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Beasts of the Southern Wild – Indomável Sonhadora


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O homem perdeu a intimidade que um dia ele teve com a Natureza. Cada vez mais a correria do dia a dia, as pressões do cotidiano e as preocupações que ocupam tanto do nosso tempo parecem aumentar esta desconexão. Beasts of the Southern Wild trata de uma comunidade e, especialmente, de uma menina, que rompem com esta lógica de concreto, progresso e evolução. Eles são anarquistas, vivem em um lugar considerado condenado, e insistem em um modo de vida há muito tempo desprezado.

A HISTÓRIA: Barulho de vento. Uma luz se acende em uma casa precária montada sobre alicerces altos. Venta forte. Hushpuppy (Quvenzhané Wallis) molha um monte de barro e coloca, sobre aquela espécie de ninho, um passarinho que ela tinha encostado no ouvido. De dia, ela caminha fora da casa e escuta o coração dos bichos. Ela tenta decifrá-los. Enquanto ela escuta um destes corações, vê o pai, Wink (Dwight Henry) jogando uma garrafa de bebida por um buraco na parede. Mais tarde, ele chama ela para comer. Mas eles não comem juntos. Vivem em casas separadas, e tem pouco contato direto. Mais tarde, eles observam uma gigantesca barragem, que separa as pessoas “em segurança” daquele pai, filha, e de toda uma comunidade que vive na “banheira”, uma localidade marginalizada e ameaça de desaparecer quando as grandes inundações começarem.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Beasts of the Southern Wild): Eles vivem de maneira diferente. Não se importam com as regras, com o progresso, com a preocupação dos que estão em local seguro de que boa parte da Terra vai sumir quando as geleiras derreterem. Como em tantas outras histórias, os personagens de Beasts of the Southern Wild são apegados a um determinado pedaço de terra. E resistem para ficar ali.

Este filme do nova-iorquino Benh Zeitlin, com roteiro dele e da autora do livro no qual esta produção foi baseada, Lucy Alibar, que escreveu Juicy and Delicious, aborda de uma maneira diferenciada esta preocupação de um novo “fim do mundo”. Logo de cara, o tema da separação entre o homem e a Natureza está presente. Mas outros assuntos vão surgindo aos poucos. Por exemplo, a relação um tanto estranha de Wink com a filha Hushpuppy. É evidente que ele gosta dela, mas que ele faz um esforço gigantesco para tratá-la com certa “brutalidade”. Como acontece com tantas espécies na Natureza, o que ele está fazendo é preparando a menina para ela ser independente. Para ser atenta aos pequenos sinais, para pensar e agir por conta própria, com bravura. Em resumo, para sobreviver.

Aos poucos vamos descobrindo as razões que movem Wink. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Primeiro, ele sabe que está morrendo. Doente, alivia a dor e um inconfessável medo da morte com a bebida. E tenta esconder da filha o que está acontecendo. Hushpuppy, por sua vez, começa a viver o que muita gente vai experimentar bem mais tarde: o desejo de encontrar as suas próprias origens. Desde o princípio a protagonista demonstra sentir falta da mãe que desapareceu e com a qual ela nunca teve intimidade. Esta busca parece inevitável, e de fato acontece. Nunca saberemos se a mulher que ela encontra era, de fato, sua mãe. Ou a carne de crocodilo foi uma grande coincidência. Mas pouco importa. E esta é uma das várias lições que Hushpuppy vai aprender nesta história.

Porque não interessa onde a mãe dela foi parar. Hushpuppy tem um legado para respeitar. Essa herança que ela recebeu do pai, a quem respeita até o final, mesmo muitas vezes não o compreendendo. Ela sabe qual é o lugar dela, e resiste bravamente em seguir nele. Muito jovem a protagonista desta história desenvolve uma conexão invejável com o restante dos seres vivos do mundo. Ela se sente parte deste conjunto, mesmo se sentindo pequena, compreende também a própria força e grandeza. Porque todos nós somos assim, justamente. Grandes e minúsculos ao mesmo tempo.

