Um filme em preto e branco para retratar uma vida sem cores. Ou, pelo menos, com cores ausentes por boa parte do tempo. Mas sempre há algum prazer, alguma cor, aqui e ali, apesar de tanta dureza e da falta de tanto. Pigen Med Nålen é um filme duro e feito, aparentemente, para nos lembrar que costumam tirar o máximo de quem pouco tem. Há muita exploração em cena e poucas oportunidades para a protagonista sorrir ou sonhar. Mas, apesar de tanta dureza nessa história, um inusitado tom de esperança se apresenta no final.
A HISTÓRIA
Rostos em primeiro plano, ocupando a parte central da tela, mas com outras imagens se sobrepondo a eles. Em alguns momentos, a sobreposição de imagens, junto com a trilha sonora dramática, nos causa angústia. Algumas sequências dão a sensação de que estamos vendo a monstros ou a figuras monstruosas, retorcidas, talvez deformadas. Essas sensações são uma bela introdução para a história que virá a seguir e que nos apresenta, de fato, muitas dessas sensações e elementos. Corta.
Uma mulher esfrega as mãos com vigor e, depois, lava outras partes do corpo na mesma água da pia. Até que alguém bate à porta. Ela pergunta quem é, e o homem diz que é Jensen (Per Thiim Thim). Ela pede um segundo, seca o rosto e as mãos e abre a porta. Jensen diz que ela, Karoline (Vic Carmen Sonne) vai ter que se mudar, vai ter que sair, porque ele vai alugar o local para outra pessoa. Ela diz que mora ali, Jensen retruca que ela não paga pelo local. Karoline diz que pode pagar, mas ele já ouviu isso antes e diz que tem que mostrar o apartamento para outras pessoas. Em breve ela terá que sair do local e se virar para não morar na rua. Esse é apenas o início do calvário de Karoline.
VOLTANDO À CRÍTICA
(SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Pigen Med Nålen): Que filme interessante, devo dizer. Primeiro, por nos resgatar um estilo de fazer cinema que marcou a história há cerca de 100 anos. Sim, estou falando do expressionismo alemão, um estilo do cinema mudo dos anos 1920 que faz muito sentido ter sido resgatado nesta produção pelo diretor e roteirista Magnus von Horn. Para quem já quer começar a ler essa crítica com esse “resgate” do expressionismo alemão, indico esse texto do site da Academia Internacional de Cinema.
Faz total sentido Horn resgatar alguns dos princípios e da base do expressionismo alemão para nos contar essa história porque Pigen Med Nålen não apenas está ambientado nos período logo após a Primeira Guerra Mundial – mesma época em que o expressionismo alemão nasceu – como nos conta uma história cheia de agruras, temas fortes, com a escolha de mostrar tudo isso em “uma representação subjetiva do mundo” em muitos momentos, com cenas que intercalam a dura realidade da protagonista e de outros personagens e outras sequências em que vemos os sentimentos deles e sua imaginação se revelar quase como em sonho.
Muito interessante essa escolha de Horn. Faz muito sentido e nos remete a um tempo em que o cinema nos apresentava histórias provocativas, que exageravam a realidade em alguns momentos para nos fazer olhar para dentro, para nossos sentimentos e para a capacidade humana de ferir os demais. Pigen Med Nålen tem muito disso. Esse é um filme, essencialmente, sobre exploração humana. Em diversos sentidos.
A produção começa com a protagonista da história, Karoline, sendo despejada. Não importa o quanto ela implora para o dono do local, inclusive argumentando que mora há anos ali… ele está cheio dela e não quer saber mais de sua presença. Prefere apostar em novos inquilinos que, talvez, lhe deem “menos dor de cabeça”. Ele não sabe disso, claro, porque não há como saber de antemão que inquilinos vão dar dor de cabeça ou não, mas a verdade é que ele quer Karoline fora dali.
Interessante que logo nesse começo do filme somos apresentados a uma cena que parece ter pouca importância na história – e realmente ela tem pouca importância na história – 🙂 mas que, apesar disso, essa cena acaba sendo bastante ilustrativa sobre algo que será bem relevante depois em Pigen Med Nålen. A nova inquilina do apartamento onde Karoline morava e da onde ela está sendo expulsa dá um tapa daqueles na filha pequena quando a garotinha diz que não quer ficar no local.
(SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme ainda). Mas por que essa cena é bastante ilustrativa? Porque ela mostra como naquela época as crianças eram um “fardo” para muitas mães e famílias. Elas eram, quase na totalidade do tempo, “descartáveis”. É duro escrever isso e pensar nisso, mas é o que vemos em Pigen Med Nålen. Mesmo o filme não trazendo a data em que a história se passa antes da trama começar, sabemos que a produção é ambientada logo após a Primeira Guerra Mundial.
