Há vários tipos de filmes de terror. Existe aquele estilo que deixa o espectador em permanente tensão e que provoca sobressaltos pontuais, enquanto outros filmes cozinham a tensão a fogo lento. Há histórias que exploram a violência, os cortes e o sangue, enquanto outros apostam mais no terror psicológico – na sugestão e não na exposição do terrível. We Are What We Are é do estilo fogo lento, que na maior parte do tempo apenas sugere o terror, mas que também escolhe um “grand finale” que parece escolha de gente maluca. E há muitos malucos por aí.
A HISTÓRIA: Teia de aranha, barulho de pássaros, e uma frase de Alyce Parker que diz que aquilo que é feito é feito com amor e que a vontade de Deus deve ser feita. Depois, cenas de um lago e de florestas. Chove. Naquele cenário de interior, uma folha cai de uma árvore e é levada pelas águas. As mesmas que passam sob um rio, por sobre o qual trafega uma caminhonete que vai nos levar até uma casa branca por onde Emma Parker (Kassie Wesley DePaiva) olha da porta para fora. É sexta-feira. E mesmo com muita chuva, Emma dirige até a venda mais próxima. Mas ao sair de lá com compras, ela olha para a foto de uma garota desaparecida e passa mal. Enquanto isso, na casa da família, as irmãs Iris (Ambyr Childers) e Rose (Julia Garner) cuidam do caçula Rory (Jack Gore) após ler o bilhete da mãe que não vai voltar mais para casa.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso só recomendo que continue a ler quem já assistiu a We Are What We Are): Serei honesta com vocês. Este filme me deu preguiça de escrever. Ao ponto de eu ficar alguns dias me enrolando para começar este post e em dúvida em como iniciá-lo. E isso não ocorreu porque o filme é perturbador. Mas porque eu achei ele bem mais fraco do que eu esperava.
Logo no início de We Are What We Are fica claro o desejo do diretor e roteirista Jim Mickle em fazer um filme de terror com uma pegada bem “realista”. Assim, mergulhamos nas paisagens e no “jeito de ser” daquela comunidade do interior dos Estados Unidos para compreender um pouco melhor o que está por vir. Ainda assim, é preciso muita generosidade na imaginação para acreditar na história.
Vendo o cartaz de We Are What We Are e pensando no título do filme, a primeira teoria que formulei é que esta seria a história de uma família com uma história muito pesada. Talvez até de torturas, violência física e mental praticadas por um pai dominante contra as mulheres da família. Logo pensei nas histórias reais que volta e meia aparecem no noticiário e me “preparei” para ver, inclusive, um pai que abusasse sexualmente de seus filhos. Ledo engano.
No caso deste filme, a ficção fica aquém das histórias da vida real. Isso porque tudo se resume a um único mistério. Algo que perdurou por séculos e que, convenhamos, fica difícil de acreditar que nunca tenha sido descoberto. Mas um acerto no roteiro de Mickle com Nick Damici (que também interpreta ao sheriff Meeks), baseados no trabalho original de Jorge Michel Grau, é que ele não demora nada para mostrar a primeira morte. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Emma morre de um jeito estranho, “vomitando” um líquido negro que nos faz pensar se ela pode ter sido envenenada… ou se havia algo sobrenatural naquela morte.
Mas a dúvida dura praticamente nada. Porque logo percebemos que a família Parker costuma manter reféns no porão do celeiro onde apenas o patriarca, Frank (Bill Sage) pode entrar. E daí não demora muito para sabermos que eles são canibais. Pronto, mistério desvendado. E o “risco” que a família corre parece pouco ameaçador, com uma investigação bem capenga feita pelo Dr. Barrow (Michael Parks) e pelo recém formado policial Anders (Wyatt Russell).
O problema é que ainda que o roteiro acerte ao mostrar a primeira morte logo, despertando o interesse do público, We Are What We Are demora para decolar. Ao invés de entrar mais diretamente na tensão da família Parker, a história gasta um tempo precioso focando a “vida comum” daquelas pessoas. Desde o cereal que Rory não pode comer até a relação com a simpática e desimportante vizinha Marge (Kelly McGillis). Para mim, boa parte daquela “ambientação” poderia ter sido economizada para entrarmos com um pouco mais de profundidade na tradição familiar ou nos conflitos dentro da casa dos Parker.
Claro que o “banho maria” serve para alimentar a expectativa para que algo diferente aconteça. E não chega a ser um total sacrifício esperar por isso já que os atores são muito bons. Mas de fato falta ritmo para We Are What We Are. E, como eu disse, também acho que a vida real já nos apresentou casos muito mais tenebrosos que este. No fim das contas, o mais difícil de acreditar não é que os Parker eram canibais. Mas que desde 1782 aquela família preservava o costume de sequestrar e matar pessoas e que eles nunca haviam sido pegos – ou seja, mais ou menos 230 anos de crimes estranhamente “invisíveis”.