Naquela comunidade da Ilha Charles Doucet, conhecida como “a banheira”, as pessoas vivem sob as suas próprias regras, se alimentam do que plantam e dos animais que alimentam. Como diz Hushpuppy logo no início do filme, eles têm mais férias ali do que no resto do mundo. Porque vivem sem agendas, compromissos com horário marcado. E a menina e seu pai, especialmente, vivem de uma forma muito livre, sem muitas regras além de cada um manter a sua independência.

Hushpuppy vai para a escola e aprende com outras crianças alguns ensinamentos de Miss Bathsheba (Gina Montana), como a de que todos nós e os demais animais somos carne, que alimenta a outros animais. Com ela Hushpuppy fica sabendo da história dos bisões, animais gigantescos e que passam a simbolizar a força da Natureza nesta produção – e na cabeça de Hushpuppy. Eles simbolizam a supremacia de animais fortes, que buscam a sobrevivência, e que desapareceram da face da Terra após uma ruptura provocada pela Natureza. Mesmo risco que paira sobre a cabeça do homem.

Aquelas pessoas da “banheira” sabem que há o risco iminente de tudo ser inundado e deles terem que sair dali. Mas eles resistem. E Wink chega a demonstrar até certa arrogância ao dizer, sempre, que tem tudo “sob controle”. Quando sabemos que nós temos, no máximo, controle apenas sobre os nossos atos. De quase todo o resto, não temos controle algum. Talvez, alguma influência. Mas Beasts of the Southern Wild defende esta teoria, de que tudo está conectado e que qualquer falha, por pequena que seja, pode ter repercussões gigantescas em todas as partes.

Estes são os temas fundamentais desta produção. Junto com um outro: a necessidade humana de perdurar, apesar da consciência de sua impermanência. Desde cedo, e Hushpuppy simboliza isto, aprendemos que a morte é algo inevitável. Ainda assim, como ela, queremos deixar uma marca, algum registro de que estivemos aqui. De que fizemos parte de um grupo, de que tivemos relações, aspirações, amores e realizações. Hushpuppy batalha por isso, nem que for desenhando em uma caixa de papelão. Ela tem confiança que, no futuro, as pessoas vão saber sobre a sua existência, e sobre “a banheira”. Todos querem isso, mesmo que nem todo mundo consiga.

Os temas abordados pelo roteiro de Lucy Alibar e Benh Zeitlin são fascinantes. E a forma com que o diretor encontrou de narrar esta história também é interessante. Afinal, ele logo nos situa naquela ambiente e na problemática daquele grupo. Só achei que ele gastou muito tempo, no início, abordando aquela relação estranha entre pai e filha. Até a nossa ficha “começar a cair”, passa um bocado de tempo, e a história deixa o espectador um pouco perdido. Isso conta contra a produção. Mas depois que ela engrena e começa a fazer sentido, cria o impacto necessário.

Gostei da câmara livre do diretor, e da edição precisa de Crockett Doob e Affonso Gonçalves. Esse trio é fundamental para que a produção tenha a dinâmica “naturalista” e ao mesmo tempo fluida, uma proposta ajustada com a história. Gostei muito, também, da trilha sonora de Dan Romer e Benh Zeitlin. Aliás, chama a atenção como o diretor é multifacetado. Uma qualidade interessante e que tem sido cada vez mais rara. E a trilha sonora, nesta produção, acaba sendo fundamental.

Eis um filme independente, de baixo custo, e que trata alguns temas já abordados em outras produções mas, aqui, de forma diferenciada. Das raras produções que começaram a sua carreira premiada no Sundance e que chegam até o contrário do festival criado por Robert Redford, que é o Oscar. Pelo estilo deste filme, chega a ser surpreendente a sua presença no Oscar. Mas ele mereceu. E a chegada dele comprova que Hollywood vive uma nova fase. Está preocupada com outros temas, e não está mais imune à qualidade de produções que não tiveram um grande produtor por trás ou envolvido, pelo menos, na distribuição do filme. Este fenômeno começou há alguns anos, mas perdura este ano com Beasts of the Southern Wild. O filme é o patinho feio deste Oscar. Não deve ganhar nada, mas merece estar lá.