Bem, não precisamos ter vivido aquela época na Europa para conseguir usar a imaginação e pensar em toda a miséria que existia por lá naquela ocasião. E quando adultos estão na miséria, mal tendo oportunidades de trabalho e dinheiro para sobreviver, crianças podem ser consideradas um “fardo”, um gasto a mais que é impossível, que deveria ser evitado ou que é “desnecessário”, não é mesmo? Sim, isso é o extremo da crueldade e da desumanidade. Mas não é difícil de imaginar esse cenário. E é justamente isso que temos como questão central desta produção.
Justamente uma época de miséria em que os adultos fazem malabarismos para sobreviver e quando as crianças são “descartáveis”. Ou quase isso. Elas são vistas, em geral, como um problema. Existe pouco amor em cena. Isso é um fato. Na época, com as mulheres tendo tido poucas oportunidades de estudar e com os filhos nascendo sem planejamento, justamente porque faltava informação sobre como evitá-los, muitas vezes a notícia de uma gravidez era vista com desespero, extrema angústia e sofrimento.
Ainda bem, um século depois do que vemos em Pigen Med Nålen, muita coisa mudou. As mulheres estudam, muitas vezes mais que os homens, em média, e há muita informação sobre como evitar uma gravidez. E mesmo quem não consegue evitar uma gravidez mas não deseja ter um filho tem outras formas de resolver a situação do que naquela época. (SPOILER – não leia se você ainda não assistiu ao filme). E sim, não dar para as mães a opção de um aborto seguro, algumas semanas depois da gestação e muito antes do feto tornar-se uma criança, um avanço importantíssimo da Medicina, só abre brecha para outros crimes acontecerem.
Crimes diversos, devo dizer. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Desde o assassinato da criança bem depois dela ter nascido, como vemos em Pigen Med Nålen, através das mãos de uma mulher que está atrás apenas de dinheiro e que vê uma oportunidade de “negócio” ao perceber que muitas jovens não sabiam o que fazer com seus filhos, até o abandono das crianças em orfanatos ou com outros parentes, o assassinato dos filhos pelos próprios pais após algum momento de desespero, a morte por desnutrição ou por alguma doença que poderia ser evitada se os pais tivessem acesso à vacinas ou ao sistema de saúde, sem contar o abandono afetivo e até a exploração das crianças por parentes próximos. Tudo isso acontecia na época em que esse filme está ambientado e acontece até hoje quando os filhos não são planejados e não são desejados. Mas quem quer falar sobre isso de forma franca?
Enfim, essa é uma produção muito interessante que retrata com um olhar cuidadoso, a partir da perspectiva de uma mulher que viu seu marido ir para a guerra e não voltar, como era a vida das mulheres nos anos após o fim da Primeira Guerra Mundial. Um filme bem interessante sobre esse aspecto. Mas que vai além disso.
(SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Temos em cena uma protagonista que é explorada de muitas formas. Primeiro, ela precisa sair do local em que estava vivendo por muitos anos… Karoline resiste bastante em sair do local porque sabe que o que ela ganha como costureira em uma fábrica próxima será insuficiente para ela viver com a dignidade com que ela vive atualmente. Certamente o dinheiro que ela recebe será suficiente para ela viver em um local muito pior. E é o que acontece.
Em seguida, ela é chamada pelo diretor da fábrica, Jørgen (Joachim Fjelstrup), para falar sobre o pedido dela de ajuda para viúvas de soldados que foram para a guerra. Ele pergunta como ela está, e Karoline diz que foi despejada do apartamento onde ela morava. Jørgen questiona se ela recebeu alguma notícia do marido, mas ela diz que não, então ele comenta que não pode ajudá-la financeiramente sem ter a certidão de óbito do marido dela em mãos. Mas dizendo-se “comovido” com a história dela, o diretor da fábrica pega o nome do marido dela e diz que vai ver com conhecidos se alguém descobre algo sobre o que teria acontecido com ele, afinal, “ninguém desaparece do nada”.
Esse é o início da narrativa de Pigen Med Nålen. Mas nada está tão ruim que não possa piorar. E muito. Mesmo em uma situação complicadíssima e ignorada por boa parte do tempo pela maioria das pessoas, Karoline é uma mulher bonita e interessante – como todas as mulheres – e acaba chamando a atenção do diretor da fábrica. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Ela é iludida por uma “história de amor”, mas logo a mãe de Jørgen (interpretada por Benedikte Hansen) relembra o filho sobre a “classe social” deles e coloca a protagonista “em seu devido lugar”. E sim, o “filhinho da mamãe” dispensa Karoline rapidamente de sua vida.
