Ter liberdade de pensar e sentir por sua própria conta. Decidir a própria vida. Parecem princípios básicos, mas para muitas mulheres em muitas partes do mundo – e inclusive ao nosso lado ou dentro da nossa casa – isso não tem nada de básico. Para estas mulheres, a liberdade é uma palavra fora do dicionário. Por isso mesmo Gett – The Trial of Viviane Amsalem é um filme tão importante, tão vital. Ele mostra o estrago e o absurdo de uma cultura em que a mulher é um ser menor, sempre à mercê da vontade de um homem, especialmente se ela é casada. Com interpretações fantásticas e um roteiro bem construído, este filme é essencial.
A HISTÓRIA: O advogado Carmel Ben Tovim (Menashe Noy) olha fixo por um longo período antes de falar em nome de sua cliente, Viviane Amsalem (a fantástica Ronit Elkabetz). Ele diz que lamenta que o marido de Viviane, Elisha Amsalem (Simon Abkarian), não tenha cooperado nos últimos três anos em se fazer presente no tribunal e nem ao menos em opinar sobre o pedido de divórcio feito pela mulher.
Agora, na frente do juiz rabino Salmion (Eli Gornstein) e de seus dois auxiliares, Elisha diz que não aceita o divórcio e que quer que a esposa volte para casa. Mesmo ela dizendo que não é possível eles voltarem a ficar juntos, o juiz ordena que ela volte por seis meses, tentando a reconciliação. Este é apenas o começo de um longo martírio de Viviane em busca da própria liberdade.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Gett – The Trial of Viviane Amsalem): É um desafio assistir a este filme. Não porque ele seja longo demais, ou muito arrastado. Pelo contrário. O roteiro dos diretores Ronit Elkabetz e Shlomi Elkabetz é tão bem escrito e preciso, com a valorização adequada do trabalho do pequeno grupo de atores envolvidos, que não há sobras ou faltas na ação. A dificuldade em assistir a esse filme sem em algum momento ferver um pouco o sangue é ver o absurdo da situação.
Estamos acostumados, no Brasil, a longos processos judiciais. Mas por aqui, normalmente, questões como o divórcio são resolvidas com grande facilidade. Algumas vezes, concordo, até com facilidade demais. Sou da opinião que as pessoas, depois de casadas, devem fazer um esforço para permanecerem juntas e darem certo naquela união. Afinal, elas deveriam ter pensado bem e escolhido com consciência os seus respectivos cônjuges. Dificuldades aparecem e vão aparecer, mas o casamento não deve terminar por causa delas.
Agora, uma situação muito diferente é vivida pelos personagens centrais desta trama. E é um grande acerto dos roteiristas ir desbravando a intimidade deles lentamente. No início, Viviane e Elisha apenas marcam posição: ela quer o divórcio, ele não. E segundo a cultura e a tradição judaica, é o homem que decide. Sim, e essa é a parte mais marcante desta produção: a mulher não tem direito de escolher, de opinar. Torna-se evidente, assim, a subjugação da mulher, colocada em segundo plano e abaixo do homem.
De arrepiar algo assim. Mas é o que a tradição – aquela mesma questionada por Jesus, condenado à morte e até hoje não aceito pelos judeus – deles prega. Que a mulher deve se submeter e, de preferência, sem questionar. Mas Viviane não é assim. Que brava e maravilhosa essa personagem e também a atriz que a interpreta – e que é uma das roteiristas e diretora, ao lado do irmão.
Agora, voltando para um dos acertos fundamentais desta produção: os roteiristas escreveram a narrativa para ela crescer lentamente. No início, temos apenas a posição firme e contrária dos dois personagens centrais. Depois, pouco a pouco, é que vamos ouvindo outras testemunhas – familiares de Viviane, conhecidos de Elisha e vizinhos do casal. E, na reta final, finalmente marido e mulher dão os seus testemunhos.
Antes destes outros personagens entrarem em cena e do filme ganhar em tensão com os depoimentos das duas partes diretamente interessadas no divórcio, impressiona já o que o roteiro fala nos diálogos e o que ele comunica com a troca de olhares entre os personagens. Os flagrantes e os silêncios expressam tanto ou mais do que os argumentos. Como acontece na nossa vida e, certamente, na casa de Viviane e Elisha – que sempre tiveram grande dificuldade de comunicação.
