Imagine que você é perseguido por algo que não dá para evitar. O terror chega devagar, mas é implacável. Para evitá-lo, a única alternativa é passar a “maldição” adiante e torcer para que as próximas pessoas da lista levem à sério o problema. Do contrário, aquilo que está te perseguindo vai voltar até você. It Follows parte desta premissa da inevitabilidade e do questionamento ético sobre a “salvação” para nos apresentar um filme interessante, envolvente e angustiante na medida certa.
A HISTÓRIA: Uma garota sai de casa desesperada. Com salto alto e roupa de festa, ela corre pela rua, mas logo para. Uma vizinha pergunta se está tudo bem, e o pai também quer saber o que está acontecendo. A garota, que se chama Annie (Bailey Spry), volta para casa, mas logo sai com uma bolsa e o carro. Annie vai para uma praia, aonde atende o pai no celular e diz que o ama. Quando amanhece, a garota está morta na praia de forma macabra. Corta.
Em outra residência, Jay (Maika Monroe) curte a piscina no quintal de casa, assim como a Natureza, até que a irmã dela, Kelly (Lili Sepe) comenta que Paul (Keir Gilchrist) e Yara (Olivia Luccardi) estão em casa para ver um filme. Jay fala que vai sair mais tarde. Ela se encontra com Hugh (Jake Weary) que, ela ainda não desconfia disso, vai mudar a vida dela.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a It Follows): Gosto de filmes com estilo, e It Follows é um destes exemplares. O visual da produção, o estilo da direção e até a trilha sonora fazem um conjunto perfeito e nos remetem a um estilo de filme que não existe mais. Como comentarei lá no final, para quem já assistiu a filmes de terror e suspense dos anos 1970, esta é uma produção com a alma daqueles filmes.
Mas não é apenas a questão conceitual. O roteiro também nos faz lembrar um pouco aqueles filmes. Vejamos. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Em It Follows, os pais praticamente não aparecem. Eles são secundários e não tem voz. São os jovens, os adolescentes, que protagonizam a história. Mergulhamos no estilo deles, em seus sonhos e medos. Como outras produções dos anos 1970 e 1980. O sexo é um elemento-chave nesta produção, assim como em outras que ajudaram a fazer a história do gênero.
O roteirista e diretor David Robert Mitchell acerta ao não perder tempo na narrativa. Primeiro, com Annie, percebemos que há um mal cruel e que parece ser implacável. Depois, por um breve período, esquecemos isso com o comportamento de Hugh. Ele parece ser apenas mais um sujeito desequilibrado que fará mal para uma garota que ele conseguiu convencer a sair com ele. Mas não. Na sequência do sexo no carro e dela ser amarrada em uma cadeira-de-rodas em um lugar sinistro e abandonado – e como não? – Hugh conta o “segredo”.
Ele foi contaminado por uma outra pessoa com quem ele transou e, agora, está passando a “maldição” para Jay. Para mim, foi inevitável pensar na AIDS e nas pessoas que, propositalmente, infectam as outras – após saber que estão com o vírus. Daí entra uma parte interessante deste filme: você passaria adiante a maldição apenas para sobreviver? Mataria outra pessoa ou, no mínimo, a traumatizaria apenas para se ver livre do problema?
Claro que com a AIDS isso não acontece. Mas é através do sexo, normalmente, que o contágio é feito. No caso do vírus, todos são contaminados. Mas no caso da “maldição” repassada pelo sexo no filme, se você fizer uma corrente bastante grande de pessoas infectadas, em teoria, você vai ficar livre do problema. Tendo que torcer, é claro, para esse grupo de pessoas não morrer antes que você, porque daí o alvo retorna para ti.
Outro acerto do roteiro de Mitchell é que a ameaça é física, realística – apenas o amaldiçoado pode vê-la, mas os efeitos de quem persegue podem ser vistos pelos outros, como uma porta quebrada, por exemplo. Ou seja, não pode atravessar paredes, ou voar. O que dá uma certa chance para quem está sendo perseguido. Ainda que, e este ponto é o mais angustiante da premissa, quem está sendo perseguido sabe que, mais cedo ou mais tarde, a morte vai chegar até ele(a).
O que fazer então? Basicamente, duas alternativas: fugir sempre, sabendo que mais cedo ou mais tarde a ameaça vai chegar e, por isso, estar sempre atento para voltar a fugir; ou passar adiante o problema. E não é simplesmente “contaminar” alguém. Você precisa convencer a pessoa a seguir passando para a frente, do contrário, quando ela morrer, você será perseguido novamente.