Jørgen é um clássico. Um homem rico e que ilude uma mulher enquanto é do interesse dele. Quando a situação se torna séria, ela é facilmente descartada. Mas antes disso acontecer, existe um pequeno “complicador” que aparece em cena. Quando Karoline acredita ainda na relação que tem com Jørgen, ressurge em sua vida o desaparecido Peter (Besir Zeciri), seu marido, que ela acreditava que tinha morrido na guerra.
O filme então entra em outro tema recorrente no cinema pós Primeira Guerra Mundial: o espólio do conflito e as “aberrações” que surgiram antes e depois daquela capítulo da história. (SPOILER – não leiam se vocês não assistiram ao filme). Sem poder viver com Karoline por muito tempo e bastante deformado após a guerra, Peter acaba caindo em um circo – porque sim, na época as pessoas “se divertiam” com o que havia de mais estranho e bizarro. Cruel, não? Mas esse filme não alivia.
Para tornar a vida de Karoline mais complicada, além da volta do marido desaparecido quando ela estava engatada em um romance com o diretor da fábrica, ela descobre que está grávida. E, claro, do homem rico. Primeiro, a mãe do diretor da fábrica consulta um médico para saber se é possível ainda submeter Karoline a um aborto. Ele diz que já havia passado do tempo, então a mãe de Jørgen relembra o filho e Karoline sobre o abismo “social” que existe entre eles. E os sonhos de Karoline viram pó.
Grávida e sozinha, o que ela vai fazer? Ela, que mal conseguia sobreviver, como iria colocar uma criança no mundo? Bem, essa é a questão central de Pigen Med Nålen. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). O título da produção remete a uma das saídas possíveis para alguém na posição de Karoline na época: usar uma agulha para provocar um aborto e matar a criança no ventre. Mas ela não consegue fazer isso e acaba sendo socorrida por uma estranha na casa de banho em que vai para tentar provocar o aborto.
Ao conhecer Dagmar (Trine Dyrholm) naquele local, a vida de Karoline muda. Dagmar é uma mulher experiente e socorre Karoline após ela tentar fazer um aborto em si mesma. Após socorrer a jovem, Dagmar diz que pode ajudá-la a resolver seu problema. Como as aparências enganam, Karoline vê a aparência de Dagmar e acredita que ela é uma mulher distinta e séria, afinal, ela está muito bem vestida e é elegante. Ajuda no disfarce de Dagmar ela estar sempre com uma garotinha, Erena (Ava Knox Martin).
Não demora muito para desconfiarmos de Dagmar. Afinal, aquele provérbio “quando a esmola é demais, o santo desconfia” não existe ao acaso. Uma pessoa tão explorada como Karoline teria encontrado um “anjo” sobre a Terra? Bem, difícil de acreditar… (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). E, de fato, aos poucos Karoline vai se aproximando de Dagmar e vai percebendo que ela é tudo, menos um anjo. Na verdade, não sei vocês, mas eu já desconfiei de Dagmar logo no primeiro contato de Karoline com ela após a jovem ter tido a filha e ter aparecido no endereço da mulher para saber melhor sobre a “oferta” que ela tinha feito na casa de banho de ajudar a moça com seu “problema”.
Não apenas a aparência de Dagmar estava muito diferente do que no primeiro contato que elas tinham tido como o homem presente na casa, Svendsen (Ari Alexander), parecia muito suspeito. O que havia por trás daquela “fachada” e qual era a verdadeira história daquelas pessoas? Não deixa de ser interessante que tudo que eu comentei até aqui se passa em metade do filme. Pois sim. E o que mais Pigen Med Nålen teria para nos apresentar? Pois a partir do momento que Karoline busca Dagmar em seu endereço é que essa produção se torna ainda mais sombria.
Como eu comentei antes, nada está tão ruim que não possa piorar. E é exatamente isso que acontece na vida da protagonista desta história. Claro que a piora não é imediata e nem radical. Mas tudo vai mudando e ficando cada vez mais estranho pouco a pouco. Quando Karoline procura Dagmar em sua casa, ela já tinha tido a filha e tinha até recebido a “oportunidade” de criar a menina junto do marido. Mas ela não confia em Peter porque ele tem sonhos agitados e um comportamento que coloca medo na mulher – claramente ele sofre de transtorno de estresse pós-traumático, por causa de tudo que viveu na guerra, e algumas de suas crises assustam Karoline. Então ela não acha que ter a filha do lado dele será uma alternativa segura.
