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Séraphine – Seraphine


Para entender a arte é preciso ter o tempo e o prazer da contemplação necessários, assim como saber apreciar a pulsação do artista. Não basta olhar para uma tela tendo hora marcada em outro local. Ou escutar uma música fazendo 10 outras atividades ao mesmo tempo. Séraphine, filme francês que foi um dos destaques de 2009, não é apenas uma produção sobre uma artista do início do século passado. Ele próprio, o filme, é uma peça de arte ao explorar nos detalhes a vida de sua personagem principal. O filme dedica o tempo necessário e abriga qualidades como a contemplação e a narrativa que busca a pulsação do artista ao qual a produção é dedicada. Uma bela peça de cinema que, além da arte, trata do contexto europeu que antecedeu e sucedeu a 1ª Guerra Mundial. Além disso, Séraphine trata sobre religiosidade, fé e compreensões divergentes sobre o belo e a loucura.

A HISTÓRIA: Na cidade francesa de Senlis, em 1914, Séraphine Louis (Yolande Moreau) caminha pelas águas de um rio nas primeiras horas do dia. Quando escuta os sinos da igreja, ela caminha depressa para chegar a tempo da missa. Séraphine canta com convicção e de forma afinada as canções religiosas e, no final, ergue seu olhar para o alto. Depois, utiliza a mesma dedicação para esfregar com vigor o chão de uma das casas onde trabalha na limpeza. Sua empregadora, madame Duphot (Geneviève Mnich), pede que Séraphine deixe tudo limpo e arejado porque terá um novo inquilino: o alemão Wilhelm Uhde (Ulrich Tukur). Crítico de arte, ele descobre acidentalmente o talento de Séraphine, uma mulher considerada louca em seu vilarejo mas que, com o tempo, seria considerada uma das expoentes francesas do grupo de artistas que ficou conhecido como os “primitivos modernos”.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Séraphine): A vida desta artista impressiona tanto ou mais que a sua arte. O diretor e roteirista Martin Provost decidiu destacar, de forma muito natural, contemplativa e, por tudo isso, sem pressa alguma, detalhes da vida adulta de Séraphine. Como em tantas outras histórias, quando o espectador é inserido em uma realidade quando ela está próxima a mudar, no filme Séraphine acompanhamos o que ocorre com a sua protagonista justo no momento em que entra em sua vida o crítico de arte Wilhelm Uhde. A relação dos dois, artista e crítico, com as pessoas “comuns” ao seu redor é mais um ponto de interesse do filme.

Séraphine vai agradar, certamente, às pessoas que gostam de arte, de saber sobre seu processo criativo e a biografia de seus artistas. O filme de Provost explora ainda, neste universo artístico, as relações que cercam ao indivíduo que assina as obras e os bastidores que fazem com que alguém um dia chegue a ser conhecido e/ou reconhecido. Mas o interessante é que Séraphine deve extrapolar esse grupo restrito e interessar também aos que tem curiosidade para saber como era a vida de pessoas comuns antes da eclosão da 1ª Guerra Mundial. Que ambiente, afinal, fazia parte da Europa naqueles dias? Séraphine mostra o que ocorre antes, durante e depois do conflito que envolveu tantos países. Sem contar que o filme roça a fronteira entre a genialidade e a loucura e a dificuldade da sociedade em aceitar as pessoas que fogem de seus padrões.

Não são poucos os temas abordados pelo filme, como comentei no parágrafo anterior. E, ainda assim, Séraphine não amontoa os assuntos ou faz cortes rápidos entre eles em momento algum. Pelo contrário. O roteiro de Martin Provost e Marc Abdelnour deveria servir de exemplo para os que tentam defender filmes em que as histórias se acumulam ou ficam rasteiras demais com a desculpa de que “há muitos assuntos para abordar”. Séraphine aborda tudo o que comentei antes com calma, migrando de um assunto para outro de forma natural, suave, valorizando cada minuto da narrativa.

Essa valorização do tempo é fundamental também para que a atriz principal, Yolande Moreau, dê um show de interpretação. Não é por acaso que ela recebeu tantos prêmios por seu trabalho neste filme. Yolande convence como se fosse a própria artista, criada sob os signos/valores da fé e do trabalho duro como os únicos caminhos dignos de uma pessoa. Diferente de outras intérpretes, que facilmente cairiam na intepretação de uma mulher “louca” de forma exagerada, Yolande assume o papel de Séraphine como o de uma mulher frágil e ao mesmo tempo batalhadora,  manipulável e que sucumbe com certa facilidade a uma idéia grandiloquente de salvação/fama.

