O sonho de fazer a vida nos Estados Unidos (mas que bem podia ser na Europa ou no Japão) visto de maneira realista e através do esporte. Sugar, um filme com orçamento enxuto dirigido por Anna Boden e Ryan Fleck, acostumados a dirigir documentários, nos revela parte dos desafios, da coragem, dos sonhos e da realidade dos imigrantes latinos em um país desenvolvido. A barreira do idioma, da raça e dos costumes são os aspectos mais evidentes, mas entra em jogo também a busca pelo lucro e pelos resultados de um ambiente competitivo como o do beisebol – que encanta torcedores nos Estados Unidos e na República Dominicana, países focados em Sugar. Um filme potente pela naturalidade de seu enredo, pela franqueza com que contrapõe distintas realidades e pela força de seus atores.
A HISTÓRIA: Na ensolarada Escola Profissional de Beisebol do Kansas City Knights, localizada em Boca Chica, na República Dominicana, todos observam os lançamentos de Miguel Santos, conhecido como Sugar (Algenis Perez Soto). O rapaz impressiona pela precisão, força e rapidez de suas jogadas. Mas naquele local, vários são os garotos talentosos em busca de uma oportunidade nos Estados Unidos, onde acreditam que poderão fazer dinheiro e ajudar suas famílias na República Dominicana. Mas Sugar consegue um diferencial quando um olheiro dos Estados Unidos lhe ensina a lançar uma bola com o efeito da “curva spike”. O garoto sabe que se ele treinar e conseguir fazer bem a tal jogada, esta pode ser a sua melhor chance para conseguir sua tão desejada oportunidade em um grande time norte-americano. E ele, junto com um colega de Boca Chica, realmente consegue chegar aos Estados Unidos. Mas antes de pensar em entrar em alguma divisão da liga profissional de beisebol, Sugar deve se destacar no Centro de Treinamento de Primavera do Kansas City Knights em Phoenix.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Sugar): Gosto de filmes que evitam maquiar a realidade. Na mesma proporção, admiro diretores que consideram a interpretação de seus atores como algo tão importante quanto o cenário em que eles desenvolvem suas histórias. Sugar é um filme admirável por respeitar estes aspectos. Para começar, os diretores e roteiristas Anna Boden e Ryan Fleck seguem suas vocações em trabalhar com histórias reais. Os dois filmaram juntos, antes de Sugar, a dois documentários – sendo um deles, um curta. Além destes, Fleck tem no currículo dois curtas de ficção (dramas) e a direção do premiado e elogiado Half Nelson.
Mas falemos de Sugar. Ainda que um de seus temas centrais seja o esporte, este filme não tem como sua principal pretensão emocionar o público com o virtuosismo do beisebol – como outras produções fizeram antes com o boxe ou o futebol americano, para citar dois exemplos. Mesmo o beisebol sendo fundamental para a história, por mostrar como o esporte é um dos canais mais utilizados para a ascensão social de jovens de comunidades pobres mundo afora, este é apenas um dos aspectos desta produção. Possivelmente, o menos importante, porque em lugar do beisebol poderiam ser focados vários outros esportes. Quem se interessar por esta produção por causa do beisebol, vá se preparando para o foco do roteiro em outros temas.
Para começar, Sugar mostra como o esporte tem várias leituras possíveis. Para as pessoas que se dedicam nos treinamentos e tem talento para ele, o esporte é uma vocação. Para os que contratam e treinam estes jovens, um negócio. Para os torcedores e apoiadores das equipes, uma paixão. Sugar mostra com precisão cada um destes lados. A vocação do esportista através de Sugar, o protagonista, mas também pela história de Jorge Ramirez (Rayniel Rufino), Johnson (Andre Holland), Alvarez (Jose Rijo) e tantos outros jogadores. A visão comercial do beisebol através da figura do técnico Stu Sutton (Michael Gaston), um homem que, como toda pessoa em sua posição, deve apresentar bons resultados – e fazer o que é preciso para que eles apareçam. E a paixão dos torcedores pode ser vista na família de Helen (Ann Whitney) e Earl Higgins (Richard Bull), que temporada após temporada recebem jogadores do Swing, o time do coração deles.
