O desprezo, o desamor, o tédio e algo que, aparentemente, solucione tudo isso pode levar a uma loucura crescente e a muita, muita crueldade. Lady Macbeth é um filme interessante e curioso. Ele nos mostra como as pessoas são capazes de criar os seus mais profundos infernos pessoais. E como os elementos que eu comentei anteriormente são perigosos, muito perigosos. Um grande filme, com uma atriz estupenda como protagonista e um desenrolar de história meticuloso e que cobra do espectador um grande autocontrole para suportar o abjeto.
A HISTÓRIA: Em uma celebração, Katherine (Florence Pugh) está com um véu branco sobre o rosto enquanto acompanha o canto na pequena igreja. Ela olha ao redor, e vê Boris (Christopher Fairbank) e Anna (Naomi Ackie) atrás. Corta. À noite, Anna ajuda Katherine a se vestir. Ela arruma os longos cabelos da jovem e pergunta se ela está com frio. Katherine diz que não. Anna pergunta se ela está nervosa, e Katherine diz que não.
Ela acaba de se casar com Alexander (Paul Hilton), e esta é a noite de núpcias deles. Alexander tenta ser amável, mas apenas consegue ser estranho e rude. Ele diz que ela não deve sair da casa e manda Katherine tirar a roupa. Na sequência, ele se deita para dormir. Este é apenas o começo da história de Katherine naquela casa e na posição de Senhora Lester.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Lady Macbeth): Nos créditos finais desta produção nós percebemos que o roteiro de Lady Macbeth, escrito por Alice Birch, é baseado no livro de Nikolai Leskov chamado “Lady Macbeth of Mtsensk”. Eu não li a obra, já vou me adiantando. Mas mesmo que ela trate de outra personagem, possivelmente uma “versão moderna” da original, impossível não assistir a este filme sem pensar na Lady Macbeth de William Shakeaspeare.
E aí, meus amigos e amigas, esta produção ganha ainda mais interesse. Porque a Lady Macbeth de Shakeaspeare é uma mulher ambiciosa e sem escrúpulos, que influencia o marido para que ele cometa um crime e, com ele, chegue ao poder. É como se ela não tivesse freios ou não fosse capaz de ser parada – pelo menos até o final, quando ela própria tem um desfecho trágico, ao menos na obra de Shakeaspeare. Só que o interessante do filme Lady Macbeth – e imagino que, possivelmente, na obra de Leskov – é que a Lady Macbeth moderna é ainda mais perigosa.
Francamente? Este filme dirigido por William Oldroyd tem cenas fortíssimas e sequências bem sinistras. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). A protagonista da história realmente não tem filtros, freios ou limites para conseguir o que quer. Mas neste filme esta obstinação é elevada a uma nova potência e, diferente da obra de Shakeaspeare, aqui ela não divide a cena com o marido. Não. Muito pelo contrário. Ela é sim a protagonista, e todos os atos importantes da história são tomados por elas. Planejados e executados por Lady Macbeth, sem que ela precise influenciar ninguém – ainda que, e vemos isso bem na história, ela também sabe usar bem as pessoas ao redor a seu favor.
A verdade é que a Lady Macbeth mostrada nesta produção é tão fascinante, complexa e tenebrosa quanto a que inspirou e foi utilizada por Shakeaspeare. Só que, diferente da obra do escritor e dramaturgo inglês, neste filme a dose sinistra ganha uma nova potência. E a questão da consciência da personagem, a culpa que ela sente em Macbeth, não vemos nesta produção. Só que como na obra de Shakeaspeare, neste filme também entendemos que ninguém nasce monstro. Os monstros se formam, se alimentam e crescem se assim o permitimos.
Algo fascinante neste filme, apesar dos crimes hediondos da protagonista, é a forma com que ela vai se libertando da prisão doméstica e vai tomando as rédeas da própria vida. No início, Katherine (a fantástica Florence Pugh) parece uma menina doce, um tanto frágil, bastante pura e até um pouco inocente. A noite de núpcias dela com o novo marido – se é que podemos chamar a noite e aquele homem destas formas – é de arrepiar. Como eu comentei no início deste post, logo percebemos os efeitos do desprezo e do desamor na jovem Katherine.
Inicialmente, parece, ela está morrendo de tédio. Prisioneira daquela casa, ela tenta dormir o máximo possível – o que nada mais é do que uma forma de fuga e de escapar daquela situação absurda. Mas quando o sogro de Katherine, o dono da propriedade, Boris (Christopher Fairbank), afirma que vai passar um tempo fora, assim como o marido dela, Alexander (Paul Hilton), Katherine percebe que pode se der a alguns “luxos”. Como sair da porta de casa e explorar o exterior – algo que ela quer fazer desde o princípio.