Não sei, honestamente, até que ponto esta cinebiografia respeita a história real de Séraphine Louis. Ainda assim, o que o espectador vê na tela é impressionante. Comove a forma com que Séraphine levava a vida, totalmente devota às maravilhas da Natureza e aos presentes que o “Criador havia lhe dado”, assim como a sua simplicidade – ela insistia em continuar trabalhando duro mesmo quando suas obras haviam sido descobertas por Uhde – e sua insistência em dizer que o mérito de seu trabalho era divino. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Por mais que ela tenha perdido a lucidez perto do final, contaminada pelas promessas de exposições e reconhecimento por seu trabalho – desprezado por tantas pessoas -, Séraphine jamais se vangloriou de suas pinceladas. Sentia-se orgulhosa de ser um “canal criativo” de Deus – talvez por isso ela se sentisse tão confortável junto de árvores e da Natureza. Para ela, todos eram canais da força divina.

Independente de crenças ou credos, Séraphine é um exemplo de como o talento frutifica em locais improváveis. Uhde fica espantado em saber que sua descoberta era uma criadora independente, totalmente autodidata e, mais, inclusive ridicularizada em seu ambiente. Ampliando o olhar para aquela realidade, Séraphine era uma pária social de muitas formas. Por não ter família constituída, ela não tinha um sobrenome ou “brasão” para se comparar às pessoas “respeitáveis” da sociedade local.

Sua arte era vista como algo ridículo pelos que se consideravam “esclarecidos”, e seu gosto pela simplicidade, pela natureza e um ou outro gesto seu diferente dos padrões daquela pequena comunidade era encarado como algo típico de uma louca ou, na melhor das hipóteses, de uma pessoa extravagante. Achei especialmente incrível a forma com que Séraphine sobreviveu ao período da guerra. E contrariando todas as previsões, ela seguiu pintando, se aprimorando e, meio que por acidente, passou a criar telas de grandes dimensões. Sua vontade de sobreviver foi determinante para que, em 1927, com o retorno de Wilhelm Uhde para a França – mas não para a cidade de Senlis -, Seráphine tivesse uma nova oportunidade de mostrar o seu talento para o mundo.

A história desta artista é fantástica por si só. Mas a forma com que ela é narrada pelos roteiristas e por uma direção inspiradíssima transformam este filme em um dos melhores do gênero. Meio óbvio comentar isso, mas ganha um destaque todo especial a direção de fotografia de Laurent Brunet. Não apenas as paisagens e a arquitetura local são detacadas pelas lentes de Brunet e Provost. A direção de fotografia acaba sendo fundamental para valorizar os momentos intimistas da produção, que revelam o processo criativo de Séraphine e a sua devoção. Um lindo trabalho, belo e poético ao mesmo tempo.

Paralela à história da artista plástica que ganhava a vida como faxineira, o espectador conhece um pouco melhor como ocorria a descoberta de um novo talento na Europa no início do século 20. Pessoas como Wilhelm Uhde orquestravam o surgimento de novas tendências ao mesmo tempo em que faziam pequenas fortunas. Como ele comenta para o jornalista Francis Gouyet (Jean-Pascal Abribat) quando chega a Chantilly após a guerra, muitas vezes suas investidas não conseguiam a repercussão e o apoio necessário. Claro que Uhde e outros marchandt da época tinham que tirar dinheiro do próprio bolso e, muitas vezes, perdiam boa parte de seu investimento até que conseguissem emplacar um nome. Mas, ainda assim, eles saiam ganhando – pela arte e nas finanças. Interessante saber como eram suas negociações.

Outro assunto que aparece em Séraphine, ainda que de forma bastante secundária, era o do preconceito/perseguição contra homossexuais naquela época. Uhde se muda para o interior da França, no início do filme, certamente para fugir de perseguições. E mesmo depois da guerra, quando o armistício deveria afetar várias esferas da sociedade, ele continuava escondendo seus romances – na segunda fase do filme, inclusive, aparece sua relação com o artista Helmut Kolle (Nico Rogner). O personagem de Uhde é interessantíssimo porque, afinal, foi ele quem impulsou talentos como Picasso, Henri Rousseau, Braque e Douanier Rosseau, entre outros. Além da protagonista, os demais atores se saem muito bem em seus papéis. Gostei especialmente de Ulrich Tukur e de Anne Bennent (que interpreta a sua irmã, Anne-Marie Uhde). Um filme perfeito na forma, no conteúdo e, principalmente, na apresentação.

