A guerra sempre contabiliza vítimas. Por mais que alguns tenham atitude de heróis e que certos filmes tentem imortalizar estas histórias, a guerra sempre tem mais histórias de mortes e de vítimas inocentes do que de heroísmo para contar. Krigen trata da essência da guerra. Sem pirotecnia, sem muitos bombardeios, mas quase em um estilo documental. Focando em um grupo pequeno de personagens e em uma história que vai crescendo na dinâmica e no drama humano, Krigen consegue ir mais longe no debate sobre as razões da guerra do que muitas outras produções recentes.
A HISTÓRIA: Território agreste entre montanhas. Um batalhão camuflado caminha no vale. O grupo se comunica com o comando para dizer que eles chegaram no local em que eles queriam. Os soldados caminham em fila. Tudo está tranquilo, até que Anders (Alex Hogh Andersen) é atingido por uma bomba. Os outros soldados pedem ajuda de um médico, mas Anders morre rápido. Lasse é um dos soldados mais impactados com a morte do colega. No QG o comandante Claus Michael Pedersen (Pilou Asbaek) também fica afetado. Em breve ele vai passar a fazer patrulhas com os soldados para incentivá-los a seguir na missão.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso só recomendo que continue a ler quem já assistiu a Krigen): O cinema nórdico normalmente tem um olhar interessante sobre os dramas humanos. Não é diferente com Krigen. Há muitos filmes sobre guerras e conflitos de qualidade. Diversos deles, inclusive, recentes. Mas gostei do foco desta produção.
A primeira qualidade de Krigen é que o roteiro do diretor Tobias Lindholm começa direto na ação, em um dos fatos que serão determinantes para a história, e não para de crescer até o final. Mas sem pirotecnia ou apelar para recursos para aumentar o drama superficialmente. Aliás, outra qualidade do filme é que ele é quase um documentário de tão realista. Lindholm parece ter sempre a preocupação de mostrar “a vida como ela é” da forma mais natural possível.
Sendo assim, logo no início do filme também acompanhamos a intimidade do personagem principal. Ele está no front da batalha de uma coalizão de países contra o terrorismo, mas o outro lado de sua vida está longe, em outra batalha sendo enfrentada pela mulher dele, Maria Pedersen (Tuva Novotny). Enquanto ele está no ambiente tenso da luta contra os talibãs do Afeganistão, ela está enfrentando problemas com os filhos em casa.
Especialmente o filho do meio está rendendo preocupação. Maria tenta segurar as pontas como dá, mas a verdade é que o garoto sente a falta do pai. Pelo trabalho que desempenha, Pedersen fica muitos meses longe de casa. O filme acerta ao mostrar logo o evento que vai desencadear escolhas, decisões e as consequências delas por parte do protagonista. A partir dali o filme só vai crescendo.
Comandante de uma tropa, Pedersen resolve, após perder um soldado de 21 anos e de ouvir questionamentos de pessoas do grupo sobre a razão dele estarem lá se arriscando e morrendo, que ele vai partir para a ação. Para dar o exemplo. Então ele sai do quartel e passa a fazer o patrulhamento com a tropa. Como um soldado normal. Essa decisão dele acaba colocando o capitão em contato com uma família de civis. Ele ajuda uma menina com o braço queimado e se coloca à disposição para seguir ajudando eles.
Até aí, tudo aparentemente bem. Mas aí surge o diferencial deste filme. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Depois que decide “dar o exemplo” e fazer patrulha com a tropa, Pedersen começa a perder a visão do conjunto. Ele oferece ajuda para o pai de família – algo que nenhum outro soldado poderia fazer. Quando o homem vai com a família pedir ajuda do comandante para evitar que eles sejam mortos pelo talibã, Pedersen volta a ser o responsável pelo grupo e decide seguir as regras.
Mas o problema é que ele já não poderia fazer isso. Quando decidiu fazer o patrulhamento e ajudar aquele cidadão, o que, em teoria, é um dos propósitos da missão daquele grupo, ele mudou a realidade sem ter o direito de voltar atrás. Só que ele nega acolhida para aquela família e, naquele momento, ele e os demais de sua tropa, assim como os espectadores, já imaginam o que virá em seguida.
