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Still Life – Uma Vida Comum


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O respeito ao outro deveria ser algo intrínseco, natural, inquestionável, e válido não apenas quando alguém está olhando. Você sabe quando uma pessoa tem respeito pelos outros desta forma justamente quando esta pessoa não está sendo observada ou aplaudida pelo “gesto nobre”. Still Life trata de um sujeito assim, que exerce o respeito pela outra pessoa cotidianamente. Retrato interessante sobre o nosso mundo e posturas que parecem quase em desuso. Atitudes estas que entram em conflito com a realidade cada vez mais material e sem cuidado que parece marcar nosso tempo.

A HISTÓRIA: Um cemitério e uma igreja. Dentro do templo, um caixão, um padre e John May (Eddie Marsan). E mais ninguém. A cena se repete outras vezes, mas em outros locais e com outros tipos de despedida para os mortos. Em comum, apenas a presença séria de May. Após um destes velórios, John May pede para o atendente do crematório (Leon Silver) as cinzas de mais uma pessoa que não teve nenhum parente ou conhecido encontrado.

O atendente pergunta se ele levará apenas aquelas cinzas, e May diz que sim, porque dará mais um tempo para os demais. Nunca se sabe quando um conhecido poderá aparecer. Em breve, John May terá que enfrentar um último trabalho de investigação para propiciar um funeral diferente para um morto da cidade.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Still Life): Sempre gostei de histórias de pessoas comuns. Basicamente, por duas razões: primeiro, porque elas revelam muito do que podemos enxergar ao nosso redor, quando estamos dispostos; e depois, justamente pela razão anterior, porque elas nos fazem olhar o ordinário de forma mais cuidadosa, carinhosa, propiciando algumas reflexões que não teríamos se a história do filme não tivesse cruzado o nosso caminho.

Claro que aprecio também algumas superproduções (os famosos blockbusters), histórias de heróis de HQs adaptadas para o cinema, filmes com grandes astros e estrelas esforçados em fazer algo diferente. Mas quando encontro produções como Still Life, parece que o cinema faz ainda mais sentido. Porque histórias bem contadas não precisam de grandes reviravoltas ou outros truques narrativos.

O essencial de Still Life é a delicadeza da história. Um filme que aparentemente trata de um sujeito comum, um funcionário público como tantos outros que existem mundo afora – mas que normalmente não são lembrados ou valorizados. Só que o interessante da história não está apenas aí. Pouco a pouco vamos refletindo sobre a postura do protagonista, mas também sobre a mensagem que o exemplo dele nos repassa.

Onde começa ou termina o respeito pelo próximo? Quanto do que você faz é apenas pela “obrigação” – seja ela infligida pela tua educação ou pelas convenções sociais? Se ninguém estiver olhando, esse respeito permanece inalterado? Cotidianamente eu percebo gente atuando de maneria quase robótica. De forma automática, as pessoas se “preocupam” ou se “importam” com as demais na medida do que a sociedade exige. Mas não há verdade naqueles atos.

É como se muita gente vivesse atuando. Representando um papel. O respeito ao próximo ou a generosidade dos atos foram aprendidos, são repetidos, mas não partem da verdade interior de quem está agindo. Still Life questiona o que é estar vivo, para valer, e o que seria “aproveitar bem a vida”. O protagonista desta história é sistemático, extremamente organizado, com método em cada gesto. Um olhar apressado para a rotina de John May pode significar a leitura de que ele “não tem vida”.

Afinal, para muita gente, viver significa fazer festa sempre que possível. “Curtir” viagens constantes, confraternizar com quem estiver disponível, transar adoidadamente, e por aí vai. John May não conhece esta lista de prazeres. Ele trabalha de forma dedicada propiciando um funeral digno para pessoas que aparentemente não tem família ou amigos. Fora o horário de expediente, vai para casa e se alimenta sempre com a mesma comida. Age de forma cuidadosa a cada minuto e, no fim do dia, atualiza um álbum que mantém em casa com fotos das pessoas que ele acompanhou na última despedida quase solitária.

Como tantos outros funcionários públicos que ignoramos no dia a dia, John May é um sujeito dedicado. Como ele diz em certo momento do ótimo roteiro do diretor Uberto Pasolini, ele ama o trabalho que desempenha. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Quando um burocrata desalmado – como tantos que existem na vida real, sem qualquer respeito pela história dos outros, apenas ligado a resultados e números – coloca fim à carreira de May após 22 anos de um trabalho dedicado do protagonista, fica evidente uma certa “crise existencial” do personagem.