NOTA: 10.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Por ser um filme, em muitos momentos, contemplativo (sem diálogos em muitos trechos), Séraphine depende muito de sua trilha sonora. E o trabalho de Michael Galasso se mostra perfeito e muito ajustado a história que ajuda a narrar. Um belo trabalho – que apenas reforça a qualidade técnica da equipe envolvida com este projeto. Aliás, vale a pena citar o trabalho de edição de Ludo Troch, o design de produção de Thierry François, o figurino de Madeline Fontaine e a decoração de set de Catherine Jarrier-Prieur.

Séraphine acumulou, até agora, 17 prêmios e outras quatro indicações. Ele foi o grande vencedor do chamado “Oscar francês”, os prêmios César, em 2009. Levou para casa sete prêmios César, inclusive os de melhor filme, melhor atriz, melhor roteiro e melhor direção de fotografia. Yolande Moreau ganhou ainda outros seis prêmios como melhor atriz – nos Estados Unidos, na França e no Cairo.

Os usuários do site IMDb gostaram de Séraphine – lhe conferiram a nota 7,3. Achei um pouco baixa, mas para os padrões do site e se tratando de um filme sobre arte, até que não está mal. Os críticos que tem textos linkados no Rotten Tomatoes, por sua vez, foram mais “generosos”: eles publicaram 75 críticas positivas e nove negativas, o que garante para o filme uma aprovação de 89%.

As notas de produção do filme trazem uma entrevista com o diretor Martin Provost. Ele comenta que foi impelido a conhecer Séraphine Louis através de uma amiga produtora que sugeriu que ele fosse atrás de sua história. “Encontrei pouquíssima informação (sobre Séraphine) na Internet, uns detalhes biográficos e uns quadros realmente surpreendentes. Foi o suficiente para despertar a minha curiosidade. Assim comecei a entrar no universo particular de Séraphine. Não demorei para me dar conta de que a vida comovente desta mulher podia ser levada para o cinema. Esta primeira impressão foi se fazendo cada vez mais forte até converter-se em uma convicção quando li a tese sobre Séraphine de Françoise Cloarec, uma psicoanalista que conheceu a Anne-Marie, a irmã de Wilhelm Uhde, o descobridor de Séraphine”, comentou Provost.

Ele disse ainda que jamais conseguiria fazer Séraphine sem a atriz Yolande Moreau. “Quando escrevi o roteiro, antes de começar a buscar um produtor, me apoiei em sua presença. É uma casualidade, mas ambos vivemos no campo, nossas casas estão distantes uns três quilômetros. Nos conhecemos pouco antes de nos mudarmos. Eu lhe contei a história de Séraphine e ela aceitou imediatamente (o papel). Logo, quando encontrei na biblioteca Kandinsky o único retrato conhecido de Séraphine, feito a lápiz por um vizinho seu, fiquei atônito com a semelhança. Era Yolande Moreau. Mostrei a ela o retrato e ela ficou muda. Logo disse, como se não fosse nada: ‘Não é muito lisonjeiro, mas sou eu’. Falamos muito de Séraphine, das coisas que ela enfrentou, de sua infância. Durante as filmagens ocorreu uma espécie de milagre, uma autêntica fusão entre um personagem e uma atriz. Não se pode dizer que Yolande interpreta a Séraphine, ela a encarna. Conforme o filme avança, ela consegue transmitir à imagem uma carga poética e emocional muito intensa, ainda que esteja sempre contida. De fato, nos esforçamos em ficarmos no limite, em não entrar na facilidade, no sentimentalismo, na história que normalmente associa a loucura com o cinema. Tentamos ser fiéis a imagem que tínhamos do personagem, ao seu caminho difícil, suas fragilidades, seu valor, a tudo o que nos havia impressionado e emocionado de Séraphine”, disse o diretor. Honestamente, eu não poderia jamais resumir melhor o trabalho de Yolande e este filme. Perfeito.

