Pessoas ferradas, algumas vezes, tomam atitudes desesperadas. E basta uma escolha errada para que uma espécie de roda gigante de acontecimentos ruins passe por cima desta pessoa – e de quem mais estiver por perto. Esta idéia foi explorada com sucesso por vários filmes, incluindo o comentado por aqui Before the Devil Knows You’re Dead. A mesma premissa ronda o núcleo narrativo de Sleepwalking – um filme que chamou a minha atenção por seu título, pelo elenco e, porque não dizer, por seu cartaz. Escrito para ressaltar o talento de seus atores, Sleepwalking conta uma história de escolhas ruins e acertos de contas. Mas, infelizmente, esta produção não consegue ir além da temperatura média. Convence, mas não emociona como poderia.
A HISTÓRIA: Joleen (Charlize Theron) tenta se explicar na delegacia local, mas não convence ao policial (Mathew St. Patrick), que aproveita para lhe dar um par de conselhos. Louca para sair dali, Joleen agarra a filha Tara (AnnaSophia Robb) pelo braço e a leva para a escola. Enquanto isso, James (Nick Stahl), irmão de Joleen, liga para seu trabalho e repete mais uma vez uma desculpa esfarrapada para faltar. James sabe que a irmã precisa dele. Joleen e Tara se mudam para a casa de James. Mas tio e sobrinha são surpreendidos quando Joleen some sem dizer para onde foi, apenas deixando uma carta para Tara dizendo que voltará a tempo de seu aniversário. Pouco depois, James é demitido do trabalho e, com o aluguel atrasado, tem que deixar sua casa. Tara passa a ser responsabilidade do serviço social, até que ela e o tio resolvem fazer uma manobra arriscada e sair da cidade.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Sleepwalking): Pessoas que tem uma vida confortável e, teoricamente, pequenos problemas para resolver, dificilmente entendem as pessoas que tomam atitudes desesperadas. Isso é certo. Mas é igualmente verdadeiro o problema que muitos tem em conseguir se comunicar. No caso da história de Sleepwalking, é preciso dois tipos de compreensão. O primeiro exige que “baixemos” de nossa vida segura para nos colocar no lugar de quem está completamente ferrado. A perspectiva muda. O segundo passa pela reflexão de como a falta de comunicação pode tornar tudo na vida muito mais complicado.
Sleepwalking, para mim, é um drama sobre problemas familiares, falta de oportunidades e, principalmente, dificuldades de comunicação. Tudo seria diferente, nesta história, se ao invés de desaparecer da casa do irmão, em uma certa manhã, deixando apenas uma carta com algum dinheiro para a filha, Joleen tivesse sentado com o irmão e Tara para explicar-lhes seu plano. Ou não? Certamente a insegurança, o desespero e o turbilhão de dúvidas que passou a tomar conta da vida de Tara e de James teriam sido radicalmente diminuídos. Ou nem existiriam.
(SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Para começar, provavelmente James não teria passado um dia inteiro, praticamente, procurando a irmã – e, consequentemente, não teria perdido o emprego. Talvez, ainda empregado, James teria conseguido pagar o aluguel e Tara, mais tranquila, continuaria indo a escola regularmente. Ninguém teria parado nas mãos da assistência social, sob o risco de ser adotada por uma outra família. Mas não, Joleen repetia os passos do pai, Mr. Reedy (Dennis Hopper), de quem tinha fugido anos antes. Aliás, este parece ser um fardo de muitos filhos de pais que não sabem se comunicar e/ou que são violentos. Odiando a conduta do pai, Joleen conseguiu “melhorar” em relação a ele apenas em parte – aparentemente ela não era uma pessoa violenta mas, ainda assim, não conseguia manter uma conversa franca com a filha ou o irmão.
Esta é uma das grandes questões deste filme: o quanto as pessoas são capazes de aprender com a própria casa. Ou, em outras palavras, até que ponto os filhos conseguem ser uma “evolução” dos próprios pais. Porque esta, em teoria, é uma das nossas funções, não é mesmo? Evoluirmos para sermos melhores… e sem que isso seja uma competição, saliento. Acredito, honestamente, que um dos sentidos de vivermos é o de melhorarmos em relação ao que aprendemos – dos outros, incluindo nossos pais, e com nossa própria experiência. Se não evoluímos, avançamos, para que mesmo estamos aqui?