O que Dagmar “vende”, literalmente, é a promessa de um futuro melhor para as crianças de mulheres miseráveis como Karoline. Segundo Dagmar, ela encaminha as crianças para famílias que tem recursos financeiros e que seriam “pessoas boas”. Certamente existiram na história mulheres como Dagmar, que realmente prometiam e cumpriam essa promessa, que ganhavam dinheiro para servir de “ponte” entre mulheres sem condições de criar seus filhos e pessoas que poderiam fazer isso. Mas o risco é imenso, não é mesmo?
Primeiro, quem garante que essas pessoas eram realmente boas? Havia quase uma infinidade de outros “usos” para essas crianças… elas poderiam ser exploradas de diversas formas diferentes. Em um mundo cruel como o que vemos em Pigen Med Nålen e que, de fato, existiu e ainda existe em algumas partes do mundo, infelizmente as crianças podem ser exploradas de muitas formas diferentes. Isso certamente passa pela cabeça de Karoline que, apesar de ser uma mulher cheia de esperança, no fundo conhecia um pouco da dureza da vida.
E essa dúvida passou na cabeça não apenas de Karoline, mas de outras mães que decidiram entregar suas crianças para Dagmar. (SPOILER – não leia se você ainda não assistiu ao filme). Da metade da produção para a frente, vemos Karoline entrando na vida de Dagmar – afinal, ela não tinha muito o que perder e nem tinha muitas oportunidades na vida para escolher – e se aproximando desta personagem mais que controversa. No fim, ela descobre que está morando e sob “os cuidados” de uma serial killer. Uma mulher que ousa dizer em seu próprio julgamento que estava ajudando as pessoas a se livrarem de seus problemas e chamando os outros de hipócritas.
Até um certo ponto o que ela diz não é uma total mentira. De fato, as crianças que eram entregues para ela eram vistas como “problemas”. Muitas mães não queriam ter engravidado ou não queriam ter filhos. Outras, claro, se viram desesperadas sem ter condições financeiras ou psicológicas para serem mães. Mas algumas, após passar o desespero inicial daquela situação, se arrependiam de “doar” seus filhos. Mas daí era tarde demais. Claro que ninguém queria que seus filhos tivessem o destino que tiveram nas mãos de Dagmar, mas não é uma mentira também quando ela diz que estava desempenhando um papel de “resolver” o problema dos outros que, muitas vezes, não queriam saber daquelas crianças ou não se importavam realmente com elas.
É triste pensar – e bastante pesado – que realmente existiram pessoas como Dagmar e que várias outras, em outras funções – como médicos que recebiam bem para fazer abortos clandestinos -, se aproveitavam dessa falta de estrutura para tratarmos sobre sexualidade e gestação. Se as pessoas tivessem mais informações e mais acesso a meios contraceptivos, quem sabe a sociedade da época e a nossa sociedade atual tivesse muitos menos problemas. Mas isso é sonhar alto de mais e ser um pouco pueril, como a protagonista desta história.
Infelizmente a sociedade da época em que se passa a história de Pigen Med Nålen e a sociedade em que vivemos atualmente, mesmo em países desenvolvidos ou com desenvolvimento considerável, não estão preparadas para realmente tratar sobre maternidade e paternidade. O que eu sei, e com muita propriedade para falar, já que, como você, eu conheci homens e mulheres que não deveriam ter sido pais ou mães, é que muitas e muitas pessoas não nasceram para serem pais e mães e que seus filhos pagam o preço por essas pessoas não terem essa consciência antes. O assunto filhos deveria ser tratado com muita seriedade e com muita reflexão mas, infelizmente, essa não é a regra.
Esse é um dos temas de Pigen Med Nålen. Assim como a dureza da época em que se passa essa história. Esse é um filme bastante cru, denso, com diversos momentos de crueldade e de exploração do outro mas que, surpreendentemente, termina com um sopro de esperança. Pigen Med Nålen nos mostra que é possível sobreviver mesmo em cenários muito adversos e vencer o mal que nos fazem, mesmo ele sendo muito grande ou mesmo algumas pessoas sendo muito cruéis. É possível sobreviver e é possível sim encontrar maneiras de ser feliz ou de, ao menos, buscar no dia a dia momentos de felicidade.