Provost continua falando sobre a sua experiência em realizar Séraphine: “O perigo de um roteiro baseado em um personagem real é o de que ele fique na anedota, na ilustração, e deixe de lado o mistério, a humanidade, as contradições, a vida interior. Esse é um exercício delicado. (…) Cedo descobri que Séraphine era uma aliada, que me convidava a passar pela porta para o seu mundo, um mundo áspero, desconcertante, enfrentando ao invisível. Marc Abdelnour colaborou com o roteiro, e desde o princípio nos impusemos uma regra. Não contaríamos a vida de Séraphine como uma continuidade de momentos fortes. Eu me interessava por todas as bagatelas, as ausências, o que acontece fora do quadro, os pequenos mistérios. Também decidi me concentrar na relação totalmente inesperada, ambigua e casta que uniu Séraphine e Wilhelm Uhde durante mais de 20 anos. Foi um encontro pouco provável entre dois marginalizados. E decisivo para ambos. Séraphine é uma marginalizada, e Uhde, um estrangeiro homossexual, é o primeiro a ver o que ela é realmente. E faz isso sem preconceitos”.

Na mesma entrevista, Provost comenta que, mesmo sem ter estudado artes plásticas, houve uma época em que ele pintou muito. Mas um dia, depois de ficar horas concentrado e de trabalhar muito, lhe invadiu o medo: “… um medo irracional, uma sensação intensa de solidão. Nunca mais voltei a tocar em um pincel. A (respeito de) Séraphine tive um sensação de proximidade, a admiração, a curiosidade que sempre senti pelo que é a criação em estado puro, a energia criativa. Alguns chamam (o que ela fazia) de arte “ingênuo”, outros, arte “bruta”, mas não é uma questão de etiquetas. Muitas vezes, pessoas não eruditas, que não nasceram em meios próximos à cultura, levam dentro de si uma capacidade criativa sem precedentes, imparável e perturbadora. Estes artistas são pescadores de alto-mar, alheios às evoluções e as mudanças artísticas, carentes de mestres e de discípulos, e quase nunca conseguem o reconhecimento artístico que merecem. Séraphine era uma visionária no melhor sentido da palavra. Se deixou levar por algo mais forte que ela mesma, algo que não controlava, e acabou por destruí-la”. Provost comenta ainda que, para Séraphine, pintar era tão vital quanto comer e beber, ou até mais. “Para ela, era uma questão de sobrevivência”.

Interessante quando o diretor comenta sobre o quase abandono de Séraphine por parte de Uhde: “Essa é a parte obscura do personagem e não tentei evitá-la. Mas me pareceu mais interessante para o filme não tentar explicar esse estranho comportamento. O espectador deve tirar as suas próprias conclusões. A morte de Séraphine no hospital psiquiátrico de Clermont-de-l’Oise durante a 2ª Guerra Mundial foi bastante sórdida. Wilhelm Uhde afirma em sua autobiografia que ela morreu em 1934, mas a verdade é que ela viveu oito anos mais, até 1942. Mentira, negligência? Não faço perguntas. De fato, depois da 1ª Guerra Mundial ele regressou para a França, onde viveu com sua irmã, mas não tentou reatar sua relação com Séraphine, que vivia a uns 10 quilômetros de onde ele estava. Em uma parte do filme, ele diz que Séraphine morreu, mas Ulrich Tukur (que interpreta a Wilhelm Uhde) teve o cuidado de dizer isso como se não acreditasse. A ambiguidade dá a entender a complexidade do personagem. Apesar da integridade e da força moral que demonstrou durante toda a sua vida, perseguiu-lhe a culpa e a impotência, inclusive a covardia. Essa é uma dimensão importante do personagem no que se refere a sua relação com Séraphine e com o que lhe rodeava. Uhde tinha demônios internos e eles estão presentes durante todo o filme. Não queria envolver-lhe no papel de mecenas fiel, bondoso e cumplice”, afirma Provost.

Interessante como o diretor revela ter tido o cuidado de privilegiar sempre os personagens durante a narrativa. “(…) a presença dos personagens deveria ser sempre sóbria e rigorosa, e Séraphine devia estar em primeiro plano para que o espectador pudesse caminhar ao seu lado de forma cômoda. (…) A respeito do vestuário, da decoração e da iluminação, tentamos que tudo esteja em segundo plano, usando o menor número de efeitos possível. Fui muito exigente na hora de escolher as cores: nenhuma cor quente fora dos quadros de Séraphine, nem na decoração nem no vestuário. Verdes, azuis, negros, nada de branco. Poucos movimentos de câmera. Não quis que estivéssemos muito próximos dos atores. Fazer algo se destacar só se fosse absolutamente necessário”, revelou Provost.