E daí vem a minha teoria de que um filme de terror tem que ter uma mínima de lógica para poder convencer. Admito um louco matando um monte de gente por puro prazer, até porque há muitos por aí, mas acreditar que os Parker seguiram com esta tradição por tanto tempo é beeeeem complicado. Sem contar que o filme me deixou com mais dúvidas do que respostas, em alguns momentos. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Por exemplo: os Parker só matavam e comiam as suas vítimas no período de “quaresma” ou faziam isso o tempo inteiro?
Se a resposta é a primeira alternativa, então de fato comer carne humana uma vez por ano poderia provocar aquela “doença de kuru” – também chamada de “doença de Creutzfeldt-Jakob”? E se a resposta é a segunda alternativa, da onde os Parker arranjaram tantas vítimas em mais de 200 anos de canibalismo? Difícil acreditar em uma versão ou em outra. Se bem que faz mais sentido a primeira versão – de que eles eram canibais uma vez por ano. Buscando mais informações sobre a “doença de kuru” encontrei este texto bem elucidativo. Mas daí o que não bate na história é que a doença não se manifesta porque se come carne humana, mas sim porque alguém que tem o tal príon contamina os demais ao ser devorado.
Outro ponto que me pareceu obscuro foi o da morte da filha do casal Kimble (Traci Hovel e Nat DeWolf). Afinal, por que aquela história entrou ali no meio? Apenas como “cortina de fumaça” e para desviar a atenção do espectador? Vejamos. A garota não foi levada como refém por Frank. Mas pode ter sido morta por ele – quando o corpo dela é encontrado no rio não dá para descartar que alguém tenha se desfeito do carro e dela após um crime. Ainda que a cena sugira que ela tenha morrido afogada após cair com o carro ali. Então para que mostrar Frank na estrada caminhando em direção à ela? E se foi ele que matou a garota e depois “desovou” o carro e a vítima no rio, para que ele mataria alguém sem o propósito de “alimentar a família”? O provável é que ele fosse inocente na história – e tenha ajudado a garota na estrada mesmo. Mas achei desnecessário e um elemento a mais para confundir quem assiste.
Descontado estes dois pontos que achei dispensáveis, Mickle faz um trabalho cuidadoso a maior parte do tempo. Ele escolhe algumas cenas bem interessantes e ângulos diferenciados. Tem um estilo de direção que flui na tela, ritmado em muitas ocasiões. Os atores também fazem um bom trabalho, especialmente Bill Sage, que interpreta o sempre ameaçador Frank. As atrizes que fazem as irmãs Iris e Rose também dão conta do recado em papéis complicados. O jovem Jack Gore irrita um pouco com Rory, mas acho que esta era uma das suas funções.
Mesmo com os acertos, incluindo vários quesitos técnicos (dos quais vou falar logo abaixo), senti falta de mais cenas de abuso familiar. Porque, convenhamos, que garotas iriam concordar em seguir uma tradição familiar tão absurda apenas porque o pai dizia que tinha que ser feito e porque era a “vontade de Deus”. Aliás, o que justificaria essa “vontade divina”? Por que apenas os Parker deveriam ter o direito de comer outras pessoas – e não serem devorados? Bastante sem pé e sem cabeça… quase literalmente. 🙂
Daí quando você pensa que aquela história está absurda demais, vem o “grand finale”. hehehehehehe. Admito que achei a cena da “comilança” das meninas muito coerente com o filme. Afinal, se é para apostar no macabro, vamos apostar com todas as fichas, não é mesmo? Sem dúvida aquela sequência é a melhor do filme – para quem gosta do gênero terror, é claro. Admito que, até ali, tinha achado We Are What We Are muito “água com açúcar” na parte do terror. Mas a sequência na mesa, após uma bem difícil de acreditar perseguição de Frank (que poderia ter sido derrubado por qualquer um naquela condição frágil e já doente), serve como uma redenção do filme. Tardia, quase, mas à tempo. Um filme macabro que se justifica no final, mas que deveria ter mais força no resto do tempo.
NOTA: 7,8.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Da parte técnica do filme, gostei muito da direção de fotografia de Ryan Samul, da decoração de set de Daniel R. Kersting e dos figurinos de Liz Vastola. Todos estes elementos ajudam Jim Mickle a contar esta história e ambientar os personagens no contexto correto – eles vivem no melhor estilo de “família recatada e muito devota”. Também funciona a edição de Mickle e a trilha sonora de Phil Mossman, Darren Morris e Jeff Grace.
Além dos atores já citados, vale comentar que a frase que aparece no início do filme é de autoria da personagem Alyce Parker, interpretada por Odeya Rush. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Ela faz parte da reconstituição da “tradição” dos Parker e escreve a “Bíblia” da família – que ensina, entre outros pontos, como esquartejar uma pessoa.