Esta liberdade que parece simples marca também a liberação da própria Katherine em todos os sentidos. Encontrando outras pessoas, além da empregada Anna (a também ótima Naomi Ackie), Katherine começa a revelar até aonde ela pode chegar. Especialmente quando ela conhece Sebastian (Cosmo Jarvis), um novo e ousado empregado da família, tudo começa a tomar uma outra forma. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Katherine, livre, leve e solta, sem o sogro ou o marido por perto, resiste por alguns segundos a uma investida diretíssima de Sebastian para, na sequência, logo começar a sua própria liberação sexual.
Então o desprezo, o desamor e o tédio que a estavam consumindo naquele cativeiro doméstico acabam encontrando um certo “antídoto” na paixão que ela desenvolve junto com Sebastian. A vida sexual ativa que ela pretendia com o marido, e que nunca teve, acaba florescendo no contato com Sebastian. Finalmente Katherine se sente livre, em todos os sentidos, e dona da sua própria vida. Mas era evidente que isso não poderia durar para sempre. Em algum momento o sogro ou o marido dela iriam retornar, e aí o que poderia acontecer? Bueno, é exatamente isso que descobrimos em Lady Macbeth.
Diferente da obra de Shakeaspeare, neste filme Katherine é uma Lady Macbeth que, além de manipular para o crime, ela própria é capaz de cometê-lo. Quando ela conhece o prazer e desfruta da liberdade, ela não quer mais abrir mão disso, não importa o que ela tenha que fazer para seguir com estas condições. A personagem é fascinante, e tem uma evolução para a “maldade” impressionante. Na verdade, Katherine encarna de uma certa forma exagerada e trágica a ideia de “empoderamento” feminino.
Quando o sogro e o marido saem da propriedade e dão espaço para ela começar a mostrar a sua personalidade, Katherine aproveita esta oportunidade. Inicialmente, parece, ela está apenas “desfrutando o momento”, saboreando o gosto da liberdade pouco a pouco. Mas quando Sebastian aparece em cena de forma provocadora, Katherine se joga em uma paixão que ela desejava, mas parecia antes ter medo de admitir. E depois que a porteira foi aberta… difícil conter a manada.
Lady Macbeth tem algumas cenas surpreendentes, como quando Katherine descobre a “brincadeira” de Sebastian e sua turma com Anna. Aquele é um cenário agreste, por todos os lados para os quais você olhe. Os “donos da casa” são do estilo bruto, um tanto toscos, e Alexander abre mão de ter uma relação razoável com Katherine pelo simples fato de não fazer a vontade do pai, Boris. Os dois são do estilo “rico estúpidos”, mas os seus empregados não são melhores. Sebastian dá conta dos desejos da nova patroa, mas ele também não é nenhum poeta, digamos assim.
Naquele cenário de pessoas um tanto brutas, Katherine parece ser um estranho no ninho. Mas ela, logo que tem a liberdade para isso, consegue perceber que pode comandar o lugar com certa facilidade. Ela faz o que bem entende, mesmo que isso signifique “manchar” a sua própria reputação. No início, ela tenta disfarçar um pouco o romance com Sebastian, mas depois o caso deles fica escancarado. Como eu disse antes, um dia isso teria fim, e a escolha de Katherine, já uma pessoa sem limites, é tirar do caminho qualquer pedra que possa atrapalhar a sua missão de continuar livre.
(SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Sem nenhum apreço pelo sogro ou pelo marido, ela não tem muitas dificuldades de acabar com os dois. Agora, quando o pequeno Teddy (Anton Palmer) aparece em cena, ela tem as suas certezas colocadas por terra. Para começo de história, ela surpreende por saber que o marido, que parecia não “gostar da fruta”, teria tido um filho fora do casamento. Depois, claro que é muito diferente se livrar de uma criança do que de alguns adultos. Neste sentido, diferente da Lady Macbeth de Shakeaspeare, não é Katherine que incita o crime, mas Sebastian. Os papéis se invertem no último crime, mas essa inversão não termina aí.