E para quem ainda tem alguma dúvida sobre o que o diretor quis contar com esta história, ele comenta o que, para ele, foi a vida e a obra de Séraphine: “Antes de mais nada era era uma mulher livre. Pode parecer contraditório porque ela passou a maior parte de sua vida na mais absoluta solidão e castidade, na mais absoluta indigência física e psicológica, e acabou trancada em um manicômio. Séraphine era uma mulher da limpeza, pior ainda, uma mulher para tudo, que pintava em segredo coisas extraordinárias, mas das quais todos faziam piada. Naquela época, ela pertencia ao último degrau da escada social. Mas para ela tanto fazia, nada podia detê-la. Soube conservar sua autonomia, sua rica vida interior enquanto fazia trabalhos dos mais ingratos. Acabou pagando um preço muito alto por essa independência. No começo dos anos trinta havia usado todos os seus cartuchos e caiu na loucura. No curto período de floração artística e relativo alívio que desfrutou no final da década de vinte, Séraphine se convenceu de que a glória estava próxima. Para mim, significa que tinha ficado no mundo da infância, das maravilhas. Conseguiu dar sentido para sua vida sem ter nada, apesar das dificuldades, das pressões sociais e das humilhações diárias. Deixou sua marca, o que me parece extraordinário. Imaginemos a Séraphine atualmente. Receitariam para ela antidepressivos, estaria sentada na frente de uma televisão e não pintaria”.

O mesmo material de divulgação do filme traz notas biográficas de Séraphine Louis, conhecida também como Séraphine de Senlis, “A sem igual”. Ela nasceu no dia 2 de setembro de 1864 em Arsy, que pertencia a Oise, filha de um relojoeiro e da empregada de uma granja. Quando criança, ela dividia o seu tempo entre o colégio e o trabalho no campo como pastora. Aos 13 anos, seus pais lhe colocaram como empregada doméstica em Paris. Mais tarde, em 1877, enquanto trabalhava em um internato feminino, ela começa na arte observando as classes de professores de desenho. Quando completou 18 anos, Séraphine começou a trabalhar no convento de Saint-Joseph-de-Cluny, em Senlis, onde passaria a viver durante 20 anos.

Em 1902 ela sai do convento e começa a trabalhar como empregada por sua conta. Segundo o que ela contaria, em 1905 o seu anjo da guarda lhe disse que ela deveria começar a desenhar e, em seguida, a pintar. Muito fiel, Séraphine disse ter visões e ouvir vozes até sua morte. Em 1912, exatamente uma década depois de sair do convento, Séraphine conhece ao colecionista Wilhelm Uhde, que fica impressionado com um dos seus quadros durante um jantar com “burgueses da cidade”. O restante acompanhamos no filme. Vale citar, ainda, que em 1927, quando Uhde começa a apoiar verdadeiramente Séraphine, a artista já começa a ter seu nome divulgado na imprensa e consegue vender seus primeiros quadros. Em 1929, Uhde organiza em Paris a exposição “Os pintores do Sagrado Coração”. Alguns quadros de Séraphine são expostos ao lado de Aduanero Rousseau.

Neste mesmo ano, com o êxito que começa a desfrutar, Séraphine teria dado corda para seu temperamento fantasioso e começado a gastar em excesso. Pouco a pouco ela passou a se tornar mais ansiosa (com a crise econômica e os efeitos dela para Uhde) e, em 1931, era vista frequentemente falando sozinha, falando sobre o fim do mundo e se sentindo perseguida. No início de 1932 ela teria montado um escândalo em Senlis e, por isso, foi levada para o hospital da cidade, onde foi diagnosticada por apresentar “idéias delirantes com manias de perseguição, alucinações psicosensoriais e transtornos de sensibilidade profunda”. No dia 25 de fevereiro ela foi internada no asilo psiquiátrico e deixou de pintar. Naquele mesmo ano suas obras são vistas na exposição coletiva “Os primitivos modernos”. Em 1934, Uhde publica um livro sobre cinco artistas e afirma que Séraphine havia morrido naquele ano – o que dá margem a muitas interpretações. Ela iria morrer realmente apenas em 1942 – sendo enterrada em uma vala comum. Em 1945, por iniciativa de Uhde, é realizada a primeira exposição feita exclusivamente com obras de Séraphine, na Galerie de France de Paris.