Sleepwalking mostra um pouco disto pela trajetória de Joleen e James, filhos de um “brucutu”, um senhor do interior dos Estados Unidos acostumado a lidar com os filhos (e com a vida) de forma bruta. Certo que ele provavelmente foi criado assim e repetia velhos processos de aprendizado, mas cadê a evolução daquele senhor? Como muitas pessoas que passam pela vida sem um minuto de reflexão, acredito que ele não pensava em evoluir. O problema é que o efeito disso é sentido por pessoas que dependem economica e, principalmente, afetivamente dele. No caso, seus filhos e neta.
No fundo, Joleen e James não conseguiram exorcizar a carga negativa recebida pelo pai. Ambos tentavam negar as atitudes do velho mas, até certo ponto, repetiam alguns de seus passos. Pelo menos Joleen, que mantinha a falta de comunicação com a filha e sofria, aparentemente, de uma carência crônica. James, um tanto “anestesiado” em uma vida sem muitos altos e baixos, acaba despertando de seu “sonambulismo” quando se vê obrigado a se sentir responsável verdadeiramente por alguém – no caso, a sobrinha Tara. No fundo, Sleepwalking é um belo filme sobre comprometimento e a noção de que estarmos “despertos” significa enfrentar nossos medos e fantasmas. Compreender o “de onde viemos” e fazer uso disso para o nosso futuro.
Mas nem tudo é perfeito no reino da Dinamarca. Ao mesmo tempo em que Sleepwalking consegue tocar com os dedos em questões familiares importantes, ele se perde em algumas saídas desnecessárias. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Me incomodou um pouco o exagero na caracterização de “malvado” do personagem de Dennis Hopper. Ainda que o ator esteja divino neste papel – como quase todos os outros do elenco -, achei o Sr. Reedy muito caricato. Também não vi muito sentido naquele excesso de violência – e desfecho idem. Se James sabia tão bem em que terreno estava pisando, ele provavelmente não agiria daquela forma. Afinal, ele não era mais uma criança ou um jovem indefeso facilmente suscetível a um rompante de descontrole. Não sei… mas achei que o roteiro começa a derrapar a partir do momento em que James, Tara e o Sr. Reedy começam a conviver na fazenda.
Mesmo com estes “poréns” a respeito do roteiro de Zac Stanford, devo salientar que Sleepwalking é um filme que valoriza o trabalho dos atores. Gostei muito de Charlize Theron, mais uma vez. A cada produção, para mim, ela demonstra como é uma atriz madura na questão da interpretação. Aqui ela faz mais um belo trabalho. Nick Stahl também consegue uma interpretação acima da sua média – até porque, normalmente, eu acho este ator apenas mediano. E, sem dúvida, esta foi a melhor oportunidade na carreira de AnnaSophia Robb até agora. A menina mostra que tem talento e que, talvez, possa seguir mostrando um bom desempenho por muito tempo ainda. E o Sr. Dennis Hopper, com seu personagem forçado, tem pouco trabalho pela frente.
NOTA: 7,5.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Se o roteiro de Sleepwalking deixa um pouco a desejar, o contrário acontece com a direção de Bill Maher. A estréia dele na condução de um filme valoriza, praticamente na mesma medida, a interpretação dos atores e o cenário que eles escolheram para fazer as suas vidas – e que fala muito sobre suas escolhas. Antes de Sleepwalking, Maher havia trabalhado como assistente de direção em The Chumscrubber e como responsável de efeitos especiais de diferentes produções.
Pelo menos três coadjuvantes tem um certo destaque nesta história: Woody Harrelson como Randall, amigo do trabalho de James que acaba convidando o ex-colega a viver no porão de sua casa; Deborra-Lee Furness como Danni, uma mulher mais velha que parece se interessar por James; e Callum Keith Rennie, conhecido pela série Californication, como Will, um caminhoneiro que mantêm um caso com Joleen.
Aos que se interessam pela parte técnica dos filmes, destaco aqui duas pessoas que fizeram um bom trabalho em Sleepwalking: o espanhol Juan Ruiz Anchía como diretor de fotografia e Christopher Young pela trilha sonora.
