Oscar 2010

Un Prophète – A Prophet – O Profeta


unprophete1

Um homem é definido por suas circunstâncias. Mas não apenas por elas. Un Prophète abre a temporada de críticas das produções que disputam uma vaga na categoria de melhor filme estrangeiro do Oscar 2010 com maestria. Perfeito em cada detalhe, especialmente em seu roteiro, direção e no trabalho de seus atores, o representante francês para uma vaga no próximo Oscar mereceu os prêmios recebidos até agora – e os que virão. Un Prophète é um filme potente e possivelmente um dos mais realistas sobre a escola do crime chamada cadeia. Mas paralelo a esse tema, acaba ganhando protagonismo na história conceitos como perseverança, honra, conflitos raciais e de minorias, marginalização social, luta pela sobrevivência, entre tantos outros. Um filme complexo, crítico e sensível ao mesmo tempo.

A HISTÓRIA: O jovem Malik El Djebena (o fantástico Tahar Rahim) acompanha, na delegacia de polícia, a chegada revoltada de mais um preso. Ele acaba de ser informado por seu advogado (Rabah Loucif) que terá que cumprir uma condenação de seis anos de prisão. A caminho da penitenciária, ele guarda no velho tênis um bilhete de dinheiro e vê, pelo vidro do veículo, as últimas paisagens a que terá direito de vislumbrar por muito tempo. Chegando na prisão, ele vive sozinho, até que o grupo liderado por César Luciani (o excelente Niels Arestrup) lhe coloca contra a parede em um plano de homicídio dentro da penitenciária. Sendo obrigado a se aproximar dos bandidos da Córsega, Malik é visto pelos árabes, sua etnia de origem, como traidor. Para sobreviver dentro da prisão, ele se submete às ordens de Luciani, mas insiste em dizer que trabalha para si mesmo.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Un Prophète): Este filme impressiona pela maneira natural e “simples” com que trata o drama do protagonista. Não há pirotecnia e nem exageros na direção, nos efeitos visuais ou especiais. Não. O que interessa ao diretor e roteirista Jacques Audiard é assumir a posição de uma testemunha ocular invisível da história de Malik. A câmera está sempre próxima do protagonista, presente o tempo suficiente para registrar seus diferentes momentos de tensão, medo, vergonha, dúvida e satisfação. Mas não assumimos os olhos de Malik, a narrativa não é feita em primeira pessoa – ainda que ela esteja centrada no rapaz preso aos 19 anos que vai se tornando um criminoso pior a cada momento de sua condenação. As câmeras de Audiard estão sempre próximas e, em alguns momentos, chegam até a revelar os sonhos e a imaginação do protagonista. Um trabalho que se aprofunda no cotidiano, na imaginação e nos desejos de um rapaz que não tem família ou perspectivas, mas que é colocado à prova constantemente.

Há muito tempo eu não assistia a um filme que questionasse de forma tão potente a questão das circunstâncias, do “destino” e da capacidade do homem em sempre fazer as suas escolhas – mesmo quando tudo pareça ir contra a sua própria autonomia. Malik tenta, a todo custo, fugir da “missão” imposta por Luciani de matar Reyeb (Hichem Yacoubi), um preso que tenta um acordo judicial em troca de dedurar os seus comparsas. Como praticamente todos os bandidos, Luciani também obedece a um superior. No caso de Un Prophète, o nome do “chefe” de Luciani é Jacky Marcaggi, que pede a cabeça de Reyeb. Sem querer arriscar um de seus homens, Luciani vê no isolado árabe Malik sua arma perfeita.

Não vou estragar as surpresas do filme, porque isso seria um pecado, mas queria comentar como Malik impressiona por sua paciência em esperar o momento certo para tudo. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Inicialmente, ele tenta denunciar a coação de Luciani para o diretor do presídio, mas ele logo percebe que o chefe de detenção (Frédéric Graziani) come nas mãos do bandido corsário. No melhor estilo “ou mata, ou morre”, ele extermina Reyeb em uma sequência de forte impacto e verdade. E a partir deste momento, em uma de várias escolhas líricas dos realizadores deste filme, a vítima de Malik passa a conviver com ele. Em sua solidão, o “fantasma” de sua primeira vítima fatal lhe acompanha como seu único parceiro fiel. Culpa e absolvição estão em jogo, e não apenas neste caso.

(SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). De qualquer forma, Malik sabe os momentos certos de se submeter aos desejos e desígnios impostos por Luciani da mesma forma com que aprende muito rápido os caminhos para fazer os seus próprios negócios e alianças. O rapaz impressiona por sua perspicácia e, com suas atitudes, demonstra como mesmo no pior dos cenários e sob as mais duras circunstâncias o indivíduo ainda pode fazer o seu próprio caminho. Que este não fosse o caminho ideal ou desejado no início, mas pelo menos ele foi diferente do que os outros, que se sentem donos do destino de alguns, haviam traçado. Claro que Malik não havia planejado se tornar um assassino ou um traficante antes de entrar no presídio. Mas levado pelas circunstâncias, ele fez o que era necessário para sobreviver e, por mais absurdo que isso pareça, sair “limpo” desta experiência. E ele aprendeu muito no caminho.

Curioso como o protagonista, até entrar no presídio, não tinha uma ligação muito forte com suas origens. Não sabemos com detalhes as razões que o levaram a ser preso, nem sabemos muito sobre sua vida anterior, fora do crime. Mas no momento em que ele dá entrada no presídio, somos apresentados a algumas pistas importantes – que ganham mais detalhes quando ele se inscreve na escola da instituição. Tudo indica que ele foi abandonado pelos pais ou deixou a família muito cedo. Crescendo nas ruas, ele aprendeu a se virar muito rápido, cometendo pequenos crimes e estudando em um reformatório até os 11 anos. Quando passa pela triagem no presídio, fica subentendido que ele foi condenado por agredir a policiais – provavelmente após ter se envolvido em algum crime pequeno. Mesmo sendo de origem árabe, ele não seguia nenhuma religião. Por isso, não tinha problemas em comer carne de porco ou em ficar em uma ala em que não se previa orações pontuais como é costume entre os árabes.

Curioso como, ao ficar isolado do mundo, Malik se viu obrigado a olhar para si mesmo. Pouco a pouco ele foi aprimorando a própria capacidade de observação, aprendendo mais sobre suas origens árabes, seus costumes e religião. Também aprendeu sobre os corsários e sentiu na pele o preconceito que muitos árabes sofrem na França. Como nos morros dominados por traficantes, ele serviu como uma ferramenta para os poderosos – prestando serviços cada vez mais complexos para sobreviver. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Autodidata, ousado e inteligente, ele aproveitou o tempo que passou na cadeia para aprender a língua dos corsários, assim como aprendeu a ler e escrever corretamente. Ousado, ele se aproximou de pessoas que não faziam parte do círculo de Luciani, como o árabe Ryad (Adel Bencherif), que conhece nas aulas do presídio; e o traficante Jordi – O Cigano (Reda Kateb). Com eles, Malik consegue estabelecer parcerias que acabam sendo sua alternativa para sobreviver.

Un Prophète é um filme excepcional. Bem dirigido, com um roteiro perfeito e atores muito, muito competentes, não há o que questionar desta produção. Ela funciona com perfeição em cada detalhe. Gosto da levada sombria e acizentada da direção de fotografia de Stéphane Fontaine, por exemplo. A permanente sensação de que algo de muito ruim vai acontecer com Malik a qualquer momento mantêm o clima tenso da história – e o interesse do espectador. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). O que irá acontecer com o protagonista depois que ele deixa a prisão, não sabemos. Mas o importante de Un Prophète não é apresentar um personagem perfeito ou que não irá sucumbir nunca mais ao crime. O que interessa desta história é a capacidade de Malik em sobreviver, em seguir vivo da melhor forma possível e, ao mesmo tempo, buscando a sua própria verdade.

NOTA: 10.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Un Prophète mostra uma direção cuidadosa e inspirada de Jacques Audiard. A câmera orquestrada pelo francês está permanente em busca das imagens que expliquem, sem palavras, o que está acontecendo. Assim, temos closes das mãos de Malik quando ele dobra, cuidadosamente, a desgastada nota de dinheiro quando está indo para o presídio; ou os detalhes de como os presos fazem mercadorias ilegais entrarem no local de segurança pública através da cozinha ou da lavanderia. Malik vira “porteiro” na prisão e, assim, percebe a aprende com os detalhes do que acontece ao seu redor. Audiard está atento a cada um destes pequenos detalhes e, ao mesmo tempo, às nuances interpretativas de seus atores.

Para dar força a esta história, Audiard contou com o excelente trabalho de edição de Juliette Welfling. A sequência em que Malik incorpora a função de “olhos e ouvidos” de Luciani, ou quando o protagonista entra em ação em cenas de brutalidade e assassinato, revelam a importância de uma boa edição e da segurança do diretor neste filme. A verdade é que Audiard se cercou de profissionais muito competentes, o que fica evidente pela qualidade técnica vista nesta produção.