Sobre Wilhelm Uhde, o material divulgado para a imprensa comenta que ele foi um grande colecionista e historiador da arte. Foi descobridor da arte de Aduanero (Henri) Rousseau e era amigo de Braque, de Robert Delaunay e de Picasso. Além de Séraphine, ajudou a muitos “primitivos modernos”, como Louis Vivin, Camille Bombois e André Bauchant. Durante a 2ª Guerra Mundial, Uhde teve que se esconder no interior da França. Morreu em Paris em 1947, depois de ter realizado o grande sonho de seu “descobrimento”: organizar uma exposição exclusiva para Séraphine na Galerie de France.

Só senti falta, para não dizer que fiquei satisfeita com tudo, com uma explicação melhor sobre a personagem de Minouche (a encantadora Adélaïde Leroux). Entendi que ela era talvez a única amiga de Séraphine em Senlis, mas de onde ela surgiu? Na primeira parte do filme ela não está presente na vida da protagonista e, depois, parece ser sua fiel companheira “de aventuras”. Queria saber melhor se ela era apenas uma vizinha que se preocupava com Séraphine ou tinha alguma outra ligação com a nova artista da cidade.

Vale a pena citar que Séraphine é uma co-produção da França com a Bélgica e a Alemanha.

Interessante também destacar que há filmes bem interessantes sobre artistas e seus processos criativos, como Basquiat e Pollock, por exemplo, mas poucas vezes vi um filme dedicado a uma artista ser tão bem feito. Séraphine para mim estaria para uma mulher como Pollock e outros estiveram para um homem artista plástico. A exceção, talvez, seja Frida, que trabalhou bem a vida e a obra de Frida Kahlo – ainda que, na comparação, Séraphine seja superior (porque é menos “hollywoodiano”/pirotécnico, por assim dizer).

Não tinha comentado antes, mas sempre vale a pena falar sobre o desempenho comercial dos filmes… Séraphine estreou no dia 7 de setembro de 2008 no festival de Toronto e, depois, passou ainda por outros 10 festivais, incluindo o do Rio de Janeiro. Na sua trajetória em diferentes mercados, ele teve um desempenho relativamente fraco – mesmo para um filme com as suas características. Nos Estados Unidos, até o início de 2009, ele havia conseguido quase US$ 858 mil nas bilheterias. Na França, até março do mesmo ano, ele havia conseguido quase 767 mil euros. Pouco.

CONCLUSÃO: Filmado com cuidado e dando o tempo necessário para que a narrativa flua suavemente e no tempo exato, Séraphine é um grande exemplo de como a cinebiografia de um artista pode ser muito interessante e, como sua própria arte, belíssima. Perfeito no apreço pelas imagens e na captação do sentimento de sua personagem-título, este filme revela o trabalho fantástico da atriz Yolande Moreau. Grande vencedor dos prêmios César de 2009, Séraphine é um deleite para os olhos e uma grande lição de vida. Como bem resumiu o diretor e roteirista Martin Provost, esta é a história de uma mulher essencialmente livre. Nadando contra todas as correntes e todas as perspectivas, Séraphine manteve o seu talento e o seu dom. Não desistiu nunca de seguir o caminho que acreditava certo. Além de contar a história de uma mulher incrível e extraordinária em sua simplicidade, Séraphine revela ao espectador os bastidores do trabalho de uma artista visceral. Além disso, conta uma relação curiosa de dois “marginalizados”, como definiu Provost, que foi o caso de Séraphine e do marchandt alemão Wilhelm Uhde. Resumindo, eis aqui um filme poético e belíssimo sobre arte, força criativa, amor pela Natureza, religiosidade, sobre o conturbado período entre as duas grandes guerras mundiais e sobre pessoas que, mesmo marginalizadas/perseguidas, souberam ser fiéis a si mesmas.

PALPITE PARA O OSCAR 2010: Se a Academia fosse justa, Yolande Moreau estaria entre as intérpretes indicadas este ano para o Oscar de Melhor Atriz. Ela ganhou dois dos principais prêmios da temporada – e que antecedem ao Oscar: o entregue pela National Society of Film Critics e o da associação de críticos de Los Angeles. Ainda assim, infelizmente, acho difícil ela conseguir estar entre as cinco indicadas ao Oscar. O que é uma pena – e quase um crime. Sem dúvida, se comparado ao trabalho de Meryl Streep em Julie & Julia, só para citar o nome de uma atriz que terá lugar garantido no Oscar, o desempenho de Moreau é muito melhor/maior. Entre ela e Streep, não tenho dúvidas, que a atriz belga merecia a estatueta (sim, Moreau nasceu em Bruxelas em 1953). Mas como o mundo não é perfeito e a realidade é injusta, provavelmente Moreau ficará de fora da disputa.