NOTA: 9.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Beasts of the Southern Wild é um filme de pai e filha, basicamente. Quvenzhané Wallis é a estrela inegável desta produção. Ela assusta, em alguns momentos, porque parece um adulto já vivido. Em outros, irrita um pouco – especialmente quando grita. Mas ela é a alma da produção. Junto com ela, está Dwight Henry, que faz um trabalho muito justo, levando em conta a característica de seu personagem. Os demais atores são, todos, sem exceção, coadjuvantes.

Entre os atores com menos importância, vale destacar o trabalho da já citada Gina Montana como Miss Bathsheba, a professora da comunidade; Lowell Landes como Walrus, o velho amigo de Wink, e a pessoa que ele pensa que pode cuidar da filha, quando algo não der certo; Henry D. Coleman como Peter T, que ajuda Wink na operação da barragem; Pamela Harper como Little Joe, a mulher de Wilrus; Levy Easterly como Jean Battiste, que tenta ensinar Hushpuppy a comer um caranguejo; e Jovan Hathaway como a cozinheira que recebe Hushpuppy no restaurante flutuante.

Da parte técnica do filme, vale citar o bom trabalho do diretor de fotografia Ben Richardson e o design de produção de Alex DiGerlando. Eles são responsáveis, junto com Zeitlin, por algumas sequências belíssimas.

Uma curiosidade sobre esta produção: mais de metade do elenco de Beasts of the Southern Wild, incluindo a protagonista, vieram das áreas inundadas de Louisiana. Ou seja, estão acostumados a viver em casas do tipo palafitas, e a comerem peixes, crustáceos e similares.

Beasts of the Southern Wild foi financiado com um orçamento de US$ 1,3 milhão pela organização sem fins lucrativos de Nova York Cinereach. Este foi o primeiro de 13 projetos planejados pela organização.

Depois de realizado, Beasts of the Southern Wild foi vendido para a Fox por US$ 2 milhões.

A mãe de Wallis mentiu sobre a idade da filha. Ela disse que a menina tinha seis anos, a idade solicitada para a audição. Mas, na verdade, ela tinha apenas cinco. Segundo os realizadores, a menina conseguiu superar outras 4 mil crianças que tentaram o papel de protagonista.

Oprah Winfrey apresentou este filme na TV durante uma hora. E disse, na ocasião, que ficou sabendo do filme através do presidente Barack Obama. Isso que eu chamo de uma baita propaganda.

Ao ser indicada ao Oscar de Melhor Atriz deste ano, Quvenzhané Wallis, aos nove anos de idade, tornou-se a mais jovem concorrente a uma estatueta. Antes dela, o recorde era de Keisha Castle-Hughes, que foi indicada quando tinha 13 anos.

Beasts of the Southern Wild teria custado US$ 1,8 milhão. Uma miséria, para os padrões dos filmes dos Estados Unidos. Até o dia 3 de fevereiro, apenas nos Estados Unidos, esta produção tinha arrecadado pouco mais de US$ 11,8 milhões. No restante do mundo, até 26 de janeiro, ele tinha embolsado outros US$ 11,5 milhões. Belo lucro, pois.

Esta produção estreou no Festival de Sundance em janeiro de 2012. De lá para cá, o filme participou de outros 26 festivais. Um número impressionante. Até o momento, ele ganhou 50 prêmios e foi indicado a outros 60, além de quatro Oscar’s. Número fantásticos, especialmente para um filme de baixo orçamento.

Entre os prêmios que Beasts of the Southern Wild recebeu, destaque para o de Filme do Ano no AFI Awards; quatro prêmios dos jurados do Festival de Cannes; Melhor Estreia na Direção e o Top Films no National Board of Review; Melhor Estreia de Diretor no Festival de Estocolmo; e o Grande Prêmo do Júri e Melhor Fotografia no Festival de Sundance.