Quando na manhã seguinte eles chegam no vilarejo e encontram o pior cenário possível, ao mesmo tempo eles caem em uma emboscada. Faz parte do grupo justamente Lasse, o soldado que Pedersen resolve proteger logo após a morte de Anders mas que acaba voltando para a ação. Apenas para virar alvo de uma missão que poderia ter sido evitada se Pedersen tivesse cedido às regras e tivesse ajudado a família de civis quando ainda era possível.
Na rápida e caótica situação do grupo estar sendo atacado, Pedersen novamente faz uma escolha equivocada. O espectador não sabe disso naquele momento, mas na sequência. Mais uma vez, naquela situação, Pedersen quer proteger o seu grupo, não importa com que custo. E aí vem várias reflexões importantes deste filme.
Para começar, dá para entender as razões que fizeram o protagonista patrulhar junto com os seus soldados. Ele quer dar o exemplo, mostrar que ele também está comprometido com a missão – ele não apenas um sujeito que manda nos demais em um local protegido e que não pretende “sujar as mãos”. Certo ele fazer isso no início, para dar o exemplo e como estímulo. Mas por que ele ficou tanto tempo fazendo isso? Seria porque ele achava mais emocionante e atrativo estar no campo de batalha do que no QG? Ou será que ele achava que poderia mesmo ser decisivo para o batalhão nos locais de confronto? Não importa.
O importante é que, como observa depois no filme o amigo de Pedersen e oficial Najib Bisma (Dar Salim), ele ficou tempo demais no campo de batalha e perdeu a perspectiva, a visão de conjunto. Quando “pressionado” pela família de civis, que vai procurar o comandante em busca de ajuda, ele resolve seguir as regras. Essa decisão é fundamental e uma das piores que ele poderia ter tomado. Quando ele pede o bombardeio para defender o seu grupo sob ataque, não importando se o local que será afetado é mesmo o ponto em que estão os talibãs, ele comete um crime de guerra e um crime humanitário.
Ainda que no início do tiroteio alguém do grupo comenta que o Ponto 5 parece ser a fonte dos ataques, Pedersen em nenhum momento consegue confirmar esse fato. Ele “chuta” um local próximo da onde parecem sair os tiros e pede um ataque aéreo sem ter a confirmação necessária, mesmo tendo alegado que tinha essa confirmação. Muitos civis morrem no ataque, inclusive crianças.
E daí vem a grande primeira pergunta do filme: essa escolha de Pedersen em defender os seus soldados mesmo a custas da vida de civis não nega o propósito deles estarem ali? Afinal, como ele mesmo diz no início do filme, o grupo está no Afeganistão para “proteger e apoiar a população civil”, para que eles saibam que podem sonhar com a liberdade e a dignidade porque tem o apoio daqueles soldados.
Quando ele se nega a ajudar aquela família de civis e quando, por consequência disso, os soldados dele são emboscados e o comandante decide atacar um alvo mesmo sem saber que mataria outros civis ele está fazendo justamente o contrário da missão que eles se propuseram. Então, afinal, por que eles estão lá? Para protegerem a si mesmos acima de tudo, não importando se isso possa significar a vida de civis, de gente inocente?
O propósito mesmo da missão e da presença militar em zonas de conflito acaba sendo questionado pelo filme desta forma. E a verdade é que os conflitos que conhecemos no Afeganistão, na Síria e em outras partes e que envolvem grupos armados e terroristas parece mesmo uma história sem fim. Ignorar o problema e deixar estes grupos aterrorizarem populações inteiras não parece ser a solução. Mas combater o problema com soldados humanos e passíveis de erros e que apenas aumentam o problema matando civis também não parece ser a solução.
Depois que volta para a casa e é jugado pelo que fez, Pedersen ainda mente. Algo totalmente contrário ao código e a honra militar. Alguém pode argumentar que ele foi pressionado pela mulher para que ele assuma as responsabilidades em casa. É verdade. Ele é pressionado para ser marido, chefe de família e pai. É outra parte importante da vida dele. Mas o peso na consciência de ter matado inocentes certamente vai persegui-lo pelo resto da vida. Então a destruição não é apenas no plano vivenciado na zona de conflito, mas também na vida pessoal.
