O choque de gerações e os problemas nas expectativas que pais tem sobre filhos e vice-versa sempre vão render pano pra manga. Ou, no caso do cinema, ótimos filmes. The Music Never Stopped entra na lista de produções que trata sobre os desentendimentos entre pais e filhos e a chance de redenção que todos nós temos na vida, esta experiência rica e generosa pela qual todos nós passamos. Um filme envolvente e que emociona. Sem grandes nomes na telona, mas com alguns atores que normalmente vemos como coadjuvantes tendo, aqui, a chance de brilhar.
A HISTÓRIA: Aparece o título do filme e quando surge a informação de que ele é baseado em uma história real, ouvimos uma canção. Junto com ela, e cada vez mais alto, o toque de um telefone daqueles antigos. O ano é 1986, e vemos uma casa de classe média, pintada de branco, com uma parede cheia de fotos de família. Sentado ouvindo música e com um cigarro encostado queimando, Henry Sawyer (J.K. Simmons) está imerso em lembranças. A mulher dele, Helen (Cara Seymour) chega em casa e pergunta se ele não está escutando o telefone. Quando ela atende a ligação, fica sabendo que o filho deles, Gabriel (Lou Taylor Pucci) foi encontrado e está no hospital. Depois de passar por uma cirurgia para a retirada de um tumor no cérebro, Gabriel vai precisar de todo o apoio familiar para ter alguma melhora.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a The Music Never Stopped): Resolvi sair um pouco da série de filmes com olhar de avaliação para o Oscar 2014 para falar deste filme que eu vejo há tempos sendo previsto para estrear nos cinemas brasileiros. E acho que esta é a produção que mais vezes eu vi ter a data divulgada e depois alterada. De qualquer forma, tive a oportunidade de assistir a The Music Never Stopped e não desperdicei esta chance. E foi um grande acerto.
Esta produção de 2011 dirigida por Jim Kohlberg é destes filmes dos quais não vamos ouvir falar tão facilmente. Primeiro, porque ele não foi badalado nos principais festivais e nem tem um elenco estelar. Sendo uma produção de orçamento modesto e sem grandes “trunfos”, The Music Never Stopped só pode ser descoberta de duas formas: meio que por acidente ou por indicação de alguém que assistiu e gostou.
Pois bem, se você, como eu, acredita que a vida só tem realmente sentido por causa das relações humanas e da música, então este filme lhe cairá como uma luva. 🙂 The Music Never Stopped me surpreendeu positivamente pela forma interessante com que a história vai sendo apresentada. Não há nenhuma reviravolta no roteiro de Gwyn Lurie e Gary Marks inspirado no ensaio The Last Hippie, publicado no livro An Anthropologist on Mars, de Oliver Sacks. Ainda que a história tenha uma constante volta no tempo, no passado dos Sawyer, não é difícil acompanhar a narrativa que segue, por mais incoerente que o dito anterior possa parecer, uma lógica linear.
Sim, porque até as lembranças dos personagens são vividas no presente. Enquanto eles lembram momentos marcantes embalados por boa música, acompanhamos estas memórias vivenciadas no presente dos personagens. Então, no fim das contas, tudo é presente. E é assim também a nossa vida, não é mesmo?
Nosso momento atual guarda muitas lembranças do passado, que algumas vezes rememoramos sem, contudo, abandonar o tempo atual. Outras vezes nos projetamos no futuro, ao sonhar o que queremos – mas esta projeção não está presente em The Music Never Stopped, que apenas vai e vem entre o presente e o passado.
Além de jogar muito bem com a memória afetiva musical dos personagens, especialmente de pai e filho, The Music Never Stopped é uma apresentação interessante daquela geração que sofreu um choque violento. Afinal, quem não sabe dos desafios vividos pelos pais que viram seus filhos indo para o Vietnã ou se rebelando contra aquela guerra? Claro que esta vivência foi especialmente forte nos Estados Unidos. Mas a verdade é que o choque de gerações, nos anos 1960 e 1970 – e até hoje, mas acredito que em medida diferente -, atingiu praticamente todas as sociedades ocidentais.