Falando nos atores, sem dúvida os melhores em cena, além das irmãs Parker, são os que interpretam ao pai das meninas e ao médico-detetive. Agora, uma curiosidade sobre o elenco: a atriz que faz a vizinha, Marge, é ninguém mais, ninguém menos que a mesma atriz que estrelou Top Gun ao lado de Tom Cruise. Sim senhores! O tempo passa diferente para as pessoas, sem dúvida – basta olhar para Tom Cruise e outros astros que pouco envelheceram enquanto os seus pares de menos sucesso passaram por outra experiência.
Agora, vamos voltar às confusões que este filme provoca. Afinal de contas, porque vemos ao cartaz de Bridget Rafferty, sabemos da história da jovem Kimble e depois ouvimos o nome de Sra. Stratton (na verdade, Arlete Stratton, interpretada por Annemarie Lawless)? (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Imagino que jogar na tela os nomes de três vítimas diferentes seja a forma de Mickle deixar ainda mais claro que os Parker tem uma verdadeira multidão de vítimas nas “costas”. O incrível mesmo é que nunca a vizinha Marge ou qualquer outra pessoa tenha desconfiado deles, não é mesmo? Se ainda houvessem outros cúmplices… tipo o delegado, ou os próprios vizinhos, eu acharia mais fácil de acreditar.
We Are What We Are me pareceu desleixado em alguns momentos. Por exemplo, na primeira vítima dos Parker, em 1782… aquele cadáver estava beeeem mal feito. Depois, achei bem absurdo que a Sra. Stratton estava acorrentada e amordaçada tendo as mãos livres… quem, ao ser sequestrada e colocada em cativeiro, seguiria amordaçada podendo usar as mãos para tirar o pano da boca? hahahahahahaha. Detalhes que poderiam ter sido melhor cuidados.
Na verdade, acho a minha nota acima até generosa. Levando em conta todos estes pontos falhos do filme. O que acontece é que gostei do final. Ele acabou me deixando de boca aberta e garantindo alguns pontos para o filme.
Não há muitas informações sobre o custo ou a bilheteria que We Are What We Are conquistou em diferentes mercados até agora. O site Box Office Mojo, por exemplo, traz apenas a informação de que este filme estreou nos Estados Unidos no dia 27 de setembro e que teria faturado, até o final de outubro, pouco mais de US$ 81,3 mil. Uma miséria. E para ficar ainda mais claro como esta produção estreou sem força nos EUA, We Are What We Are abriu a temporada por lá em apenas duas salas de cinema.
Este filme estrou no Festival de Sundance em janeiro de 2013. Depois, ele participaria de outros 12 festivais, incluindo o de Cannes. Segundo o site IMDb, apesar desta trajetória considerável, ele não conseguiu nenhum prêmio até o momento.
Falando no IMDb, se eu fosse levar em conta a opinião dos usuários do site, não teria assistido a We Are What We Are. Afinal, eles deram apenas a nota 5,7 para esta produção. Para comparar, o filme original, o mexicano Somos Lo Que Hay, de 2010, dirigido por Jorge Michel Grau, ostenta a nota 5,6 no site. Ou seja, ambos bem abaixo da média que considero ideal – a partir de 6,5, pelo menos. Mas o que me convenceu a assistir a este filme foi a avaliação dos críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes. Eles dedicaram 49 críticas positivas e oito negativas para o filme, o que lhe garante uma aprovação de 86% e uma nota média de 7,1. Muito boa esta nota, levando em conta a tendência do site.
Este é um filme 100% dos Estados Unidos – o que faz a lista de produções que atendem a uma votação aqui no site apenas “engrossar”.
CONCLUSÃO: Honestamente, eu esperava mais de We Are What We Are. Mesmo sem conhecer o filme original, de 2010, esperava por uma produção com rasgos mais doentios, por assim dizer. Ou, pelo menos, com maior tensão. Acho que a história cozinha tão lentamente que chega a dar um pouco de sono… tudo para, claro, chegarmos a um final macabro e extremamente esquisito. O que combina com o filme, é claro. Mas ainda que o desfecho seja coerente, há outras partes que não são, e o sentimento que esperamos de um filme assim na maior parte do tempo não acontece. Ainda assim, esta produção acerta na escolha do elenco e do “clima” da produção. Mas lhe faltam outros predicados para ser mais marcante. É bom, mas há outros do gênero muito melhores.
2 respostas em “We Are What We Are – Somos o que Somos”
Faltou comentar sobre a cena de sexo. Achei um dos pontos fortes do filme. O filme deixou a sensação de que vários traumas da família não foram contados, que ele só tinha a pretensão de mostrar os dias antes da fuga das irmãs.
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A família Parker e descendentes da familia de 1785?
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