Como acontece com tantas outras pessoas, como lidar com aquela quebra da rotina? E mais que isso, como deixar de fazer o que se ama para lançar-se em uma vida com tanto tempo livre? Bebendo da mesma fonte de vários filmes de ação em que o protagonista deve fazer “um último trabalho como criminoso” antes de deixar aquela vida a que estava acostumado para sempre, Still Life mostra como May se dedica ao “último caso” que recebe.

Boa parte do filme mostra o protagonista na investigação sobre a vida de William “Billy” Stoke. Afinal, esta pode ser a última vez em que John May poderá propiciar um funeral diferente para uma pessoa que morreu de forma solitária. Será que, desta vez, será diferente? A expectativa por esta resposta alimenta a curiosidade do espectador, na mesma medida em que acompanhamos May na redescoberta da própria rotina.

Pouco a pouco ele vai mudando detalhes da forma de agir. Começa experimentando um chocolate quente no lugar do tradicional chá escuro. Daí para perder o trem e seguir na busca por amigos e parentes de Stoke é um pulo, quase um acaso. Com leveza e um humor diferenciado, Pasolini torna o espectador cúmplice deste cidadão disposto a prolongar o máximo possível a sua própria história e, desta forma, conseguir um final digno para Stoke e, consequentemente, para a própria carreira de May.

Mas o bonito da história do protagonista é que ele não se importa em ser invisível. John May gosta de fazer o trabalho que lhe compete bem, mesmo que ninguém perceba isso. E mesmo ao prolongar em dias esse trabalho, ele não quer ganhar protagonismo. Pelo contrário. May deseja que seu trabalho termine com pelo menos um funeral carregado de homenagens e de carinho, sem a solidão e a formalidade sem uma história por trás que muitas vezes ele tem que orquestrar.

O importante da história de May não é ele próprio, mas o que ele consegue fazer pelos demais. Com seu jeito dedicado, atencioso, metódico, persistente e muito discreto, o protagonista de Still Life cuida para que cada pessoa encontrada morta e sozinha no distrito londrino de Kennington tenha um final digno e respeitoso.

O novo chefe dele, o burocrata Sr. Pratchett (Andrew Buchan), em certo momento expõe aquele que é o pensamento de muita gente atualmente: para quê tanto esforço em relação a pessoas que morreram sem ninguém se estas pessoas já estão mortas e os vivos não se importam? Mas de fato é assim? Até acredito que para alguns desalmados e robôs humanos seja isso mesmo. Mas para pessoas como John May, que entendem em plenitude o que é o respeito pela pessoa humana, esteja ela respirando ou não, essa forma de pensar é absurda. Estou do lado de May.

De forma muito simples e natural acompanhamos a história deste sujeito, um funcionário público que ninguém valoriza – mas que encontra um pouco de reconhecimento perto do fim de sua carreira através de Kelly Stoke (a sempre excelente Joanne Froggatt) -, mas que nos faz refletir um bocado sobre valores fundamentais. Palmas para o diretor e roteirista Uberto Pasolini e para o genial Eddie Marsan, que dá vida para John May. Um filme singelo, mas carregado de emoção. Bela descoberta que merece ser compartilhada.

NOTA: 9,7.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Fiquei encantada pelo roteiro de Pasolini. Ele soube equilibrar de forma bem precisa o humor, o drama, (e quem diria) a “aventura” e o “suspense” em Still Life. (SPOILER – não leia se você ainda não assistiu ao filme). Boa parte da produção se desenrola no trabalho de investigação feito por John May sobre o seu “último caso”, o ex-presidiário, ex-morador de rua e ex-várias coisas William Stoke. Existe um interesse natural do espectador para saber mais sobre Stoke e também para ver como o trabalho de May vai terminar. Por isso mesmo o final desta produção é tão brilhante.

Interessante como um homem que vivia sozinho e que provavelmente terminaria da mesma forma com que várias das pessoas que ele velava terminaram – sem alguém para participar do “último adeus” – não se importava consigo mesmo. Altruísta, e para valer, ele queria dedicar a própria vida a tornar o final de desconhecidos mais digno, honrado. Talvez em algum momento, ao ver as fotos no álbum azul de primeira qualidade que ele mantinha em casa, May tenha se visto em uma foto envelhecida. Mas nem por isso ele se abatia ou pensava em si em primeiro lugar. Quem dera que mais pessoas fossem assim na vida real.