É verdadeiramente assustador pensar que uma mulher deva ficar durante diversos anos se submetendo a um juizado composto por três ou dois (quando um deles renuncia temporariamente) rabinos para conseguir um direito tão básico quanto o de tomar as rédeas da própria vida. Mas quantas mulheres hoje em dia são prisioneiras de seus próprios namorados e maridos depois de terem sido “sequestradas” por eles – para usar um termo do Padre Fabio de Melo? Seja esse sequestro mais “literal”, com elas sendo mantidas em casa praticamente como prisioneiras, seja de forma mais genérica, com elas capturadas após um longo período de manipulações e de esmagamento do que elas tem de melhor, que é a sua própria independência e auto-estima.
O fantástico deste filme é que ele mostra uma mulher forte, brava, destemida e que respeita a si mesma, em primeiro lugar. Depois de algumas décadas de casamento, quando ajudou a cuidar da sogra e educou os filhos, ela decide se separar. Porque vive uma vida miserável ao lado de Elisha, um homem que não consegue se comunicar com a esposa e que, segundo ela, sempre que pode a critica e a ofende. Ele também se queixa da mulher, dizendo que ela não o respeita, grita com ele e que não age como uma “boa esposa”.
Ora, então por que ele quer insistir naquela vida miserável e infeliz? Ele jura que é porque ama ela. Viviane argumenta que, no fundo, ele a odeia. No fundo, amor e ódio muitas vezes se misturam, e isso fica evidente nas trocas de olhares entre os dois. Além de amor e ódio, é possível ver naqueles olhares pedidos de súplica, perdão, desprezo e competição aberta para saber quem pode mais. Quem será mais forte.
O bacana desta produção é que ela não julga e nem apresenta uma única interpretação sobre o que aquele casal sente e vive. De forma muito natural, Gett – The Trial of Viviane Amsalem nos apresenta uma realidade e nos dá a liberdade – algo tão negado para a protagonista – de fazermos as nossas próprias leituras e interpretações. Característica fundamental de um grande filme, que acerta também na dinâmica da história, ao enclausurar a audiência junto com aqueles personagens em uma sala de audiência e na ante-sala de espera, e também na aposta da interpretação dos atores.
Da minha parte – e você tem, como sempre, todo o direito de discordar -, acredito que Viviane e Elisha tiveram em algum momento amor um pelo outro. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Mas, de fato, ele não dava o divórcio para ela por puro orgulho e porque ele não queria perder o controle sobre a mulher. Na reta final, quando ele cede após ela prometer que não vai se relacionar com mais nenhum homem, fica subentendido que este era o “problema” dele: vê-la em outra relação. Não acredito que seja apenas isso.
Acho sim que ele não admitia que aquela mulher tivesse vida própria. O cotidiano deles tinha virado um inferno? Ele preferia isso e dar o troco para ela sempre que possível do que deixá-la ser feliz longe dele. Homens que vêem as mulheres como objetos, como “coisas” que eles podem possuir, jamais vão respeitar a vontade própria destas mulheres. De fato, e como aquele sistema judaico do qual eles fazem parte, eles acreditam que a mulher é “inferior” e deve se submeter. Me desculpe se você acha isso também, mas este pensamento é repulsivo e totalmente contrário ao que qualquer crença digna possa sugerir.
Além de nos fazer pensar sobre o absurdo de diferentes realidades – e muitas vezes a nossa ou de alguém próximo também pode ser vista como absurda -, este filme nos mostra um exemplo de mulher admirável. Que não sucumbiu ao que o juiz ordenou inicialmente, nem ao desgasta do longo processo ou da condenação de boa parte daquela sociedade em que ela estava inserida.
Ela não estava feliz, tinha uma vida miserável e sabia que não havia salvação para aquela realidade mudar com o marido e, por isso, decidiu recomeçar. O final, que mostra ela caminhando para a liberdade, não poderia ser mais bonito e encorajador. Para todas as mulheres, homens, jovens e adultos que se sentem prisioneiros de algo que lhes faz mal. Belo filme.