O roteiro de Un Prophète é assinado por Audiard e por Thomas Bidegain. Eles trabalharam sobre o texto original de Abdel Raouf Dafri e Nicolas Peufaillit, o primeiro, um dos novos expoentes do cinema francês. Misturando uma narrativa em certos momentos um tanto pop – com a já tradicional pausa para a inserção dos nomes de alguns personagens importantes – com uma levada essencialmente crua, Un Prophète segura o interesse do público em pouco mais de duas horas e meia graças, principalmente, ao trabalho do diretor e do ator principal, Tahar Rahim.

Ainda que pouco presente na produção, a trilha sonora de Alexandre Desplat se mostra fundamental em determinados momentos da história – como deveriam ser todas as trilhas sonoras de filmes.

Não deixa de ser curiosa a “população presidiária” mostrada pelo filme. Quando Un Prophète inicia, domina o cenário os presos políticos ligados à Frente de Libertação Nacional da Córsega – conhecida também como Armata Corsa. Segundo este breve texto da Wikipédia, o movimento político que defende a independência da Córsega frente ao domínio francês foi criado em 1976 e é conhecido por utilizar métodos similares ao da máfia italiana – o que fica evidente no filme. Mas, pouco a pouco, conforme os anos dentro da prisão vão passando, começa a crescer no presídio a população de muçulmanos, o que reflete a realidade da população carcerária francesa.

Segundo este texto de 2004, mais de 50% dos presos na França naquele ano eram muçulmanos. O intelectual Tahar Ben Jelloun comenta, nesta entrevista, por exemplo, que na maior prisão de Marselha (uma das cidades importantes para a história de Un Prophète), em 2002, quase 70% da população carcerária era de origem não-francesa. Estes são detalhes que tornam a narrativa do filme ainda mais realista, especialmente porque o tema de origem étnica e das diferenças religiosas e culturais joga um importante papel na história.

Un Prophète estreou no Festival de Cannes em maio deste ano. Ele não saiu com o prêmio principal do evento, mas garantiu o Grande Prêmio do Júri para o diretor Jacques Audiard. Este mês, a produção francesa se consagrou com o prêmio de melhor filme do 53º Festival de Cinema de Londres. Na ocasião, a atriz Anjelica Huston, presidente do júri, considerou Un Prophète um filme perfeito, acrescentando que ele tem a “ambição, a pureza de visão e a clareza de propósitos que o tornam um clássico instantâneo”.

Os usuários do site IMDb deram a nota 8,1 para o filme. Até o momento, a crítica internacional falou pouco da produção. O Rotten Tomatoes, por exemplo, registra apenas uma crítica sobre Un Prophète. Assinada por Liam Lacey, do Globe and Mail, a crítica destaca a direção “sensacional” de Audiard e o “desempenho convincente” de Rahim como elementos fundamentais para que a audiência mantenha o interesse na história. O crítico também afirma que a história se mostra, algumas vezes, “desconcertante ao traçar as complexas alianças e rivalidades entre as gangues e seus chefes” no presídio.

Para o crítico Richard James, neste texto do In The News, Un Prophète apresenta um ritmo de ação “implacável” e, sobretudo, um drama sobre crimes “verdadeiramente original”, com um personagem principal que apresenta uma profundidade real. Estou totalmente de acordo com James, que ainda classifica as interpretações de Rahim como “soberba” e a de Arestrup como “fantástica”.

Um detalhe sobre Un Prophète: apesar de ser uma produção essencialmente francesa, o filme também recebeu dinheiro da Itália. No roteiro, são faladas três línguas: a francesa, a árabe e a corsa (que se assemelha ao dialeto toscano, tendo como base o idioma italiano).

CONCLUSÃO: Um filme potente e que busca o realismo no cotidiano de uma prisão francesa. Un Prophète se lança no árduo caminho de se aprofundar nos sentimentos e nas motivações de um jovem de 19 anos que cai em um presídio e se torna, pouco a pouco, um homem formado no mundo do crime. Com uma direção primorosa e um protagonista impecável, Un Prophète ganha destaque entre as produções do gênero pelo realismo e pela profundidade com que trata o seu personagem principal, como já foi citado. Mas, especialmente, este filme se destaca por equilibrar os elementos anteriores com um olhar sensível sobre a realidade, as fantasias, a imaginação e a capacidade de se conectar com o que acontece ao seu redor por parte do protagonista (ou, para alguns, pela forma com que seu sexto sentido é mostrado pela história). Como os grandes filmes do gênero, Un Prophète apresenta algumas cenas muito duras, inclusive de violência, mas todas perfeitamente justificadas. Uma grande história sobre valores e a incapacidade do sistema prisional em “reformar” criminosos especialmente bem contada.