Importante para esta história os vários momentos de silêncio e de contemplação que o personagem principal propicia para o espectador. Na ausência de palavras, cada pessoa pode preencher aquele “vazio” com diferentes leituras e significados. Como nos momentos em que John May parava para contemplar as fotos do álbum azul ou para observar outras pessoas e lugares, o que poderia estar passando na cabeça dele. Certamente ele tinha uma noção sobre viver a vida e o papel que ele desempenhava nela muito diferente daquela cheia de “reconhecimento” e ego exaltado tão frequente nos dias atuais.

Fiquei em dúvida sobre a nota a dar para este filme. Pensei em um 10, mas depois diminui a avaliação. Especialmente porque o filme me fez lembrar de outra produção, esta sim com a nota máxima e comentada aqui no blog: Okuribito. Still Life me fez lembrar do filme japonês não apena porque os dois tratam dos cuidados com os mortos, mas também porque ressaltam valores importantes. Mas na comparação, ainda prefiro Okuribito – guardada as devidas proporções, já que os dois filmes apostam em formas de narrativa e elementos diferentes. Por isso dei a nota acima para Still Life.

Cada pessoa envolvida nesta produção está bem. Mas o trabalho de Eddie Marsan impressiona. O ator dá uma aula de interpretação. Inspirador. Além dele, vale comentar o bom trabalho de Joanne Froggatt, conhecida pela série Dowtown Abbey, que aparece aqui luminosa. Vale também citar o bom trabalho de Karen Drury como Mary, ex-namorada e companheira de Billy, e Neil D’Souza como Shakthi, amigo do homem morto e última missão de John May.

Falando em Mary, aqui vai uma observação importante. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). O filme não é óbvio nem neste momento, mas deixa a entender algo importante. Quando John May mostra as fotos de Kelly Stoke quando era criança para Mary, e ela se surpreende ao saber que o ex-companheiro que não queria ter uma família tinha uma filha, o roteiro deixa claro – ainda que não com todas as linhas – que quando saiu para não mais voltar, Stoke deixou Mary grávida. Ou seja, quando May insiste para ela ir no funeral de William, está pedindo isso para que o homem possa ter a filha e a neta, além da ex-companheira, em sua despedida derradeira. Bonito gesto de May que, apesar do desejo de tornar o funeral de Stoke especial, soube respeitar a vida que Mary teve que fazer após a saída de William – aparentemente fazendo o novo companheiro pensar que era o pai da filha de Mary.

Da parte técnica do filme, o maior destaque vai para a direção de Uberto Pasolini. O diretor sabe equilibrar com maestria cenas em que apresenta atenção total para a interpretação de Eddie Marsan e outras em que coloca o personagem principal e os demais desta história em perspectiva com os seus respectivos ambientes. Um filme planejado em todos os detalhes, dos diálogos sem sobras até os silêncios contemplativos em que a direção de Pasolini e a trilha sonora de Rachel Portman ganham destaque. Também vale elogiar o ótimo trabalho de edição da dupla Gavin Buckley e Tracy Granger e a direção de fotografia de Stefano Falivene.

Still Life estrou em setembro de 2013 no Festival de Cinema de Veneza. Depois, o filme participaria de outros seis festivais, incluindo os de Zurique e de Seattle. Nesta trajetória, Still Life recebeu sete prêmios e foi indicado a outros três. Entre os que recebeu, destaque para quatro prêmios recebidos no Festival de Cinema de Veneza: o C.I.C.A.E. para Uberto Pasolini, o Pasinetti de Melhor Filme, o Prêmio Cinematográfico Civitas Vitae prossima para Pasolini e o Venice Horizons de Melhor Diretor para o realizador. Todos prêmios secundários, como se pode observar, mas que demonstram a força desta produção.

Este é apenas o segundo filme dirigido por Uberto Pasolini. Antes de Still Life, ele dirigiu e escreveu o roteiro de Machan, lançado em 2008. Não vi o filme anterior, mas fiquei com vontade de acompanhá-lo a partir de agora. Eis um realizador com ideias interessantes e que sabe trabalhar bem os recursos do cinema.