Mas o mais interessante é que, além de mostrar o beisebol contextualizado, com todos estes seus “atores” sociais bem representados, Sugar vai além. E ele mostra uma qualidade toda especial quando explora o modo de vida de dominicanos e estadunidenses, seus valores, seus costumes, assim como os tipos de dificuldade que um imigrante latino enfrenta em um país de língua estrangeira. Para começar, não deixa de ser engraçado (ainda que um pouco triste, talvez patético) como na escola profissional em Santo Domingo os jogadores tem “aulas” de inglês. Na verdade, eles são adestrados a repetir frases e expressões específicas do beisebol. Algo comum, infelizmente, em países onde falha o sistema de ensino. Por não saber se comunicar em inglês, Sugar e os demais penam em suas chegadas. A barreira do idioma pode ser especialmente dura e excludente.
Depois, como efeito desta primeira grande barreira, Sugar e os demais devem enfrentar uma solidão das pesadas alimentada também pelas diferenças de costumes. Os Higgins são muito polidos e educados mas estão longe da amabilidade e do contato físico costumeiro de países em que as pessoas tendem a ser menos individualistas – isso serve para República Dominicana, Cuba, Brasil, entre tantos outros. Digo isso porque aprendi um bocado sobre costumes nos anos que vivi na Espanha. Lá, conheci pessoas de diversos países, inclusive dominicanos, cubanos, equatorianos e um longo etcétera que me mostraram as diferenças entre seus costumes.
Sugar também mostra como os imigrantes passam por um momento de deslumbramento. Narrado sempre sob a ótica do protagonista, o filme revela como ele sai de uma realidade simples, de privações, e passa a conviver em um ambiente muito diferente, onde quase todas as possibilidades estão nas pontas dos dedos de quem tem dinheiro. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Sugar fica fascinado, por exemplo, com a beleza e a simpatia de Anne Higgins (Ellary Porterfield), filha do casal que o recebe na temporada do Swing. Espero não ser mal-interpretada, mas Sugar mostra uma característica do homem latino: sua vocação pelo duplo sentido e por entender gestos de simpatia como manifestações de desejo sexual. A religiosa Anne está mais preocupada em levar Sugar para a Igreja e para participar de seus grupos de reflexão e evangelização do que por ter algum caso com o rapaz. Mas para ele, que vê nela a única recepção verdadeiramente carinhosa no país, existe algo mais a ser descoberto.
Entre outras formas de discriminação, a provocada pela raça (ou talvez pela origem dos rapazes) fica evidente na sequencia filmada em uma danceteria estadunidense. Uns rapazes se sentem ultrajados por Sugar e Jorge estarem dançando com duas garotas loirinhas. Racismo e xenofobia entram em cena nesta cena e em algumas outras. Por mais que atitudes como esta sejam absurdas, elas fazem parte da realidade. E este filme acerta ao explorar justamente aspectos do que acontece na vida real. Algo que dá muita força também para esta produção é a forma com que seus diretores mostram as paisagens das diferentes cidades de cada país. Os lugares tem características e impactos diferentes no protagonista, e foi importante para o filme destacá-los como um personagem vivo da história.
Fiquei especialmente surpresa, contudo, com o desenvolvimento da história. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Ao invés de seguir o “caminho fácil” de mostrar como Sugar imigrou para os Estados Unidos e, depois de muita luta, se tornou um ídolo do beisebol, os roteiristas preferiram mostrar o que acontece com a maioria das pessoas como o protagonista. Primeiro, ele viu o amigo e colega de time, Jorge, ser dispensado porque não estava jogando bem. Machucado, Sugar vê a história se repetir com ele, quando Stu Sutton apresenta para o time o “arremessador reserva” Sal (Salvador, interpretado por Kelvin Leonardo Garcia). Salvador era um velho conhecido do protagonista, já que os dois passaram pela mesma escola de beisebol em Boca Chica. Mas diferente de Jorge, Sugar não espera o momento de ser dispensado. Em um ato de extrema coragem, ele abandona o time e viaja para Nova York, para onde o amigo foi depois de sair do Swing.