Enquanto na obra de Shakeaspeare a culpa acaba sendo decisiva para o fim de Lady Macbeth, nesta produção de Oldroyd não existe espaço para a culpa em Katherine. Sebastian sim tem um “rompante” de culpa no final – justamente ele que incitou o último crime… Mas Katherine não. De forma inteligente ela acaba conseguindo virar o jogo a seu favor mais uma vez, e penaliza o seu cúmplice e a inocente (e aparentemente apaixonada por ele) Anna. E cá entre nós, ao menos Sebastian mereceu o desfecho que teve. Achei muita coragem da parte dele fazer a confissão e jogar a culpa em Katherine… gostei da reviravolta que ela conseguiu dar na história.
Esta produção é forte, especialmente pelo sangue frio dos crimes e por um certo sadismo da protagonista. Mas, ao mesmo tempo, este é um filme sobre empoderamento feminino um tanto sarcástico e estrategicamente “exagerado”. Ele nos mostra até onde uma mulher pode chegar para tomar as rédeas de sua vida nas próprias mãos. O preço para isso nem sempre é justo, e esta busca pode levar uma mulher à loucura. Como nos apresenta com bastante propriedade este filme cheio de momentos marcantes e de uma e outra surpresa no caminho.
NOTA: 9,8.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Este é um filme marcante. Daqueles que dificilmente vão sair da sua memória por um bom tempo. E isso não por um ou outro elemento, mas pelo conjunto da obra. A história, por si só, impressiona. Pela força narrativa e pela surpresas no caminho. Para uma história assim funcionar, o filme precisa ter ótimos atores, e este é o caso de Lady Macbeth. Além disso, esta produção se destaca por diversos aspectos técnicos.
Vou começar falando da ótima direção de fotografia de Ari Wegner e dos figurinos maravilhosos de Holly Waddington. Estes são dois elementos fundamentais para nos fazer embarcar em uma história que claramente é de época – Lady Macbeth está ambientado em uma propriedade rural inglesa no século 19. Um dos fatores que faz este filme ficar muito tempo na nossa memória é justamente o visual da produção – e a direção de fotografia e os figurinos se destacam neste sentido.
Agora, vale falarmos um pouco mais sobre a história contada nesta produção. Inevitável pensar, como comentei durante a crítica, na obra de Shakeaspeare. Se você ficou curioso para saber mais sobre um dos clássicos do bardo inglês e, especialmente, sobre a Lady Macbeth que ele criou, vale dar uma olhada neste artigo de Maria Ester Vargas e neste texto de Syntia Pereira Alves. Mas importante também observar o que eu citei anteriormente, de que este filme é baseado no livro do russo Nikolai Leskov.
Busquei um pouco mais de informações sobre esta obra dele, e encontrei este texto na Wikipédia. Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk foi publicada inicialmente em 1865 – justamente o século 19 – e tratava-se de uma “novela curta”. A história foca o papel submisso das mulheres na Europa do século 19, o adultério e a vida provinciana. A protagonista, como vemos no filme (SPOILER – não leia se você ainda não assistiu a Lady Macbeth), rompe com o papel de mulher submissa ao rebelar-se contra aquela situação tendo um amante, planejando e executando assassinatos.
Além da novela curta lançada em 1865, a obra de Leskov inspirou uma ópera homônima lançada por Dmitri Shostakovich em 1934 e o filme Sibirska Ledi Magbet (Lady Macbeth Siberiana) dirigido por Andrzej Wajda e lançado em 1962.
O visual desta produção é um ponto fundamental para o filme dar certo, assim como a direção segura e que valoriza estes elementos e as atuações dos atores feita por William Oldroyd. O roteiro de Alice Birch também é envolvente, e sabe conduzir a história de uma forma com que os espectadores se sintam parte daquele enredo e um tanto angustiados com o que acontece com a protagonista que parecia tão inocente e que se transforma com o passar do tempo.
Ainda que o filme tenha todas estas qualidades, ele não seria nem uma sombra do que ele é se não tivesse uma grande atriz no papel principal. Florence Pugh surpreende como Katherine. O papel dela não é fácil, mas a atriz consegue dar o tom exato para a sua personagem em cada fase. Ela nunca perde totalmente a inocência, mas de forma muito sutil a atriz vai desvelando as outras facetas de Katherine. Uma grande interpretação, sem dúvidas. Um dos pontos fortes da produção.
Para mim, 90% do mérito do filme é de Florence Pugh. Mas, além dela, outros atores fazem belos trabalhos em cena. Destaque, neste sentido, para Naomi Ackie, que faz um excelente trabalho como Anna. Ela é muito expressiva, o que garante que, mesmo na “fase muda”, ela se destaque. Também se saem muito bem Cosmo Jarvis, Paul Hilton e Christopher Fairbank, ainda que estes dois últimos tenham quase pontas na produção. Estes são os atores com papéis mais relevantes.