NOTA: 10.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Interessante refletir sobre os primeiros minutos desta produção. Logo no início temos o ator Menashe Noy, que interpreta ao advogado Carmel Ben Tovim, em uma cena que parece longa de olhar fixo para baixo, parecendo um pouco constrangido, e ao olhar para alguém que estava em um nível inferior ao dele. Conforme a cena se desenrola e vemos a parte dos outros homens do recinto, percebemos só depois que ele olhava para Viviane Amsalem. Não por acaso ela é a última a ser mostrada. Afinal, naquele cenário, ela está em “posição inferior” a dos homens e é a última a “importar”. Muito inteligente esta sequência que representa bastante da história que veremos em seguida.
Todo o julgamento a que assistimos é absurdo. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Logo no início os juízes são informados que a mulher que está pedindo divórcio está há três anos fora de casa, morando com parentes, e que neste período o marido não falou com ela, exceto uma vez – quando ela perdeu um irmão. Isso não significa nada para os rabinos e juízes Salmion (o que preside quase todo o julgamento), Danino (Rami Danon) e Abraham (Roberto Pollack).
Não demora muito para Salmion perguntar para o advogado de Viviane se o marido não lhe dava o essencial, que seria dinheiro e comida. Sério mesmo? Como Carmel mesmo diz, logo no início do julgamento, Viviane é cabeleireira há 20 anos, e foi com o dinheiro de seu trabalho que ela conseguiu se sustentar e aos filhos nos três anos em que viveu fora da casa de Elisha. Então ela não precisa de um marido para lhe dar “dinheiro e comida”. Como se não bastasse esse pensamento ridículo, ainda o juiz diz que a razão dela para querer o divórcio, que é não amar mais ao marido, “não é razão” para se separar. Sem maiores comentários.
Interessante como logo nos primeiros minutos do filme o protagonista diz para a esposa que busca o divórcio: “Jamais, Viviane!”. Claramente, para mim, o orgulho dele fala mais alto. E não há amor ali. Porque quem ama quer ver a outra pessoa feliz. Se esforça para isso. E se, lá pelas tantas, não consegue mais fazer a outra pessoa feliz, vai querer que ela busque a felicidade em outro lugar. Assim de simples. Isso só não funciona para homens machistas que acham que são proprietários das mulheres – tornadas mercadorias.
A atriz Ronit Elkabetz tem uma interpretação digna de muitos prêmios – além do Oscar, de outros tantos mais de respeito mundo afora. Ela dá um show de interpretação neste filme. Depois de diversos anos de um longo julgamento em que ela só pedia pelo direito de recomeçar a vida – mas no qual ela estava sendo julgada -, sem dúvida alguma os grandes momentos da produção são aqueles em que ela tem dois rompantes de desabafo. Mas são momentos inesquecíveis também quando ela e o ator Simon Abkarian, que também faz um grande trabalho, dão os seus próprios testemunhos.
Neste momento, do testemunho deles, muito da relação entre os dois se torna clara e cristalina. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Elisha diz que ama a mulher e que não aceita o divórcio porque ela é o destino dele e os dois estão presos um ao outro. Em seu depoimento, Elisha também deixa claro que nunca tentou agradar a esposa e que ele não é tão coerente assim ao seguir a própria religião – afinal, gosta de coisas que não são “kosher”, como o cinema.
Ela, por sua vez, emociona ao dizer que há 10 anos pensa seriamente em se separar, mas que o primeiro pensamento a esse respeito veio logo depois deles terem se casado. Viviane não demorou para perceber que os dois eram incompatíveis. Perguntada sobre o porquê de ter se casado, ela respondeu o que muitas mulheres, certamente, responderiam sobre as suas próprias escolhas: “porque nós fazemos isso, nos casamos”. É, minha gente, isso é complicado. Algumas vezes as pessoas casam porque é o que a sociedade e as famílias esperam, mas fazem escolhas ruins. O resultado disso sabemos que nunca será bom. Essa história é um bom exemplo.
Além dos dois atores principais, que estão perfeitos em seus papéis, vale destacar o ótimo trabalho de Menashe Noy como o expressivo e sensível advogado de Viviane; Sasson Gabai como o magnético e competente advogado e rabino Shimon, irmão de Elisha e que por boa parte do julgamento atua como advogado dele; além, claro, dos juízes. Outros atores aparecem como testemunhas. Eles fazem um bom trabalho, mas nada que fuja do esperado ou mereça um destaque específico.