Por isso Hugh/Jeff cuidou de explicar para Jay o que ela deveria fazer. Mas ela resiste a passar adiante o problema. Mas acaba fazendo isso. Com um resultado catastrófico e com outro que nunca saberemos – o filme termina, justamente, em uma sequência em que o perigo pode ou não estar se aproximando novamente de Jay e Paul. Interessante a história e o questionamento ético que ela nos apresenta.
Ah sim, há ainda a tentativa do grupo em eliminar a ameaça. Uma tentativa inteligente proposta por Paul, mas provavelmente sem efeito. Como o filme termina “sem final”, não sabemos ao certo. Mas tudo indica que a história vai continuar com o problema da maldição precisando ser resolvido.
Como os pais são ausentes, os jovens tem que resolver tudo sozinhos. Eles viajam, passam uns dias fora e, aparentemente, tudo está certo. Nenhum adulto parece se importar. Os hormônios estão gritando, e a protagonista é desejada por dois amigos: Paul e Greg (Daniel Zovatto) – este segundo atento a todas as demais meninas também. Bacana também o fato do roteiro, na ausência de adultos mais “presentes”, mostrar a união e a amizade entre os personagens jovens – eles é que dão graça para a história. A verdade é que quanto mais simples a premissa, melhor para o filme.
No caso de It Follows, o suspense é garantido por toda e qualquer pessoa que esteja caminhando em linha reta. Afinal, a ameaça nem sempre parece claramente uma pessoa morta. Muitas vezes se parece com alguém comum. O filme tem alguns bons sustos e, certamente, diversos momentos de tensão. Funciona neste sentido. Além do roteiro bem escrito, com a qualidade de ser direto e conciso, Mitchell acerta na direção do filme.
Ele investe em grandes planos, seja nas ruas ou outros ambientes abertos, seja em ambientes fechados e com sequências fluídas e muitas vezes circulares. A sequência na escola em que Hugh/Jeff estudou é um grande exemplar disso. Aliás, algumas vezes é preciso estar bem atento aos detalhes – como a garota que segue andando em linha reta quando eles saem do local e que, por pouco, não chega em Jay a tempo de pegar a garota.
Estas sequências fluídas do diretor, junto com a valorização das interpretações dos atores e dos detalhes da história para dar-lhe tensão são o ponto forte do filme. Apesar deste ser um trabalho bem acabado, não dá para dizer que It Follows reinventa a roda. E nem precisava, não é mesmo? Afinal, o que mais está faltando hoje em dia, são filmes que cumprem o seu papel e ainda nos fazem pensar sobre o que estamos fazendo ou sobre o que faríamos no lugar deste ou daquele personagem. Com duração certa – pouco mais de 1h30 – It Follows consegue fazer tudo isso. Sorte nossa.
NOTA: 9,3.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Vale a pena ficar de olho em David Robert Mitchell. It Follows é apenas o terceiro trabalho dele. Mitchell estreou como roteirista e diretor do curta Virgin, em 2002, e em 2010 escreveu e dirigiu The Myth of the American Sleepover. Não assisti a estas produções, mas achei que ele foi muito bem, com assinatura e estilo neste It Follows. Vale ter ele em mente.
Além do ótimo trabalho de Mitchell, gostei do elenco que ele escolheu para este filme. Todos estão muito bem, mas sem dúvida alguma o destaque vai para a protagonista, interpretada por Maika Monroe. Mas todos os outros estão muito bem, com atenção especial para Keir Gilchrist e Lili Sepe.
Agora, tem cenas que deixam um certo ponto de interrogação. (SPOILER – não leia se você não tiver assistido ao filme). Por exemplo, aquela sequência em que Jay entra na água aparentemente para ir até o barco em que estão três homens. Aparentemente ela fez isso para transar com um ou mais de um deles, certo? Então por que não demora muito para ela voltar a ser perseguida? Ela não falou nada para os homens do que eles deveriam fazer, eles morreram rápido mesmo assim ou ela não chegou a ir até o barco? Perguntas sem resposta. Ainda assim, eu apostaria na terceira opção – afinal, ela volta a ver uma figura a perseguindo logo na sequência.
Como em outros filmes de suspense e terror, o diretor explora bem a questão urbana, as casas americanas parecidas e uma certa “decadência” do cenário. Há uma sequência, inclusive, em que Yara comenta sobre a segregação entre as pessoas da cidade e as do subúrbio. Ou seja, o filme não é descolado da realidade. Aliás, falando em Yara, achei interessante também o “gadget” que ela utiliza e lembra os atuais “kindle” e afins. É em um aparelho destes que ela está lendo O Idiota, de Fiódor Dostoiévski. Ainda que eu não tenha visto nenhum paralelo entre o filme e a obra de Dostoiévski, achei bacana o autor citá-lo na produção – quem sabe alguém que viu o filme acaba lendo o livro?
