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War/Dance


Impressionante o ponto em que pode chegar a maldade humana. Devo dizer que fiquei mal com esse filme. E claro que o mal que eu fiquei tem a ver com as minhas crenças e minhas necessidades e não, necessariamente, pelo que o filme realmente é. Dito isso, comento que eu estava atrás deste War/Dance há alguns meses, mas nunca conseguia assistí-lo. Por fim consegui. E me fez um estrago importante, ainda que necessário. É um filme duro, muito duro. E belo, belíssimo. Incrível como a crueldade e a beleza podem dividir um mesmo espaço e, mais, compartilhar das mesmas vidas. Mas talvez aí, justamente neste ponto, esteja o mais incrível do filme: nos mostrar como a pior das maldades, que a vida mais vilipendiada do mundo, pode também renascer e sonhar. A esperança das pessoas reais que aparecem neste documentário é algo impossível de medir. E contagiante. Ainda que fique um gosto amargo na boca, a sensação de que algo importante pode ser feito de maneira muito simples acaba sendo maior.

A HISTÓRIA: O documentário dirigido por Sean Fine e Andrea Nix conta a história da Escola Primária de Patongo, localizada no Campo de Refugiados da Zona de Guerra de Patongo, no Norte de Uganda. Pela primeira vez na história do Concurso Nacional de Música a tribo Acholi participa com uma escola na competição. Naquele ano, 20 mil escolas de todo o país competiram por uma vaga no concurso, e a Escola Primária de Patongo conseguiu ser selecionada. O filme mostra os preparativos para o concurso de música, dança e tradições ao mesmo tempo em que ressalta a história de Rose, Dominic e Nancy, pré-adolescentes marcados pela situação de conflito permanente na região – eles tiveram alguns de seus pais ou parentes mortos pelos guerrilheiros, além de contarem com outras marcas de abuso, violência, medo e de privação da liberdade.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a War/Dance): O filme inteiro é marcado por umas imagens muito boas, tecnicamente falando, e fortes em sua expressão. Ainda assim, depois de algumas imagens muito boas iniciais, War/Dance começa a ouvir o depoimento de Rose, Dominic e Nancy sobre as suas vidas e o que lhes aconteceu. Inicialmente me incomodou um pouco o estilo “falar direto para a câmera”. Achei que os depoimentos ficaram, assim, muito “forçados” ou mecânicos. Me incomodou porque sempre há outras maneiras de se ouvir um depoimento sem que pareçam tão “forçados”, mas depois as histórias dos pré-adolescentes vão se desenvolvendo e vê-los cantando e dançando, principalmente, é algo mágico e que quebra qualquer idéia anterior de artificialidade.

War/Dance é realmente impressionante. Primeiro porque conta uma história que muitos poderiam considerar “banal”, ou seja, conta a história da participação de uma pequena e esquecida escola primária nos “cafundós” de Uganda em um concurso de música, danças e tradições. Essa seria a típica história que ninguém nunca conheceria ou ouviria falar se não fosse pelo filme. Típica história também ignorada por jornalistas e governos mundo afora. Mas é justamente uma história simples como esta que comove porque mostra uma parte da realidade pela ótica das pessoas que vivem ali – e que sempre são estereotipadas – e, mais que isso, mostra a superação destas pessoas por um sonho. Lindo, realmente lindo.

Como comentei antes, fiquei admirada de como a crueldade pode andar tão de braços dados com a resistência, como o medo pode estar tão ligado a esperança e a superação, de como a miséria pode ser apenas o pano de fundo de vidas que sonham e que lutam mais com a suas consciências do que com a sua fome. No filme existem um ou dois takes de crianças vivendo a miséria extrema, como um garotinho que fica catando grãos de arroz depois que a população refugiada reparte os sacos de donativos, mas não é este o foco da história. O filme de Sean Fine e Andrea Nix quer mesmo descobrir o que pensam aqueles jovens, o que eles sentem por estar ali, sendo ameaçados constantemente pela violência, pelas guerrilhas e pela perda de pessoas que amam. O que pensam e sentem jovens que não podem usufruir de sua liberdade plena e que só tem a memória e os sonhos como aliados.

War/Dance não mostra cenas de violência, mas tem uma narrativa do terror tão impressionante que torna esta história algo muito forte. E dói ainda mais ouvir estas histórias das bocas dos jovens que a viveram literalmente na pele. Dói, mas é fundamental ouvir. Assim como é fundamental ver a beleza que a música e a dança trazem para estas vidas, iluminando os olhos desta garotada acostumada a ver absurdos; enchendo de esperança e de encanto os corações e mentes algumas vezes cansados da lida diária de trabalho ou de luta contra os seus “fantasmas”. Lindo, realmente. Nesta parte o filme é muito poético, com imagens realmente incríveis.

E claro, quando a história vai chegando cada vez mais perto da competição, o espectador não foge da “armadilha” de ficar torcendo pela escola de Patongo. Digo que é uma armadilha porque, afinal, você está torcendo por algo que já aconteceu, que é passado, para algo que sua torcida não fará mais nenhuma diferença. Ao mesmo tempo, senti medo por eles… afinal, toda aquela vontade de ganhar, se fosse frustrada, seria realmente terrível. Especialmente para aquelas crianças e jovens.