Para quem se interessa em saber os locais em que foram filmadas as produções, Still Life foi totalmente rodado em Londres, com algumas cenas nos Arquivos Nacionais de Kew, em Surrey, também no Reino Unido.

Procurando saber um pouco mais sobre Uberto Pasolini, achei esse texto com entrevista dele no site Cineuropa. Através do texto, fiquei sabendo de algumas intenções do diretor italiano radicado no Reino Unido com Still Life. Por exemplo, para Pasolini, esta produção trata da vida e não da morte – segundo ele, este é um filme “sobre o valor da vida das pessoas”. Ele também comenta que teve vontade de escrever esta história por causa da curiosidade que ele tem “sobre o tema do isolamento, que é cada vez mais forte na sociedade ocidental”. E ele segue: “Não há mais sensação de proximidade. Antes de iniciar o filme, eu não sabia quem eram os meus vizinhos também”.

Mas além do aspecto social, explica Pasolini, houve também uma questão pessoal: “Eu comecei recentemente um divórcio e, depois de viver por muitos anos com minha esposa e três filhos, agora há noites em que eu me vejo voltando para casa e encontrando uma casa escura, onde ninguém está esperando por mim. Então eu me projeto para a vida de quem está só a cada dia. O ponto de partida visual para o filme foi a imagem de um enterro solitário, sem ninguém por perto. Quem já não se perguntou quantas pessoas iriam aparecer em seu funeral?”. De fato, estes são temas potentes do filme. Achei muito corajoso o diretor expor a si mesmo desta forma. Por isso ele é tão bom.

Interessante também que o diretor se baseou em pessoas reais que desempenham o papel de “oficiais de funeral” – função desempenhada por muitas pessoas em todo o Reino Unido. Pasolini fala a respeito: “Tudo começou com uma entrevista que li em um jornal de Londres de um oficial de funeral de Westminster. Eu decidi entrar em contato com ele. É um trabalho que sempre existiu. Há uma pessoa que o desempenha em todas as partes de Londres. Eu conheci cerca de trinta destas pessoas. Vi as casas dos falecidos e fui a funerais e cremações por seis meses. Alguns têm uma relação burocrática com esse trabalho, outros levam mais tempo tendo no memória aqueles que morreram sozinhos. O personagem principal John May é uma combinação de dois ou três destes profissionais. Há pouco de ficção. Mesmo as cartas e fotos vistas no filme são verdadeiras”. Uau! Muito bacana.

Still Life é uma coprodução do Reino Unido com a Itália.

CONCLUSÃO: Há quem se interesse apenas por histórias agitadas, com reviravoltas importantes, cheias de surpresa ou impactantes. Há quem se alimente de socos no estômago. Eu gosto deste estilo de cinema também, mas não apenas dele. Still Life caminha na margem contrária deste rio. Esta história fala de um sujeito “ordinário” que vive a vida tentando trazer um último momento de dignidade e de homenagem para pessoas que acabaram de morrer.

Uma figura que ninguém reconhece, que poucos sabem que existe, mas que dia após dia tenta fazer o seu trabalho com esmero. História de pessoas comuns me fascinam porque elas normalmente falam de valores fundamentais e volta e meia esquecidos. Este é o caso deste filme. Um libelo à vida, ao respeito ao próximo e ao amor que é possível colocar em cada pequeno gesto. Lindo e recomendado.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 25 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing, professora universitária (cursos de graduação e pós-graduação) e, atualmente, atuo como empreendedora após criar a minha própria empresa na área da comunicação.

9 respostas em “Still Life – Uma Vida Comum”

Oi Luciana!

Antes de mais nada, seja bem-vinda por aqui!

Então, para ser franca não sei em outras cidades, mas em São Paulo o filme está passando no CineSesc, com sessões as 15h, 17h e 21h.

Espero ter ajudado.

Volte sempre! Abraços!

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Oi Alessandra,
Obrigada por responder.
Moro em Brasília, ficarei atenta às sessões.
Ah parabéns pelo site, cheguei aqui após procurar no google uma critica sobre o filme “a caça”.

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O filme flui como água. A história é contada sem esforço, sem grandes reviravoltas. Leve, sincero e interessante até que surge aquele final inesperado e de uma beleza sem palavras. (spoiler) R.I.P. John May.

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Olá Alessandra, tudo bem? Deixei esse filme de lado por um período. Que lástima! Simplesmente perfeito. Continuo acompanhando o site. Belo trabalho. Abraços.

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