Ainda que tenha qualidades, o roteiro de Zac Stanford sofre com um ritmo lento demais, em alguns momentos, e aparentemente vazio de significados, em outros. Como pontos positivos, destaco a já comentada valorização dos atores e o espaço que o filme dá para momentos construídos visualmente de maneira perfeita. O principal deles envolve Tara, uma piscina, um cigarro e patins. Aquela cena, em que a adolescente repete os passos da mãe e mostra talento em fascinar os homens (em seu caso, garotos), é uma das melhores do filme.
Sleepwalking estreou em janeiro de 2008 no Festival de Sundance. Sem ganhar nenhum prêmio e nem chamar muito a atenção das distribuidoras mundo afora, o filme acabou sendo lançado diretamente em DVD em muitos mercados.
Produzido pelos Estados Unidos e pelo Canadá, este filme foi rodado em duas cidades canadenses – Moose Jaw e Regina.
Entre março e maio de 2008, período em que o filme ficou em cartaz nos Estados Unidos, Sleepwalking conseguiu arrecadar pouco menos de US$ 169 mil nas bilheterias.
Acredito que a atriz AnnaSophia Robb, que ficou conhecida, entre outros, por seu papel como Loren McConnell em The Reaping, logo mais poderá abocanhar algum prêmio importante em sua carreira. Sleepwalking demonstra que a menina do Colorado atualmente com 15 anos está amadurecendo como intérprete. Olho nela, porque em 2010 será lançado Dear Eleanor, filme dirigido por Garry Marshall protagonizado por AnnaSophia e que conta uma destas histórias desenhadas para prêmio. No filme, a atriz interpreta uma garota de 14 anos que cruza os Estados Unidos em 1962, em plena crise dos mísseis de seu país com Cuba, para procurar a sua falecida mãe e também a Eleanor Roosevelt.
Os usuários do site IMDb conferiram a nota 6,2 para este filme. Os críticos que tem textos linkados no Rotten Tomatoes foram mais cruéis com Sleepwalking: lhe dedicaram 46 críticas negativas e apenas 10 positivas – o que lhe garante uma aprovação de 18%. Claudia Puig, crítica do USA Today, definiu Sleepwalking, neste texto (em inglês), como um indutor de sono. “Portentoso e maçante, o filme apresenta uma das piores performances da carreira de Dennis Hopper” que, para Puig, acaba com qualquer possibilidade deste drama familiar ser levemente interessante.
Concordo com a crítica quando ela diz que o roteiro tem vários pontos que não convencem. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Puig exemplifica esta falta de coerência com a fuga fácil demais pela estrada de James e Tara, assim como a volta repentina de Joleen, “sem explicações a respeito de por onde ela passou, porque ela saiu ou porque voltou”. Se bem que, francamente, acredito que estas explicações viriam depois do reencontro dela com a filha. Mas Puig está certa ao comentar que os personagens do roteiro são exageradamente unidimensionais.
Outro texto bem interessante é este (em inglês), assinado por Lou Lumenick, do New York Post. “Cuidado com qualquer filme que termine com um clichê tão extremo como ‘Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida'”. Assim começa a crítica. hahahahahaha. Genial; e bem verdadeiro. Para Lumenick, Sleepwalking é “quase uma paródia dos filmes do Festival de Sundance”, onde estreou em 2008. Pior que realmente ele parece, muitas vezes, uma tentativa infrutífera de fazer parte do bom cinema independente norte-americano. Ele quase, quase chega lá…
Indico ainda esta crítica (em inglês) assinada por Stephen Holden, do The New York Times. “Filmado principalmente durante o inverno, em tons pardos, cinzas e branco sujos, Sleepwalking sustenta um clima de frieza implacável, usando uma estética de desolação como símbolo de integridade. Integridade e qualidade, infelizmente, não são sinônimos. Sleepwalking permanece em um pequeno território onde poucos filmes – mesmo os indies – ousam pisar, mas apresenta falhas demais para torná-lo um candidato a ser considerado para premiações”, começa o texto de Holden. O crítico ainda comenta, lá pelas tantas, sobre a cena e Tara na piscina, afirmando que ela parece pertencer a outro filme – ele comenta isso porque considera que o diretor exprime o tom errado desta história. Gosto quando ele comenta que Sleepwalking, infelizmente, passa por uma metamorfose do “realismo social meticuloso para um thriller de horror”, referindo-se à passagem da cidade onde James, Tara e Joleen moravam para a fazenda de Reedy. Para Holden, a melhor atuação do filme é a de AnnaSophia Robb.