Gostei muito também da idéia de resgate e preservação das tradições que o filme passa com a história daquelas pessoas. Afinal, como dizem em um certo momento, a música e suas tradições são valores que nem a guerra pode tirar deles. A verdade é que uma pessoa se conhece muito melhor quando descobre de onde veio, que elementos, costumes e signos de suas “linhagens” lhe acompanham até hoje – direta ou indiretamente.

Recomendo o filme muitíssimo, mas para pessoas não muito sensíveis. Como eu disse, ele não tem cenas de violência, mas tem uma narrativa dura sobre os abusos que foram feitos contra aquelas pessoas, sobre o extremo da maldade humana. Também tem cenas belíssimas e uma idéia muito forte de quebra de estigmas, de quebra de pré-conceitos e de esperança. Para quem pode suportar algumas verdades muito duras e que está preparado para querer “sair correndo para alguma parte” para fazer um gesto pequeno que signifique algo, eu recomendo.

NOTA: 10.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: War/Dance foi indicado ao Oscar 2008 – mas perdeu a estatueta para Taxi to the Dark Side, um filme que ainda não tive o prazer de assistir. Além do Oscar, ele foi indicado a muitos outros prêmios – ganhando 15 deles até agora, com destaque para os prêmios dados pelo público nos festivais de Aspen, Wisconsin e Woodstock. Sean Fine e Andrea Fix ganharam ainda o prêmio como melhores diretores no Festival de Sundance.

Antes não tratei de um dos pontos fortes do filme: além de contar histórias de perdas, War/Dance toca no tema do ultrajante sequestro de crianças pelas tropas rebeldes. Elas são levadas para as selvas e treinados para matar – algo que vai mudar as suas vidas para sempre. Forçadas pelos rebeldes, elas algumas vezes tem que matar pessoas que conhecem. Algo inconcebível, aterrador. Nesta parte, a hora em que Dominic pergunta sobre seu irmão desaparecido e, mais, pergunta a razão dos rebeldes sequestrarem crianças como ele mesmo “sabendo que isto é errado”, é de romper qualquer coração. Tudo se resume a luta por poder, sempre. Realmente um belíssimo trabalho dos diretores.

Segundo as notas dos produtores no site do filme – ótimo, diga-se – o campo de refugiados em que a história é contada abriga 60 mil pessoas. Eles não tem eletricidade e nem água corrente, além de estarem permanentemente inseguros sobre possíveis ataques – ainda que tenham a “segurança” permanente do exército. Para se ter uma idéia desta insegurança, um ano antes do filme ser feito, 29 crianças foram sequestradas, retiradas a força do colégio local, pelos rebeldes.

Uma das coisas bacanas do site é que ele tenta atualizar as pessoas da vida de Rose, Dominic e Nancy. No filme, Rose tem 13 anos e conta a sua história após ter perdido os pais assassinados. Dominic, 14 anos, escapou do território dos rebeldes depois de ter sido sequestrado por eles, separado de sua família e de ter sido obrigado a servir para os rebeldes com armas nas mãos. Nancy, 14 anos, perdeu o pai, morto pelos rebeldes, e agora cuida dos irmãos enquanto a mãe viaja para trabalhar e ajudar outras pessoas. No site os produtores publicam mais informações de cada um.

Os usuários do site IMDb conferiram a nota 7,7 para o filme, enquanto que o Rotten Tomatoes publica 37 críticas positivas e seis negativas. Ele não é uma unanimidade… ainda assim, achei a nota no IMDb muito baixa.

Sean Fine vêm de uma carreira basada essencialmente em produções para a televisão – tendo no currículo trabalhos como diretor de fotografia para a National Geographic e para a série Taboo, da qual é também produtor e roteirista. Andrea Nix trabalhou com ele na série Taboo, além de ter experiência em documentários como Reptile Wild. Resumindo: os dois tem experiência como documentaristas e vêm de uma grande parceria com a National Geographic – o que explica, talvez, um pouco da preocupação em “depoimentos para a câmera”.

CONCLUSÃO: Um filme forte e belo, que toca em temas como o sequestro de crianças para engrossar o número de guerreiros em tropas rebeldes, a falta de liberdade e os problemas de um campo de refugiados, a violência e o medo em uma zona de conflito e, ao mesmo tempo, aborda com um trabalho de direção muito bom a esperança que a música, a dança e os resgates de tradições trazem para crianças e jovens expostos às condições acima comentadas. No fundo, é um belo filme sobre a luta contra a brutalidade, sobre atos simples que podem trazer esperança e brilho nos olhos para pessoas esquecidas pela dita “humanidade”. Recomendo, especialmente para quem pode suportar narrativas de violência – mas sem cenas do mesmo – fortes. Um belíssimo filme, realmente.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 20 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing e, atualmente, atuo como professora do curso de Jornalismo da FURB (Universidade Regional de Blumenau).

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