O filme ganha um renovado interesse neste ponto porque, na nova cidade, Sugar não tem a proteção de um time de beisebol e nem de uma família que o abrigue. Ele está por conta própria. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Como ocorre com muitos imigrantes, ele encontra uma oportunidade de trabalho com outros latinos. Na verdade, ele escolhe se relacionar, basicamente, com pessoas que falam a mesma língua que ele. Se isso o limita por uma parte e o afasta de conhecer melhor a cultura do país onde ele está momentaneamente, por outro lado se entende a sua atitude porque, entre latinos, ele se sente seguro e acolhido. Existem mais desvantagens que vantagens quando uma pessoa decide viver, praticamente, em um gueto cultural como este. Mas é difícil convencer alguém que ele deve abandonar completamente seus costumes, suas necessidades de afeto e compreensão para ganhar o respeito e melhores oportunidades no país que considera estranho. Os imigrantes são corajosos e valentes, mas também humanos. Sugar nos revela esta complexidade de maneira exemplar.
NOTA: 9,3.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Não sei se todos vocês sabiam disso, mas só depois de assistir a Sugar eu soube que o beisebol é o esporte nacional dos Estados Unidos, da República Dominicana e de Cuba (segundo este texto).
Sugar foi indicado, até o momento, a dois prêmios. O primeiro ao qual ele concorreu foi no ano passado, no Grande Prêmio do Júri do Festival de Sundance na categoria drama – quando ele acabou sendo vencido por Frozen River. Este ano, o filme concorreu ainda como melhor roteiro no Independent Spirit Awards, mas perdeu nesta categoria para Vicky Cristina Barcelona.
Uma curiosidade da produção: o filme utiliza alguns dos sobrenomes dos verdadeiros jogadores do time Swing. Eles não apareceram no filme porque, enquanto Sugar estava sendo rodado, os atletas estavam no meio de uma temporada regular.
Nos Estados Unidos o filme conseguiu um desempenho baixo nas bilheterias: arrecadou, até o dia 9 de agosto deste ano, pouco mais de US$ 1 milhão. Outro filme independente, mas que ganhou certa força após ser indicado a dois Oscar este ano, Frozen River, conseguiu uma bilheteria um melhor: US$ 2,5 milhões.
Quem gostou das paisagens retratadas pelo filme e ficou curioso/a para saber onde Sugar foi filmado, vale comentar que a produção foi rodada em Consuelo e em San Pedro de Macoris, na República Dominicana; e nas cidades de Burlington e Davenport, no estado do Iowa, e em Mesa e Phoenix, no Arizona, todas elas nos Estados Unidos.
Como a maioria dos “pequenos” filmes – falando exclusivamente do orçamento que eles receberam -, Sugar fez uma carreira focada em diferentes festivais mundo afora. Sua carreira começou no Festival de Sundance, em janeiro de 2008, e prosseguiu em outros seis eventos do gênero.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,3 para o filme, enquanto que os críticos que tem textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 92 textos positivos e apenas sete negativos para a produção – o que garante a Sugar uma aprovação de 93%.
Uma grande surpresa do filme é a interpretação naturalista e intuitiva do estreante Algenis Perez Soto no papel do protagonista. O dominicano nascido na cidade de San Pedro de Macoris ganhou os espectadores e recebeu inúmeros elogios dos críticos. Outro ator que não foi citado anteriormente e que faz um bom trabalho é Jaime Tirelli, que interpreta Osvaldo, um imigrante porto-riquenho que acaba dando uma oportunidade para Sugar seguir a sua vocação como carpinteiro.
Na parte técnica do filme, vale citar o trabalho competente da trilha sonora latina de Michael Brook e a direção de fotografia de Andrij Parekh.
CONCLUSÃO: Um filme inteligente, sensível e crítico sobre o sonho americano e a dura realidade dos imigrantes latinos em um país rico e de língua estrangeira. Sugar mistura esporte (especificamente o beisebol) com os elementos anteriores em um drama realista e cheio de esperança. Uma das grandes lições desta produção de baixo orçamento é de que os sonhos mudam e que as pessoas precisam rever seus ideais de sucesso de tempos em tempos. Destaque para a direção segura da dupla Anna Boden e Ryan Fleck que, acertamente, destacam os personagens desta história na mesma medida em que dão importância para as características dos cenários em que a história se desenvolve – tanto na República Dominicana quanto nos Estados Unidos. O estreante Algenis Perez Soto, que interpreta a Sugar, também ganha protagonismo.