Além deles, vale citar os coadjuvantes Golda Rosheuvel como Agnes, avó de Teddy; Anton Palmer como Teddy, que se diz herdeiro de Alexander; Cliff Burnett como o Padre Peter; e Bill Fellows como o Dr. Burdon.
Entre os elementos técnicos de Lady Macbeth, vale citar ainda a música muito pontual de Dan Jones; a edição de Nick Emerson; o design de produção de Jacqueline Abrahams; a direção de arte de Thalia Ecclestone; e a maquiagem de Claire Pompili, Sian Wilson e May Liddell-Grainger.
Lady Macbeth estreou em setembro de 2016 no Festival Internacional de Cinema de Toronto. De lá para cá, a produção participou de impressionantes outros 34 festivais e mostras de cinema pelo mundo. Sem dúvida alguma eis uma produção com uma bela trajetória de festivais. Merecido.
Serei franca com vocês. Fiquei com vontade de dar um 10 para este filme. Mas achei complicado dar uma nota máxima para um filme tão “sem moral”. Sim, ele tem aquele detalhe que eu comentei de uma história de “empoderamento feminino” levado às últimas consequências, um tanto macabra e trágica. Mas ainda assim, é um baita filme. Mas não tive coragem de dar um 10 para ele não. 😉
De acordo com o site Box Office Mojo, Lady Macbeth estreou em 131 cinemas dos Estados Unidos no dia 14 de julho de 2017 e, no dia 6 de agosto, estava passando em apenas cinco salas. Neste período, o filme acumulou pouco mais de US$ 739 mil nas bilheterias, um resultado bem de filme “alternativo” e pouco visto.
Em sua trajetória, Lady Macbeth conquistou 12 prêmios e foi indicada a outros nove. Entre os prêmios que recebeu, destaque para o de Melhor Atriz para Florence Pugh no Prêmio do Círculo de Críticos de Cinema de Dublin; Melhor Atriz para Florence Pugh no Festival Internacional de Cinema de Dublin; o Prêmio Cineuropa para William Oldroyd no Festival de Cinema Europeu Les Arcs; o “Directors to Watch” para William Oldroyd no Festival Internacional de Cinema de Palm Springs; o Prêmio Fipresci para William Oldroyd no Festival Internacional de Cinema de San Sebastián; o Prêmio Fipresci para William Oldroyd no Festival de Cinema de Thessaloniki; e um Prêmio da Crítica e uma Menção Especial para William Oldroyd no Festival de Cinema de Zurique.
Esta é uma produção 100% do Reino Unido. Lady Macbeth também foi totalmente rodado na Inglaterra, em cidades como Northumberland e Chester-le-Street e em locações feitas em Seaham Beach, Cow Green Reservoir em County Durham, e em Gibside, em New Rowlands Gill.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,3 para esta produção, enquanto que os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 120 críticas positivas e 15 negativas para Lady Macbeth, o que garante para o filme uma aprovação de 89% e uma nota média de 7,7. Achei, especialmente, as notas muito boas, acima da média dos site. Merecido, porque este é um dos filmes marcantes de 2017, sem dúvidas.
CONCLUSÃO: Este é um filme que começa suave, quase pueril, e que descamba para o lado mais tenebroso do ser humano. Lady Macbeth é uma aula de construção narrativa. Nos faz pensar sobre o que somos capazes de fazer por amor, ódio, desprezo ou desespero. Difícil classificá-lo. Só sabemos que ele é potente. Tem uma grande construção narrativa, uma direção de fotografia maravilhosa, assim como belos figurinos e uma protagonista irrefreável. Lady Macbeth não é um filme bonito. Como o nome – para quem logo, como eu, pensou em Shakeaspeare – mesmo sugere. E ainda que o filme não tenha uma ligação direta com Shakeaspeare, ele trata sim do espírito humano. Aterrador, envolvente, fascinante. Veja com moderação. 😉
2 respostas em “Lady Macbeth”
Eu gostaria de saber se a morte do cavalo foi real. Sei que muitas produções animais são sacrificados para dar mais realidade às cenas.
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[…] me remeteu a outro filme. E, este sim, que eu achei muito mais potente e interessante. Me refiro a Lady Macbeth, produção que eu considero uma das melhores que eu vi em 2017. Enquanto, para o meu gosto, Lady […]
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