Da parte técnica do filme, sem dúvida alguma merecem elogios a ótima direção de fotografia de Mike Gioulakis, que nos transporta para os anos 1970; a edição precisa e elegante de Julio Perez IV e a marcante, precisa e equilibrada trilha sonora de Rich Vreeland. Vale também citar, como contribuições importantes para o “clima” do filme, o trabalho de Michael Perry no design de produção, o de Joey Ostrander na direção de arte e o de Kimberly Leitz nos figurinos.
It Follows estreou em maio de 2014 no Festival de Cinema de Cannes. Depois, o filme participaria ainda de outros 38 festivais – um número impressionante, devo dizer. Nesta trajetória, a produção recebeu oito prêmios e foi indicada a outros cinco. Entre os prêmios que recebeu, destaque para o Prêmio do Público no Festival Internacional de Cinema Fantástico Nocturna Madri e para os de Melhor Filme e Melhor Roteiro no Festival Fantástico de Austin.
Esta é uma produção que comprova que um bom roteiro não precisa consumir muito dinheiro. It Follows teria custado apenas US$ 2 milhões. Nas bilheterias dos Estados Unidos o filme conseguiu pouco menos de US$ 14,7 milhões até o dia 21 de junho. Em outros mercados, até abril, o filme tinha acumulado outros US$ 10 milhões. Nada mal para um filme com nomes bastante desconhecidos e que, certamente, fez este sucesso por causa da propaganda boca a boca. Merecido o resultado.
Para quem gosta de saber sobre as locações dos filmes, esta produção foi toda rodada em diferentes locais do Michigan, nos Estados Unidos – incluindo Detroit.
Agora, algumas curiosidades sobre este filme: de acordo com o diretor David Robert Mitchell, a sua maior influência para esta produção foi Creature from the Black Lagoon, filme de 1954 que tem cenas lentas e um monstro bem persistente. Outra grande influência de Mitchell teria sido Night of the Living Dead, de 1968, que traz uma visão palpável e claustrofóbica do mal. A lista de produções que influenciaram bastante o diretor segue: The Shining, de 1980; The Thing, de 1982; Paris, Texas, de 1984; e A Nightmare on Elm Street, de 1984.
Além destas influências do diretor, vale citar o que ele deixa transparecer no filme como citações. No cinema em que Jay e Hugh vão, está passando Charade, de 1963. E na TV da casa de Jay e Kelly passam os filmes Killers from Space, de 1954, e Voyage to the Planet of Prehistoric Women, de 1968.
Os usuários do site IMDb deram a nota 6,9 para o filme, mas os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes foram mais generosos. Eles dedicaram 181 textos positivos e apenas sete negativos para It Follows – o que garante aprovação de 96% para o filme e uma nota média de 8,2. A nota média, em especial, é muito boa se levarmos em conta o padrão do site.
Esta é uma produção 100% dos Estados Unidos.
CONCLUSÃO: Um filme de terror que te faz lembrar os bons exemplares do gênero dos anos 1970 e 1980. Se você já assistiu a vários filmes deste gênero, inclusive os antigos, vai encontrar em It Follows aquela mesma aura. Este é um dos elementos mais interessantes da produção, junto com o questionamento ético e as saídas criativas para o problema que a protagonista tem que enfrentar. Lembra algumas outras produções, mas também tem originalidade. Um bom exemplar do gênero, e que termina de forma aberta – o que pode incomodar alguns, mas é algo que eu acho acertado dentro da ótica da produção. Vale conferir, mas sem grandes expectativas a respeito – afinal, é um bom filme, mas não revoluciona o gênero.
2 respostas em “It Follows – Corrente do Mal”
Obra memorável do gênero. A maneira como aquelas coisas se aproximam, muitas vezes saindo de uma multidão até ser realmente percebida é de arrepiar os pelos. Um aspecto que muito me agradou também foi a ausência de explicações. Estamos acostumados que filmes de terror quase sempre dão um jeito de mostrar as origens do mal, recorrendo a pessoas mais idosas, livros, fotografias, uma verdadeira investigação, mas esse não. Nâo há o que explicar, só morrer de medo e correr. Fodástico filme.
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Eu ainda não consegui entender a tentativa deles de eliminar a maldição..
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