Existem alguns filmes de espionagem interessantes por aí, assim como produções que tratam de “gênios” desprezados, mas um filme que aborde estes dois temas ao mesmo tempo com bom humor e sacadas perfeitas não se encontra facilmente. Fay Grim consegue fazer isso com perfeição. Admito que não assisti ao primeiro filme com os personagens que aparecem neste novo filme: Henry Fool (que ganhou o título no Brasil de As Confissões de Henry Fool). Mas mesmo sem ter assistido ao filme “inicial” da grife com o personagem misterioso, adorei esta continuação. O diretor e roteirista tem estilo e linguagem afiada. Os atores conseguem interpretações frescas, a direção de fotografia é equilibrada e a edição criativa. Uma boa surpresa.
A HISTÓRIA: Fay Grim (Parker Posey) vive sozinha desde que o pai de seu filho desapareceu. Gari misterioso, Henry Fool (Thomas Jay Ryan) fugiu do país se passando pelo irmão de Fay, o admirado escritor Simon (James Urbaniak). Julgado como cúmplice no crime de falsidade ideológica, Simon desde então ficou preso. Fay considera a ausência de uma figura paterna em casa como a principal razão do filho adolescente Ned (Liam Aiken) caminhar fora da linha. Quando o garoto é expulso do colégio, ela se preocupa em tirar Simon da prisão, aceitando para isso colaborar com a CIA na busca pelos cadernos que registram “as confissões” de Henry – apontado como um possível espião com informações importantes do governo estadunidense.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Fay Grim): Uma mulher comum, preocupada com o filho adolescente, acaba se envolvendo em um complicado enredo à la James Bond. A CIA desconfia que o ex-marido dela, desaparecido, seja um ex-agente com informações privilegiadas que pode colocar em risco a defesa dos Estados Unidos.
Inicialmente, os agentes Fullbright (Jeff Goldblum) e Carl Fogg (Leo Fitzpatrick) argumentam com Fay Grim que Henry Fool está morto. Se a informação é verdadeira, ela pode pedir dois dos oito cadernos escritos por ele como “confissões” de volta – eles estão com o governo francês. Aos poucos Simon e o agente literário dele, Angus James (Chuck Montgomery), descobrem que a literatura intragável de Henry Fool é, na verdade, um intricado texto criptografado com informações importantes para o governo norte-americano.
Fay Grim acaba viajando para Paris para resgatar os cadernos e, na viagem, vira alvo de diferentes espiões e terroristas internacionais. Todos estão de olho nas “confissões” de Henry Fool. Seu texto, disfarçado de literatura pornográfica, revela a localização de uma base de mísseis nucleares israelenses e de três satélites dos Estados Unidos. Informações estratégicas por parte dos norte-americanos e de violação de um tratado internacional por parte dos israelenses – o que poderia criar uma potente crise mundial.
Gostei de todos os personagens do filme, bem construídos e retratados. Especialmente os de Fay Grim e Simon Grim. Gostei também da aeromoça interesseira e que virou amante de Henry Fool, Bebe (Elina Löwensohn); dos espiões Juliet (Saffron Burrows), Amin (Nikolai Kinski) e Andre (Harald Schrott).
Achei bem interessante o recurso dos “cortes narrativos” serem marcados, a maioria das vezes, pelas ligações para o celular de Fay Grim. Além disso, o filme tem várias tiradas bacanas, como a do banheiro em Paris e as alusões ao meio literário – com uma engraçada “homenagem” a O Paraíso Perdido, de John Milton. A alusão à obra nos leva a traçar um paralelo entre o livro de Milton, que narra a derrocada do “homem”, com Fay Grim, que mostra a decadência do país mais poderoso do mundo, que utiliza parte de sua riqueza em sistemas de estratégia e espionagem com o único objetivo de controlar e modificar a dinâmica de países mundo afora conforme os seus interesses econômicos.
Gostei também do vídeo erótico que o padre Lang (D.J. Mendel) acaba sendo obrigado a assistir… ele e vários outros religiosos. Esse tipo de piada no filme acaba valendo cada minuto dele. Outros detalhes do filme é a citação de nomes como Herzog (que lembra a pessoa de Vladimir Herzog) e a alusão a um trabalho de espionagem de Henry Fool na América Latina, ajudando a derrubar governos como o do Chile, que não eram do interesse dos Estados Unidos. Ou seja: uma visão bem cínica do país do Tio Sam.
Curiosa a parte em que a CIA tenta encontrar Henry Fool para chegar ao terrorista Jallal (Anatole Taubman). Nesta parte o personagem do escritor/gari/ex-agente da CIA fica ainda mais interessante quando revela que foi praticamente o mentor de Jallal – da mesma forma com que “inspirou” o Simon Grim.
Algo interessante de Fay Grim em relação a outros filmes do gênero espionagem é que praticamente todos os protagonistas do filme seriam, na verdade, os chamados “coadjuvantes” no “cinemão” tradicional. De Fay Grim até Angus James, passando por Bebe, o padre Lang e outros personagens saborosos que acabaram ganhando aqui um destaque maior do que seria o usual. Afinal, a história “gira” em torno do nome de Henry Fool que na prática quase não aparece. Para nosso deleite.
NOTA: 9.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Interessante que o diretor e roteirista Hal Hartley assina ainda a trilha sonora e a edição do filme. Devo dizer que ele acerta em cheio em todos os quesitos. Realmente interessante o trabalho dele nas diferentes frentes – por isso, talvez, o filme tenha ficado tão “autoral”. Também vale a pena destacar a direção de fotografia afinada de Sarah Cawley.
Fay Grim foi lançado nos cinemas em 2006, nove anos depois de Henry Fool. O novo filme com os personagens é uma co-produção dos Estados Unidos com a Alemanha.
O filme foi indicado a três prêmios, tendo ganho um até agora: o de melhor narrativa pela escolha do público no Festival Internacional de Cinema RiverRun, na Carolina do Norte (Estados Unidos).
Os usuários do site IMDb conferiram a nota 6,5 para Fay Grim, enquanto que os críticos que tem textos publicados no Rotten Tomatoes dedicaram 47 textos negativos e 36 positivos para o filme.
Quero dizer que o filme tem uma carga considerável de ironia, o que significa que ele brinca bastante com os estereótipos do gênero. Os fãs dos filmes de espionagem não devem levá-lo à ferro e fogo porque, realmente, é uma perda de tempo assistí-lo tão a sério.
Com uma distribuição praticamente independente, Fay Grim conseguiu uma bilheteria ínfima nos Estados Unidos: pouco mais de US$ 126 mil.
Destaque no filme também para o figurino, assinado por Anette Guther e Daniela Selig.
CONCLUSÃO: Um filme sobre espionagem que destaca os personagens coadjuvantes, colocando-os em primeiro plano, para contar uma história um bocado cínica sobre manobras de espionagem dos Estados Unidos. Com um humor afinado, o filme acerta nos quesitos técnicos – especialmente edição e direção de fotografia – e nos quesitos narrativos. Uma boa surpresa dentro da carreira independente do diretor Hal Hartley (um dos principais nomes do gênero nos Estados Unidos).
ATUALIZAÇÃO (em 4/1/2009): Para quem leu esse texto antes e agora viu que eu baixei a nota dele, vou me justificar: depois que eu assisti a Milk e resolvi dar para ele a note 9,5, pensei que outros filmes comentados aqui antes estavam supervalorizados, como este Fay Grim. Por isso resolvi dar uma nota que eu achei mais justa para ele e os demais filmes que haviam ganho uma nota bem elevada nos últimos tempos.