Ninguém, parece, sai bem desta situação. Mas a destruição de um lado não pode ser comparada com a do outro lado. No fim das contas Pedersen volta para casa, é absolvido e tem a sua família e diversas oportunidades para recomeçar a vida em um local seguro e com qualidade de vida. As pessoas que ele disse que iria proteger e defender seguem sendo perseguidas e mortas, sem dignidade ou oportunidade de melhorar de vida. Krigen não camufla o fato de que estamos vendo duas realidades muito diferentes e que fica claro que qualquer “ajuda” nunca é suficiente porque sempre olha de forma diferenciada os dois lados.
A primeira análise que este filme proporciona é esta. O espectador fica um tanto perplexo com a forma com que as pessoas são mortas com facilidade, não importa se crianças ou adultos. Esta é a guerra. Ali há mortes absurdas acontecendo o tempo inteiro. O filme de Tobias Lindholm é duro, sincero e necessário por causa disso. Bem narrado, ele não deixa o espectador perder interesse em momento nenhum pela história. Uma narrativa que nos mostra a falta de propósito da guerra ao mesmo tempo que nos revela quase a impossibilidade de abrir mão dela.
Passado um tempo depois de ter visto o filme, Krigen desperta outra análise um tanto independente da história: a de como cada escolha nossa nos leva a uma realidade e, consequentemente, define o nosso “destino”. Uma escolha boba ou simples, aparentemente, pode nos levar a uma emboscada ou a um problema maior que, por consequência, nos leva a uma atitude extrema. E assim por diante. Cada escolha, no fim das contas, acaba sendo decisiva. Sempre bom ver um filme que é competente em nos contar essa história fundamental.
NOTA: 10 9,7.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Meus caros leitores, esta semana que passou foi dura. Correria pura. Assisti a Krigen mais no meio da semana mas, só agora, consegui terminar a parte essencial da crítica sobre ele. Vou, excepcionalmente desta vez, deixar apenas a parte essencial por aqui. O restante dos comentários desta seção “Obs de pé de página” eu vou deixar para fazer amanhã, beleza? Até breve.
Voltei conforme o prometido. 😉 Os primeiros aspectos técnicos mais relevantes de Krigen foram citados anteriormente: o roteiro e a direção de Tobias Lindholm. Ele acerta no roteiro ao fazer a escolha por uma história com apelo crescente e que cuida em dar uma “visão geral” da vida do protagonista, abordando tanto a realidade que ele vive na guerra quanto o que espera ele em casa. Isso não é encontrado sempre no cinema, por isso é algo a ser valorizado. Também vale destacar a direção de Lindholm que, claramente, do primeiro até o último minuto, privilegia a câmera na mão e um estilo que lembra o de documentários. Escolha bem acertada para o tipo de história que ele está contando em Krigen.
Outro ponto a destacar neste filme é o trabalho dos atores. Todos estão muito bem mas, sem dúvida, o grande destaque da produção é o protagonista vivido por Pilou Asbaek. O ator está muito bem em qualquer momento da história e convence o espectador sobre as suas convicções e dúvidas, tornando o personagem de Claus Michael Pedersen mais humano. A atriz Tuva Novotny também está muito bem, assim como as crianças que fazem os filhos deles e os soldados do batalhão de Pedersen.
Há um ponto fundamental nesta história e que talvez nem todo mundo tenha muito claro depois que o filme termina. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). A questão é se alguém de fato confirma o local exato em que estão os talibãs que atacam o pelotão do protagonista. Ainda que um soldado tenha sugerido o local quase no início do tiroteio, em momento algum eles tem a confirmação sobre a presença dos terroristas ali. Não há confirmação visual por parte de ninguém – nem do comandante. Mas Pedersen decide, um tanto desesperado, mandar o ataque mesmo assim. Ele quer salvar o seu grupo e não se importa com o preço que outros possam ter que pagar por isso.