PALPITE PARA O OSCAR 2010: Ainda é cedo para lançar um palpite certeiro sobre o futuro de Un Prophète no próximo Oscar – afinal, ainda tenho que assistir aos outros 63 pré-candidatos (porque La Teta Asustada eu já vi). 😉 Mesmo assim, não tenho medo de arriscar: o candidato francês à estatueta mais cobiçada da grande indústria do cinema deve estar entre os cinco finalistas. Também acho que ele corre, desde já, como um dos grandes favoritos.

Em outras palavras, ele tem boas chances de ganhar. Quer dizer, isso se ele vencer outros candidatos muito fortes, como o alemão Das Weisse Band (o próximo na minha lista para ser assistido), o iraniano Darbareye Elly, o italiano Baaria, o coreano Madeo, o inglês Afghan Star e, (admito que essa é uma torcida minha), quem sabe, até mesmo o peruano La Teta Asustada. Este último, aliás, comentado aqui no blog. Não sei se a produção francesa terá forças para ganhar o Oscar de filme estrangeiro, mas acho que seria uma injustiça se ele ficasse de fora da lista dos finalistas.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 25 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing, professora universitária (cursos de graduação e pós-graduação) e, atualmente, atuo como empreendedora após criar a minha própria empresa na área da comunicação.

10 respostas em “Un Prophète – A Prophet – O Profeta”

Oi Claudia!!

Maravilhoso, não é mesmo? Achei excepcional, perfeito. Destes para os quais não tenho medo de dar um 10. 😉

O ator é genial. Um “desconhecido” que virou um grande achado. Quero ver outros filmes com ele.

Um grande abraço e obrigada, mais uma vez, por estar sempre presente por aqui. Inté!

Curtir

Adorei o filme.
a impressão que se tem é que a prisão “lhe fez bem”, me explico, fez com que ele desabrochasse, do que era capaz.
Nada lembrava mais o menino que entrou na prisão.
O filme mostra isso de maneira tão sutil que qd tu vê a cena da van tu se surpreende mas não acha desconectada da história.
Achei, junto com “A Fita Branca” um dos melhores desse ano.

Curtir

Oi mariashy!!

Grande filme, não é mesmo? Concordamos nisto.

Sim, a prisão foi o estopim do grande crescimento do protagonista. Foi ali que ele se tornou realmente adulto, capaz de lidar com as mais diferentes situações e sair por cima. Aprendeu a ser “um profeta”, no melhor sentido da palavra – aquele que lê os sinais da Natureza, do tempo, das pessoas, e prevê o que irá acontecer.

Também achei um dos melhores filmes do ano. Na verdade, no último Oscar, ele era o meu preferido entre os estrangeiros.

Abraços e muito obrigada por tua visita e comentário. Espero que ambos se repitam muitas vezes ainda. Inté!

Curtir

Oi Alexandre!

Primeiramente, mil desculpas por demorar tanto para te responder. É que, só agora, estou conseguindo colocar as conversas aqui no blog em dia.

Não sei se já conseguiste a lista de músicas do filme, mas se não achaste em outra parte, aí vai a lista:

1. Le Dépôt (extrato)
2. Runeii – Talk Talk
3. Interlude (extrato)
4. Bridging the Gap – Nas
5. Corner in my Room – Turner Cody
6. Interlude (extrato)
7. Take me Home with you, Baby – Jessie Mae Hemphill
8. Récite (extrato)
9. Un Prophète – Alexandre Desplat (que assina as músicas seguintes também)
10. Les Rêves
11. La Neige
12. La Sortie
13. Le Respect
14. Visions
15. Le Ciel
16. Du Drahan Por L’Iman
17. Le Pouvoir
18. Gunfight
19. Vie et Mort
20. La Prophétie
21. Fouille (extrato)
22. Mack the Knife – Jimmie Dale Gilmore

É isso. Grande filme e grande trilha sonora.

Obrigada pela tua visita e pelo teu comentário. E volte por aqui mais vezes.

Abraços e inté!

Curtir

Deixe uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.