SUGESTÕES DE LEITORES: Eu estava de olho em Séraphine desde que esta produção havia arreabatado quase todos os prêmios do César em fevereiro de 2009. Ainda assim, devo comentar que a indicação da Claudia, estimada leitor deste blog, alimentou ainda mais a minha curiosidade por assistí-lo. Claudia, realmente, como você bem tinha dito em um comentário por aqui, Séraphine é excepcional. Belíssimo. Poético. Uma grande indicação a sua – mais uma, aliás. Muito obrigada! E agora, falta assistir aos outros que você indicou. Apareça por aqui para falar sobre tuas “sensações” após assistir a Séraphine. Eu fiquei arrepiada, emocionada, e só pensei: “Ah, o cinema francês… que maravilha!”. Nada melhor após uma sequencia de filmes “made in Hollywood”.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 25 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing, professora universitária (cursos de graduação e pós-graduação) e, atualmente, atuo como empreendedora após criar a minha própria empresa na área da comunicação.

19 respostas em “Séraphine – Seraphine”

Oi Lucio!!

Então, eu assisti a uma cópia importada do filme – no idioma original e com legendas em espanhol. Um amigo que mora em Madrid me mandou – junto com outras encomendas que eu fiz.

Olha, vi que Séraphine foi exibido no Festival do Rio em setembro de 2009… mas não foi lançado ainda no circuito comercial brasileiro e nem em DVD. Então, talvez, tenhas que esperar – se quiseres assistí-lo nos cinemas. Ou, se não te importares em vê-lo em DVD, a saída por enquanto é importar uma cópia dele.

Agora, faça isso mesmo, de voltar aqui depois de assistí-lo. Acho que vais gostar muito de Séraphine.

Um abraço e até a próxima!

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Oi Alessandra,
Estou acompanhando, dentro do possível, pois este ano começou a mil por hora.

Só está dando tempo de assistir aos filmes que provavelmente concorrerão ao Oscar.
Logo que assisto a um já postado por você, logo venho ler a crítica inteira com todos os spoilers.
Adorei “Educação”. Eu esperava mais de Invictus e “Up in the Air” (aliás, estou achando os filmes com o Clooney muito parecidos e meio entediantes).
Gostei muito de Precious e The Blind Side
Logo quero assistir A Fita Branca.
Abraço
Claudia

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Oi Alessandra,

Concordo com vc 100% esse filme eh belissimo. Parece ele mesmo uma pintura. Gostei tb de Precious e The Blind Side. Up in the Air achei chatissimo excecao feita para a menina que parece o Tom Cruise e trabalha demais…O do Tarantino para mim so mereceu mesmo o ator coadjuvante que foi otimo mas o filme nao gostei achei apelativo demais. A Fita Branca tb gostei muito com fotografia linda.

Venho sempre xeretar aqui. Quando ainda nao vi pego suas recomendacoes com prazer.

Beijo.

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Filme de belle époque? 10? Ale, Ale… que pasa? Quer me deixar com vontade? =]

Sonja, concordo com você sobre o Inglorious. De bom tom o comentário.

Abrazos Ale

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Oi Claudia!!

Legal te “reencontrar” por aqui.

Então, entendo perfeitamente o que comentaste sobre “acompanhando dentro do possível”. Estou, muitas vezes, deixando outras prioridades de lado para manter o blog razoavelmente atualizado, porque se fosse deixar ele em segundo plano, acho que o atualizaria uma vez por mês. hehehehehe. Não consigo assistir a tantos filmes quanto eu gostaria mas, faz parte, não é mesmo? Se um dia me pagassem só para fazer isso, eu iria adorar. 😉

Também adorei Education, como podes ter percebido pelo meu texto. hehehehe. E concordo contigo que Invictus e Up in the Air poderiam ser melhores. Achei muito “barulho” por pouco, diante do que ambos pareciam significar. Também gostei muito de Precious, mas The Blind Side não me emocionou ou convenceu… achei um tanto forçado demais.

Logo mais apareça por aqui para opinar sobre aqueles que você considera os favoritos e/ou os melhores do ano, diante da lista do Oscar.

Abraços e inté!

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Oi Sonja!!

Bacana que você voltou!

Realmente, Séraphine é destes filmes para encher os olhos, a alma e nossas percepções. Um lindo filme, sem dúvida.