Da parte técnica do filme ainda vale destacar a competente direção de fotografia de Magnus Nordenhof Jonck e a eficiente edição de Adam Nielsen. O design de produção de Thomas Greve também ajuda a ambientar o espectador no clima adequado para o filme.
Krigen estreou no Festival de Cinema de Veneza em setembro de 2015. Depois o filme participaria, ainda, dos festivais de cinema de Zurique, Reykjavik, Palm Springs e Göteborg. Até o momento o filme não ganhou nenhum prêmio, apenas foi indicado para 11 – incluindo a indicação ao Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira.
Não há informações sobre o custo de Krigen. Nos Estados Unidos, aonde o filme estreou de forma limitada, ele fez pouco mais de US$ 36 mil nas bilheterias. Um valor irrisório e que só reforça a pouca chance que a produção tem de concorrer a qualquer prêmio – especialmente o Oscar.
Agora, algumas curiosidades sobre a produção. Quase todo o elenco de Krigen é formado por soldados dinamarqueses que realmente foram designados para o Afeganistão.
Esta produção foi rodada em Copenhague e em Konya, na Turquia.
Esta é a quarta vez que o ator Johan Philip Asbaek retrata um soldado dinamarquês. A primeira vez foi na segunda temporada de Forbrydelsen (The Killing). Depois ele fez esse papel no programa de TV 1864 e, novamente, em 9. April.
Esta é uma produção 100% da Dinamarca.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,1 para esta produção, enquanto os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 45 críticas positivas e apenas quatro negativas para o filme, o que garante para Krigen uma aprovação de 92% e uma nota média de 7,9.
Pensei um pouco melhor e achei um pouco exagerada a minha nota 10 para o filme. Acho que ele é bom, mas não chega a ser brilhante. E nem mesmo o melhor filme do gênero dos últimos tempos. Por isso resolvi diminuir um pouco a avaliação.
CONCLUSÃO: Filmes de guerra existem aos borbotões. Cada um tem um propósito. O que eu mais gostei em Krigen foi questionar o papel do “bom soldado”, do homem honrado que volta para casa e que tem uma vida para seguir. Com narrativa envolvente e claramente dividida em duas partes, este filme não deixa a atenção do público cair em nenhum momento. Além de bem construída, a trama faz pensar sobre os conflitos que parecem não ter fim, retroalimentando uma violência que ainda não sabemos aonde vai parar. Achei brilhante e profundo. Não consegui pensar em uma nota diferente da que eu dei antes. Mais uma bela descoberta do Oscar 2016.
PALPITES PARA O OSCAR 2016: Podem malhar a premiação máxima da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood o quanto quiserem. Como qualquer outra premiação, esta tem falhas. Mas quem mais além do Oscar colocaria tão em evidência um filme como Krigen. E como eu disse antes, que belo achado o deste filme!
Ainda não assisti, mas todas as bolsas de apostas do mercado colocam Son of Saul como o favoritíssimo na categoria Melhor Filme em Língua Estrangeira do Oscar 2016. Além de Krigen, assisti a Mustang (comentado aqui) e a Theeb (com crítica neste link), outras duas produções nesta disputa. E ainda que eu tenha gostado muito de Mustang, admito que o meu voto iria para Krigen. Achei o filme brilhante. Talvez porque há tempos eu queria ver uma produção que tratasse os “mocinhos” com a dúvida necessária.
Além de Son of Saul, falta assistir ao colombiano Embrace the Serpent. Não dá para bater o martelo sem ter visto a estes dois filmes. Mas algo é certo: este ano a categoria Melhor Filme em Língua Estrangeira está bem diversificada e com produções bem interessantes. Em comum, quase todas tratam de temas que seguem muito atuais e passíveis de debate. O que aproxima um pouco a categoria dos documentários – ótimo neste ano também, diga-se.
O público, com tudo isso, só tem a ganhar. Não sei se Son of Saul vai levar mesmo o caneco, mas desde já recomendo Krigen e Mustang para quem ainda não assistiu a estas duas produções. Para mim, as duas mereciam tranquilamente a estatueta.
Uma resposta em “Krigen – A War – Guerra”
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