Mesmo tendo passado por tudo que passou nessa história, Karoline ainda tem um olhar generoso para alguém que não tinha culpa de nada. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). E assim, mesmo sem muitas condições, ela estende a mão e decide ser mãe de Erena, que acabou parando em um orfanato quando Dagmar foi presa e depois julgada. Ela se sentiu um pouco responsável pela menina e, acima disso, percebeu que tinha afeto e carinho por ela. Sempre é possível recomeçar, e que grandeza Karoline nos apresenta ao fazer isso ainda estendendo a mão para a pequena Erena. Um belo final para um filme bastante duro, mas que nos faz pensar sobre toda essa problemática social.
NOTA
9.
OBS DE PÉ DE PÁGINA
Então, minha gente, há quanto tempo eu não apareço por aqui! Uau! Até eu fiquei espantada. Desde a transmissão do Oscar e da cobertura que eu fiz da premiação eu não aparecia por aqui com um novo conteúdo. Peço desculpas por isso. Foi uma longa ausência, eu sei. Talvez a mais longa que eu já tive aqui no blog – ou uma das mais longas. Na verdade, fiquei curiosa para saber sobre isso… se teve alguma vez que eu fiquei tanto tempo sem aparecer por aqui.
Então fui olhar no arquivo do blog. Eu tive a sorte e a felicidade de atualizar esse espaço pelo menos uma vez por mês até fevereiro de 2011. A partir dali, já de volta no Brasil e voltando a ter uma rotina super corrida, passei a falhar em alguns meses… Até setembro de 2019, eu falhei, no máximo, em um mês. Ou seja, publicava em um mês qualquer, ficava um mês sem aparecer, mas voltava no mês seguinte.
Em outubro e novembro de 2019, pela primeira vez, deixei de publicar por dois meses seguidos… Em 2020, fiquei quatro meses sem aparecer. E em 2021, fiquei de maio até novembro sem publicar nada por aqui. Foram sete meses, portanto, de ausência. Sim, com a pandemia de Covid-19 mudando a vida de todos nós, eu também me perdi um pouco nas demandas que surgiram e acabei ficando ausente esse tempo todo. Ou seja, esses quatro meses que eu fiquei ausente agora, em 2025, não foi o meu maior sumiço aqui no blog. Ainda assim, senti falta de vir até aqui compartilhar com vocês as minhas impressões sobre os filmes que eu ando vendo. Tentarei ser mais presente a partir de agora.
Comentei um pouco sobre essa minha ausência para dizer que não foi agora que eu assisti a Pigen Med Nålen. Uma pena. Eu não gosto disso. Gosto de assistir a um filme e logo começar a escrever sobre ele por aqui. Prefiro esta forma de trabalhar porque eu acabo colocando na minha crítica e na minha análise uma impressão mais “fresca” do que eu vi. Acabo repassando para o texto parte do que senti ao vivenciar a experiência apresentada pelos realizadores do filme. Mas, infelizmente, não foi isso que eu fiz com Pigen Med Nålen.
Assisti esse filme há alguns meses – dois meses, pelo menos, ou até três – e só agora estou conseguindo parar para falar sobre ele. Então algumas impressões se perderam no caminho. Peço desculpas por isso. Mas tentei rever alguns trechos da produção para “refrescar” a minha memória e para resgatar algumas questões que eu tinha achado relevantes sobre esta produção logo após assisti-la pela primeira vez.
Como quem acompanha o blog há mais tempo deve imaginar, escolhi Pigen Med Nålen porque esta é uma das produções que concorreu na minha categoria preferida do Oscar este ano, a categoria de Melhor Filme Internacional. Quero sim zerar a lista de produções que concorreram nesta categoria do Oscar 2025, especialmente porque este ano foi especial para o Brasil, sendo o ano em que ganhamos o Oscar pela primeira vez.
Eu sempre gosto de assistir ao máximo de filmes que concorrem nessa categoria e, quando eu não consigo fazer isso, assistir ao máximo dos filmes que foram indicados pelos seus países para o Oscar, eu gosto de ao menos conferir a lista dos 5 finalistas desta categoria. Ainda faltam dois filmes para zerar a lista deste ano… depois que eu fizer isso, prometo esquecer do Oscar 2025 e começar a assistir a outras produções de forma aleatória. Quero terminar o ano vendo alguns dos filmes mais comentados de 2025, sejam eles pré-candidatos ou não para o próximo Oscar. Espero, de verdade, conseguir isso e que muitos de vocês me acompanhem nessa jornada. 😉
Por tudo que eu comentei antes, por eu ter conseguido assistir a poucos dos 85 filmes indicados para a categoria Melhor Filme Internacional do Oscar 2025, fica difícil dizer se Pigen Med Nålen mereceu, de fato, estar na “short-list” de 10 produções que avançaram na disputa por uma vaga entre os finalistas desta categoria e por ter chegado até um dos cinco postos dos filmes que poderiam levar a estatueta dourada para casa. Meu sonho é um dia chegar a assistir a pelo menos metade de uma lista das produções indicadas em um ano do Oscar para poder ter essa certeza.