Da parte técnica do filme, achei perfeita a direção da dupla Ronit Elkabetz e Shlomi Elkabetz. Os irmãos acertam em cheio na dinâmica em cena, no ritmo das câmeras e na atenção constante no trabalho dramático do elenco. O roteiro também é construído com esmero, sem sobras ou faltas. Para estes elementos funcionarem bem, vale destacar o trabalho da diretora de fotografia Jeanne Lapoirie e do editor Joel Alexis.
Gett – The Trial of Viviane Amsalem estreou em maio de 2014 no Festival de Cinema de Cannes. Depois, o filme passaria ainda por outros 32 festivais e mostras em diversas partes do mundo. Uma trajetória admirável e merecida pelo filme de qualidade.
Em suas andanças por estes festivais, o filme abocanhou 13 prêmios e foi indicado a outros 14. Poderia ter sido mais. Só acho que não foi porque esta produção, apesar de ter uma temática universal, pode cair estranha para o gosto de alguns – que não se interessam e/ou não são interessados pela cultura judaica ou por culturas diferenciadas. Entre os prêmios que recebeu, destaque para o de Melhor Filme e Melhor Ator Coadjuvante para Sasson Gabai no Prêmio da Academia de Cinema Israelense; o de Melhor Roteiro no Festival Internacional de Cinema de Chicago; o de Melhor Produção Israeli, Melhor Ator para Menashe Noy e Prêmio da Audiência do Festival de Cinema de Jerusalém; o Prêmio Diretores para Acompanhar no Festival Internacional de Cinema de Palm Springs; e o prêmio da produção ter figurado na lista do Top 5 de Filmes em Língua Estrangeira do National Board of Review.
Esta produção, indicada oficialmente ao Oscar por Israel, foi nomeada também como Melhor Filme em Língua Estrangeira no Globo de Ouro 2015. No Oscar o filme não conseguiu chegar entre os finalistas. No Globo de Ouro ele perdeu para Leviathan (com crítica aqui). Da minha parte, gosto de Leviathan. É um filme importante e crítico, mas apreciei mais o debate levantado por Gett – The Trial of Viviane Amsalem. Gostos.
Há poucas informações sobre o desempenho de Gett – The Trial of Viviane Amsalem nas bilheterias. Consegui apurar apenas que o filme teria feito pouco menos de US$ 988 mil nos Estados Unidos.
Não consegui descobrir as locações deste filme, apenas que ele foi rodado no Verão de 2013.
Os usuários do site IMDB deram a nota 7,8 para Gett – The Trial of Viviane Amsalem. Uma avaliação boa para o padrão do site. Mas os críticos que tem os seus textos divulgados no Rotten Tomatoes foram ainda mais efusivos na aprovação do filme. Eles dedicaram 65 críticas positivas, uma rara aprovação de 100% e uma nota média de 8,5. Excelente.
De acordo com este texto do site do Film Society Lincoln Center, Gett – The Trial of Viviane Amsalem é baseado na história real de uma mulher que lutou nos tribunais para conseguir o divórcio em uma comunidade ortodoxa de Israel.
Esta é uma coprodução de Israel com a França e a Alemanha.
Interessante o currículo de Ronit Elkabetz. Nascida em Beershaba em 1964, ela tem 30 trabalhos como atriz, quatro como roteirista e três como diretora. Todos os trabalhos dela na direção foram feitos ao lado do irmão, Shlomi Elkabetz. Ele tem quatro projetos como roteirista e diretor – além dos três feitos com a irmã, ele tem Edut como um trabalho solo. Os dois valem ser acompanhados.
CONCLUSÃO: Um filme com poucos atores e que se passa inteiro em um tribunal. Brilhante justamente por esta escolha. Afinal, a vida de Viviane Amsalem ficou presa e suspensa durante todos aqueles anos em que ela foi julgada por querer ser livre. Algo inadmissível para a cultura machista judaica em que uma mulher deve se submeter sempre aos desejos do marido. Mesmo em culturas que não são aquela os homens esperam que as mulheres estejam sempre aos seus pés.
No Brasil mesmo vivemos em uma sociedade machista em que as mulheres devem ceder o máximo possível frente a homens que se acham superiores. Por tudo isso esse filme é fundamental. Mesmo que você não entenda o que ele quer dizer. Bem pensada para o propósito que ela se dispõe, esta produção acerta na valorização dos atores, dos sentimentos que eles trocam e querem passar e na sensação de clausura. Perfeito na simplicidade.