Lendo as notas de produção de Sleepwalking descobri que o roteirista, Zac Stanford, teria se inspirado na própria vida para escrever este que foi seu primeiro roteiro – e que ficou seis anos na gaveta até ser produzido. “Eu conheço esses personagens que cresceram em uma área mais rural”, comentou o roteirista que ainda disse ter pensado na questão da relação de pais e filhos depois que teve uma menina, criança quando ele produziu o texto de Sleepwalking.
A atriz Charlize Theron foi apresentada ao roteiro e se empolgou com ele, ajudando a produzir o filme. Ela gostou, especialmente, da reflexão que Sleepwalking faz sobre a capacidade das pessoas em determinar os seus próprios caminhos. Charlize disse que gostou da idéia de que “não temos que viver na escuridão ou nas sombras, ou ser perseguido de qualquer forma por causa de um legado ou por nossa família. Só porque temos o mesmo sangue fluindo pelas veias não temos que cometer os mesmos erros”. Para a atriz, a sua personagem no filme é o exemplo de uma destas mulheres que não tem vocação para ser mãe. Interessante.
CONCLUSÃO: Um drama familiar que começa promissor, conta com boas atuações – na maioria -, mas que, infelizmente, se perde pelo caminho. Ainda que tenha boas reflexões e alguns momentos bem construídos, Sleepwalking acaba não convencendo ou emocionando como deveria. Falhas do roteiro, que construiu personagens simplórios demais e situações que acabam não tendo a conexão/explicação adequada. Como curiosidade, para assistir a mais um bom desempenho de Charlize Theron, Nick Stahl e, principalmente, o grande trabalho até agora da atriz AnnaSophia Robb, o filme vale a pena. Mas estejam preparados para uma história um bocado sombria – no visual, na estética e nos temas abordados – e que apresenta alguns clichês desnecessários.
2 respostas em “Sleepwalking”
…eu acho que James sabia bem em que terreno estava pisando, mas como ele mesmo comenta, o estado de sonambulismo e semi-desligamento da vida talvez não permitia que nem mesmo ele se conhecesse mais.
Naquela altura, a reviravolta de sua …”vidinha”, o streess da falta de perspectiva, o medo, o notável amor e gratidão que ele já estava sentindo por aquela sobrinha , e as prováveis mágoas do passado sendo reavivadas em forma de violência, talvez tudo isso tenha gerado a faísca da explosão.
concordo plenamente com o desastre em forma de personagem, do Sr. Hopper e a queda significativa de um roteiro que estava indo tão bem, até se mudarem para a fazenda,…mas (no geral..) é um filme bem interessante.
Adorei mais essa dica por aqui.
abração alê
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Oi Mangabeira!!
Olha, acho até que pode ser… que o James estivesse tão “dormindo acordado” que ele se lançou para um lugar perigoso, que lhe trazia tantas recordações ruins, até propositalmente. Na hora do desespero e da falta de perspectivas, realmente as pessoas tentam de tudo. E sim, ele estava em um estado em que poderia se descontrolar com certa facilidade… mas, ainda assim, não sei. Acho que mesmo “anestesiado” por seu sonambolismo ele deveria ter reagido antes à opressão do pai. Sempre fico surpresa quando as pessoas vão segurando a mágoa e a raiva até o ponto de um ato extremo – fico surpresa, mas compreendo.
Também achei o filme interessante, no geral. Só fiquei triste porque achei que ele poderia ter sido tão melhor… mas acabou se perdendo. É aquela velha história de “o que podia ser” versus “o que acabou sendo”. Mas enfim… mesmo com estes “poréns”, acho que é um filme que vale ser visto.
Fico feliz que tenhas curtido a dica. Um abração e inté breve!
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