Apesar disso, acho sim que Pigen Med Nålen tem muitas qualidades e que ele mereceu receber a visibilidade de ser uma das cinco produções estrangeiras que concorreu ao Oscar deste ano. Para mim, o roteiro e a direção de Magnus von Horn são dois pontos altos da produção. Ele faz um trabalho impecável de direção, resgatando boa parte dos planos e dos conceitos do surrealismo alemão, fazendo uma homenagem a esse estilo de fazer filmes, ao mesmo tempo em que trouxe elementos do cinema atual – e europeu, na essência – para sua obra. Um trabalho de construção muito interessante e bem realizado.
Vale dizer que o roteiro de Pigen Med Nålen foi escrito por Magnus von Horn ao lado de Line Langebek Knudsen, que é quem teve a ideia desta história. Acho muito interessante como eles não perdem tempo na trama com personagens secundários ou com um desenvolvimento lento da história. Claro, o filme não tem a proposta de ter uma trama aceleradíssima, mas se formos pensar na dinâmica que tínhamos no surrealismo alemão e no que vemos em cena aqui, Pigen Med Nålen tem uma dinâmica muito mais moderna – tanto que todo o contexto da protagonista nos é apresentado até a metade do filme, antes de mergulharmos na história da antagonista e “vilã” do filme.
(SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Interessante como o roteiro também não nos apresenta “apenas” a história de uma mulher serial killer, o que poderia ser o foco central da trama, e nem nos apresenta a história de uma “pobre mulher” que é vítima do contexto da Europa logo após o fim da Primeira Guerra Mundial. De forma muito acertada, a meu ver, o roteiro de Pigen Med Nålen nos apresenta essas duas histórias centrais, tornando o filme bastante dinâmico e com uma narrativa que amplia o campo de visão do espectador.
Além do roteiro e da direção que vemos em Pigen Med Nålen, que são dois pontos de destaque do filme, um outro elemento fundamental para a qualidade desta produção é a direção de fotografia de Michal Dymek. Em muitos momentos parece que temos quadros com obras de arte emolduradas ou quadros com fotografias de época na nossa frente porque a escolha da cena é belíssima e uma verdadeira obra de arte. Impressionante. Tão marcante quanto a fotografia deste filme é a sua trilha sonora, em um trabalho marcante e importante para a condução da trama feito por Frederikke Hoffmeier.
Estes aspectos são os que mais se destacaram na produção. Juntamente com o trabalho dos principais nomes em cena. Impossível não destacar as atuações impressionantes de Vic Carmen Sonne como a protagonista Karoline e da veterana e sempre divina, além de muito marcante nessa produção, Trine Dyrholm como a complexa personagem de Dagmar. Essas duas atrizes em cena fazem um trabalho impecável e muito marcante. Impossível não lembrar delas por um bom tempo depois que o filme acaba, de tão forte que são suas presenças em cena.
Em papéis menores, mas que também apresentam um bom grau de potência, posso destacar o trabalho dos coadjuvantes Besir Zeciri como Peter, um homem que parece ter um bom coração e que é mais uma vítima daquela época cheia de violência e de injustiças. Na história, Peter é o marido da protagonista que parece desaparecido, sendo uma possível vítima da guerra, mas que depois ressurge buscando um lugar no mundo sem muitas perspectivas para ter ainda espaço na sociedade por causa do que lhe aconteceu na guerra. Personagem interessante e bem interpretado por Zeciri.
O contraponto do marido da protagonista é o personagem de Jørgen, interpretado muito bem por Joachim Fjelstrup, um homem bonito, elegante, que parece ter tudo – inclusive uma mãe castradora e super controladora. Ele parece ser o típico “filhinho da mamãe”, aquele cara que não tem nenhuma autonomia – ou baixíssima margem para agir por si mesmo – e que acaba ficando sozinho porque “ninguém é boa suficiente para ele”, aparentemente. Um cara com todas as possibilidades do mundo mas, na prática, aparentemente com menos do que o “miserável” Peter, mesmo este último sendo um homem com poucas oportunidades na vida.
O que é interessante, esse contraponto, mesmo ele sendo pouco explorado na história. Afinal, o que é ter? Quem pode ser considerado rico? Muitas vezes quem tem muito dinheiro só tem isso mesmo, muito dinheiro, mas um vazio existencial e de perspectivas gigantesco. Pessoas com condições muito “piores”, ao menos financeiramente, podem ser muito mais ricas de valores e apresentarem uma capacidade muito maior de amar e de exercer sua liberdade.