Como falei agorinha para a Claudia, gostei muito de Precious, mas The Blind Side, infelizmente, não me convenceu ou emocionou. Não sei, mas realmente ele não me desceu muito bem. Acho que sou do contra. hehehehehehe

Por outro lado, achei ótimo o teu comentário de Up in the Air. hehehehehe. Realmente a menina que parece o Tom Cruise rouba a cena. Está melhor que os outros atores praticamente juntos. Agora, sou suspeita para falar do Tarantino, porque não gosto tanto de outros filmes dele, discordo que Pulp Fiction é seu melhor filme, por exemplo, mas admito que gostei muito de Inglourious. Para mim, o melhor filme dele em muito tempo. E sobre ser apelativo… bem, o Tarantino é apelativo. hehehehe. Faz parte de seu estilo de “mestre” das releituras do cinema.

Das Weisse Band você acertou na mosca sobre a fotografia… tanto que ela foi indicada ao Oscar. Realmente é um grande trabalho visual.

Fico feliz que venhas por aqui sempre e que parte do que eu escrevo possa te inspirar a achar bons títulos.

Beijos e inté!

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Oi l3on!!

Sim, sim, quero te deixar com vontade. 😉

Na verdade, quero que você e os demais busquem este filme e o apreciem com toda a calma devida. E, depois, volte aqui para dizer o que você achou dele, combinado?

Abrazos grandes y hasta pronto!

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Tsc, tsc, quando acho que você não vai responder nunca mais… hehehe.

Verei sim. Ultimamente tenho ampliado uma listinha de DVD’s – agora é quase uma bíblia – para filmes imperdíveis. E bom, de fato, tempo virou raridade.

Assim que Seraphine sair, verei e comentar-lo-ei aqui.

Un beso y un queso [rá!]

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Oi l3on!!

“Nunca mais” é muito tempo, né não?

Eu sempre respondo, meu bom… mesmo quando demoro muito para fazer isso. 😉

Pois sim, infelizmente sempre parece que o tempo é curto para tudo que gostaríamos de fazer. Por isso mesmo é preciso que a gente reserve algumas horas para a necessidade básica de assistir a filmes, porque do contrário… nunca conseguimos parar para isso.

Bons filmes para ti. E carpe diem!

Besos y abrazos!

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Telecine Cult me deu o prazer e a grata beleza e sorte de assistir esta arte que foi feita sobre Seraphine Louis, em dezembro 2010 na TV. A amostra das telas no filme, foi muito artística, de modos que o Windows Média Play é muito legal. Aquela coisa que a imagem vai crescendo. Acho que faltou isso no filme. No entanto, a arte de Seraphine é extraordinária. Será que dá prá fazer assim nas telonas?

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Oi Nanah O!

Realmente, esse é um destes filmes que dá gosto de assistir. Uma verdadeira preciosidade.

Agora, francamente, não entendi quando comentaste “que o Windows Media Play é muito legal”… o que isso tem a ver, mesmo, com as obras de Séraphine retratadas na produção?

Também não entendi a tua pergunta se daria para fazer algo assim “nas telonas”. Esse filme foi produzido para ser exibido nos cinemas, tanto que ele participou de um monte de festivais pelo mundo afora. Agora, claro, eventualmente ele passa também na TV.

Obrigada por mais este teu comentário e visita. Volte mais vezes!

Abraços!

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Simplesmente queria agradecer por essa dica fantástica! Se eu não fosse leitor do seu blog provavelmente não ficaria sabendo desse filme tão cedo, e perderia uma das melhores experiências cinematográficas que pude presenciar nos últimos meses!

Achei esse filme incrível, maravilhoso em todos os aspectos! Espero ainda descobrir muitas maravilhas por aqui 😉

ps: alguns dos comentários também estão incríveis, hahaha. Pena que não são totalmente compreendíveis (se bem que é aí que reside a graça)

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Oi Marlon!

Opa, que legal!
Fico feliz que eu tenha te apresentado um belo filme, que rendeu uma experiência tão significativa para ti.

Ainda falta, pra gente, descobrir muitos e muitos filmes bons. Tenha certeza. Há muita coisa boa por aí.

Espero também que o blog te propicie outras experiências bacanas.

Os comentários são sempre deliciosos. Mesmo quando meio incompreensíveis. hehehehe

Muito obrigada pela tua visita e comentário. E volte por aqui mais vezes, combinado?

Abraços e inté!

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