Beats of the Southern Wild foi totalmente rodado em Louisiana.

Os usuários do site IMDb deram a nota 7,4 para esta produção, e os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 155 textos positivos e 25 negativos para o filme, o que lhe garante uma aprovação de 86% e uma nota média de 8,1.

Beats of the Southern Wild é o primeiro longa da carreira de Zeitlin. Antes deste filme, ele havia dirigido três curtas. O primeiro, em 2005, chamado Egg. Nada mal, para um diretor com tão pouco tempo de carreira, ter sido indicado para um Oscar, não?

CONCLUSÃO: Beasts of the Southern Wild tem um estilo muito diferente de narrar uma história que explora, essencialmente, três aspectos: a anarquia de quem decide viver de forma diferenciada, marginalizada, e em permanente conexão com a Natureza; a busca de uma criança por suas origens; e a necessidade do indivíduo de ser maior que a própria vida. O filme demora para decolar, apesar de ter um roteiro interessante desde o início. O texto da menina é interessante e começa a dar o recado logo no princípio, mas demoramos para perceber que toda aquela falta de afetividade do pai dela é parte fundamental da “alma” desta produção. Ele sabia que não estava bem, há tempos, mas mais que isso, ele acreditava que seria muito mais efetivo ensinando a filha a ser forte do que a ser amorosa. Ela tinha todo o espaço para ser criança, mas não tinha o afeto que consideramos normal. Assim, ela aprendeu, de fato, não apenas a ser forte, mas a se conectar com todos os seres que encontrou pelo caminho. Bela história, contada de uma maneira fora do convencional, e que apenas cansa um pouco porque demora para decolar. Mas esta produção faz muito sentido, e permanece no pensamento e na imaginação um bocado de tempo depois de terminar.

PALPITE PARA O OSCAR 2013: Esta produção conseguiu uma proeza. Com um baixíssimo orçamento, e sem nenhum nome conhecido ou de peso por trás ou na frente das câmeras, ser indicado a quatro Oscar’s, sendo um deles o mais importante da noite.

Beasts of the Southern Wild já ganhou alguns prêmios importantes, como vocês puderam ler acima. Mas sem dúvida ele está ganhando outra projeção ao chegar ao Oscar com indicações como Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Atriz e Melhor Roteiro Adaptado. Querendo ou não, ele foi indicado a quatro dos principais Oscar’s da noite.

E provavelmente deverá contentar-se com isto. Com as indicações. Porque seria uma grande zebra Beasts of the Southern Wild levar qualquer uma destas estatuetas. Para o Oscar principal, ele tem pelo menos quatro ou cinco produções que levam muita vantagem na disputa. Apesar de ser a força motriz desta produção, Quvenzhané Wallis não deve desbancar Jessica Chastain, Jennifer Lawrence ou aquela que provavelmente seria o meu voto, Emmanuelle Riva. Estas são as favoritas, nesta ordem.

A indicação de Benh Zeitlin como Melhor Diretor foi, sem dúvida, uma das grandes surpresas deste ano. Ele desbancou grandes nomes como Tom Hooper, Quentin Tarantino e mesmo Ben Affleck. Essa cadeira roubada é tudo que ele tem, porque certamente ele não vai conseguir tirar a estatueta de Steven Spielberg ou mesmo de David O. Russell ou Michael Haneke. Para mim, Spielberg leva grande vantagem, desta vez.

Finalmente, em Melhor Roteiro Adaptado, não vejo chances deste filme vencer aos favoritos Argo, Lincoln ou mesmo Silver Linings Playbook. Digo pela questão do lobby e, um pouco também, por mérito. Para o meu gosto, sem dúvida Argo é melhor. Mas em segundo lugar, talvez, estaria Beasts of the Southern Wild. De qualquer forma, acho que Zeitlin e equipe devem ficar bem satisfeitos com as indicações. Porque as chances são mínimas para qualquer estatueta.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 20 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing e, atualmente, atuo como professora do curso de Jornalismo da FURB (Universidade Regional de Blumenau).

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