Outros coadjuvantes que merecem ser citados por aqui pelo belo trabalho que apresentam levando em conta a complexidade de seus papéis são Tessa Hoder como Frida, a melhor amiga de Karoline e uma pessoa que acaba sendo importante para o desfecho da história; e Ava Knox Martin como Erena, a garotinha que é criada por Dagmar e que serve de “fachada” e de instrumento para a mulher ganhar mais confiança de suas vítimas. Elas são, além dos atores que eu já citei, as personagens secundárias com maior tempo de tela e destaque na história. Fazem um belo trabalho.
Há outros atores que fazem papéis menores, mas que tem uma boa presença em cena, e vale citá-los por aqui: Ari Alexander como Svendsen, o homem misterioso que aparece volta e meia na casa de Dagmar e que parece ser um homem que a explora de algumas maneiras – através do sexo e tirando dinheiro dela, por exemplo, ainda que não fique bem claro o quanto Dagmar é explorada ou conivente com aquela relação um tanto estranha e não totalmente definida para a gente; Liv Vilde Christensen como uma das garotas que aparece na casa e na loja de doces de Dagmar para dar a criança que teve para ela – chama a atenção essa jovem por ela ser realmente muito nova, possivelmente uma menor de idade; Søren Sætter-Lassen como o dono do circo onde Peter e, depois, Karoline vão trabalhar e pedir abrigo; Per Thiim Thim como Jensen e Anna Tulestedt como uma velha senhora, ambos pessoas que alugaram locais em que Karoline viveu enquanto podia pagar por uma hospedagem; Benedikte Hansen como a mãe controladora, classista e preconceituosa de Jørgen; e Jakob Højlev Jørgensen como o médico chamado pela mãe de Jørgen para verificar se ainda seria possível fazer um aborto em Karoline sem perguntar se a moça queria isso – afinal, é essa a “solução” que os ricos dão para o “problema” de alguma moça que eles não querem para o filhos deles engravidar.
Além dos aspectos técnicos que eu já citei e que, para mim, são os pontos de destaque da produção, vale citar alguns outros quesitos que tornam esse filme uma bela peça de cinema – muito bem acabada, diga-se. São aspectos técnicos que nos ajuda a vivenciar aquela época porque nos transportam no tempo. Vale citar, nesse sentido, os figurinos desenhados por Malgorzata Fudala e Zuzanna Kot; o designer de produção de Jagna Dobesz; a direção de arte de Ristergren Albistur Lisette; a cenografia de Ewa Mroczkowska; a maquiagem capitaneada por 14 profissionais; e o departamento de arte que envolveu o trabalho de 24 profissionais. Para além destes aspectos, vale citar o belo trabalho do editor Agnieszka Glinska, que ajuda o diretor a realizar os seus planos com o roteiro e a dar o ritmo certo para essa produção.
Antes de finalizar essas notas adicionais sobre a produção, quero comentar um pouco sobre o realizador por trás de Pigen Med Nålen. O diretor e roteirista Magnus von Horn tem 41 anos de idade e nasceu na cidade de Gotemburgo, na Suécia. Ele estreou na direção com o curta Radek em 2007. Depois, Magnus dirigiu três curtas antes de estrear na direção de seu primeiro longa, Efterskalv, em 2015.
Ou seja, apenas 10 anos após lançar seu primeiro longa como diretor ele já conquistou uma indicação ao Oscar com Pigen Med Nålen. Antes do filme indicado ao Oscar, ele dirigiu um outro longa, Sweat, em 2020, e uma série de TV. Ou seja, ele é um nome novo e que merece nossa atenção. Quem sabe o que mais ele poderá nos apresentar em breve?
A atriz Vic Carmen Sonne, que vive a protagonista desta produção e que tem um aspecto e uma fisionomia que casam com perfeição com a proposta visual e de estilo do filme, tem 31 anos de idade e 30 trabalhos no currículo. Antes de estrelar Pigen Med Nålen, ela foi reconhecida com prêmios por seu trabalho nas produções I Blodet (2017), Vinterbrødre (2018) e Holiday (2019). Após o sucesso no filme indicado ao Oscar em 2025, ela foi premiada por Bullshit (2025).
Agora, o que falar da atriz Trine Dyrholm? Ela é uma diva e uma das melhores atrizes da história da Dinamarca, sem dúvida alguma. Uma veterana da atuação que sempre nos entrega muito. Trine tem 53 anos de idade, impressionantes 78 títulos no currículo como atriz e 37 prêmios no currículo. Filmes em que ela estava no elenco foram indicados em três ocasiões diferentes ao Oscar de Melhor Filme Internacional. Antes de Pigen Med Nålen, ela fez parte do elenco das produções Hævnen (com crítica neste link) e En Kongelig Affære, indicadas ao Oscar nos anos de 2011 e 2013, respectivamente. E Hævnen inclusive ganhou o Oscar na categoria Melhor Roteiro Internacional em 2011.
Eu sou muito fã da atriz Trine Dyrholm. Além de Hævnen, comentei aqui no blog outros filmes estrelados por ela: Kollektivet, de 2016, comentado por aqui; e Du Forsvinder, de 2017, com crítica acessível neste link. Ainda preciso assistir a mais filmes dela, porque ela é uma intérprete acima da média, sem dúvida alguma.
Antes de finalizarmos, vale trazer uma curiosidade sobre esse filme que os produtores divulgaram na fase de divulgação de Pigen Med Nålen. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Como a produção cita no final, Pigen Med Nålen é inspirado em fatos reais, especialmente nos crimes cometidos por Dagmar Overby, uma mulher condenada por ter assassinado nove crianças que estavam sob seus cuidados entre os anos de 1913 e 1920. Apesar de ter sido condenada por esses crimes, há estimativas que ela pode ter assassinado até 20 crianças. Em março de 1921 Dagmar, que atuava como cuidadora de crianças, foi condenada à morte mas, depois, a pena dela foi convertida em prisão perpétua. Ela acabou morrendo na prisão em 1929 aos 42 anos de idade.
Pigen Med Nålen foi indicado pela Dinamarca para o Oscar 2025. O filme concorreu com outras 84 produções e conseguiu uma das cinco vagas como finalista na categoria Melhor Filme Internacional. A produção vencedora do Oscar 2025 nesta categoria foi Ainda Estou Aqui, indicado pelo Brasil, e com crítica neste link.
Pigen Med Nålen é uma coprodução da Dinamarca com a Polônia, a Suécia, a França e a Bélgica.
Pigen Med Nålen ganhou 34 prêmios e foi indicado a outros 29 – incluindo a indicação ao Oscar 2025 na categoria Melhor Filme Internacional e ao Globo de Ouro 2025 na categoria Melhor Filme em Língua Não-Inglesa. Entre os prêmios que o filme recebeu, destaque para os de Melhor Design de Produção Europeu e Melhor Compositor Europeu no European Film Awards; para 11 prêmios recebidos pelo filme no Festival de Cinema Polonês, incluindo os prêmios de Melhor Filme segundo as avaliações dos jornalistas e do júri jovem, Melhor Atriz Coadjuvante para Trine Dyrholm e Melhor Filme no Silver Lions.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,5 para Pigen Med Nålen. O site Rotten Tomatoes, por sua vez, apresenta o nível de aprovação de 93% para o filme, fruto de 100 críticas positivas e de apenas oito críticas negativas. O site Metacritic apresenta um “metascore” de 82 para o filme, resultado de 22 críticas positivas para a produção, além de apresentar o selo “Metacritic Must-see” para Pigen Med Nålen.
De acordo com o site Box Office Mojo, Pigen Med Nålen teria faturado US$ 531,3 mil nos cinemas pelo mundo, sendo US$ 112,2 mil o resultado das bilheterias nos Estados Unidos e US$ 349,4 mil nos cinemas da Polônia.
CONCLUSÃO
Miséria, condições insalubres de vida, fome, desesperança, guerra, feridas diversas, crimes. Pigen Med Nålen nos traz alguns dos retratos mais cruéis da vida, todos eles causados por pessoas que fazem mal umas às outras. Um filme duro, mas bonito e angustiante ao mesmo tempo. E que nos fala sobre como alguns podem ter facilidade em condenar uma realidade sobre a qual eles também são um pouco culpados.
Uma produção interessante, bem conduzida, com ótimos atores e com uma direção e uma fotografia que nos remetem claramente ao expressionismo alemão. Resgate portanto interessante de uma forma de fazer filmes há um tanto esquecida, mas que faz sentido ser resgatada pelo estilo de história narrada. Vale ser visto, especialmente se você aprecia um cinema mais artístico e menos óbvio, muito distante da facilidade narrativa dos blockbusters. Um filme sobre uma época muito complicada, mas com diversos fatos retratados que existiram, e com parte daquela dureza de existência ainda válida em muitas partes. Produção bem realizada, que provoca o espectador na medida certa, e que nos faz pensar.
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