Os pais dos “filhos da contracultura” viviam preocupados em prover a família. Para isso, dedicavam grande parte de seu tempo trabalhando. Quando estavam em casa, tinham uma boa relação com os filhos quando eles eram crianças. Mas quando eles cresciam, e começavam a discordar e pensar por sua própria conta, os conflitos e a falta de comunicação prevaleciam. Pois bem, este é o cenário de The Music Never Stopped.
O herdeiro dos Sawyer acaba saindo de casa, após mais uma discussão enfurecida com o pai, e não retorna mais. Isso presumimos logo no início, mas vamos saber os detalhes muito tempo depois. E o restante do roteiro repete a história real que tantos nós conhecemos – seja presenciado os fatos, seja escutando alguém nos falar dos antepassados (nossos ou de amigos).
No início, as perspectivas não são boas para a recuperação de Gabriel. Mas sabemos que este filme não teria sido feito se a história dele não tivesse surpreendido médicos e família. Pois bem, como mandaria o figurino, na fase inicial, após a cirurgia e o estado quase catatônico do filho, Henry reage sem muita convicção de algo poderá mudar. Na verdade, ele tenta seguir a rotina – ir e voltar do trabalho e deixar a “questão do filho” para a esposa cuidar.
Mas daí que Henry é demitido. O que ele faz? Ganha um pirulito quem respondeu que ele fica em casa, meio deprimido. Henry não se mexe porque a esposa continua cumprindo o seu “dever” que é, claro, cuidar de Gabriel. Mas Helen toma uma destas atitudes que fazem as mulheres serem corajosas como são: consegue um emprego e pressiona Henry para que ele se dedique mais a Gabriel. E daí tudo muda.
Com o amor e a dedicação que apenas os pais, mesmo os durões, são capazes, Henry busca informações sobre como o filho pode evoluir e conseguir se recuperar da melhor forma possível. Assim, ele chega até a professora universitária e musicoterapeuta Diane Daley (Julia Ormond), que fazia pesquisas sobre o uso da música para recuperar a memória e trazer para a “realidade” pessoas que tinham passado por algum problema grave na mente.
A partir daí, mergulhamos em muitos estilos de música, do clássico até os sucessos pré e pós os anos 1950. Afinal, Gabriel nasceu em 1951. Foi apresentado a todo tipo de música de sua época e anterior a ele pelo grande apreço que o pai tinha por música. E depois, fez a sua própria história com os clássicos dos anos 1960 e 1970. As histórias dos personagens e suas memórias, que passamos a conhecer com o desenrolar do roteiro, são embaladas por músicas de Bing Crosby, Peggy Lee, Count Basie, The Tulips, The Beatles, The Grateful Dead, Buffalo Springfield, Bob Dylan, The Rolling Stones, entre outros.
Quando Henry faz a pesquisa de artigos na biblioteca da cidade e descobre o nome de Diane Daley, começa o processo de redenção do pai de família que não soube dialogar com o filho em 1968, quando o garoto tinha 17 anos, e que fica 18 anos sem vê-lo. Mas como todo processo de descoberta e autodescoberta, Henry não aceita tudo facilmente. Como a esposa dele, Helen, diz lá pelas tantas, ele é um “cabeça-dura”. E seria muito fantasioso esperar que tudo mudasse automaticamente.
Pouco a pouco Henry investe em Gabriel. E vai se surpreendendo no caminho. E eis uma das lições de The Music Never Stopped: o quanto podemos aprender uns com os outros, independente se somos pais, filhos, marido ou mulher, amigos, inimigos… Basta sair do próprio “habitat”, daquele lugar seguro que se chama “mundo das próprias certezas”, para perceber o quanto podemos aprender com o diferente. E neste processo, conhecer um pouco mais sobre nós mesmos, sobre o que gostamos ou não, sobre o que devemos valorizar ou “deixar para lá”.
Enquanto a música embala a lembrança de pai e filho, Henry tem a oportunidade de saber mais sobre Gabriel. Deixar para o passado a lembrança do menino que acertava as “charadas” quando era levado para a escola, para saber um pouco mais sobre o que pensava e sentia aquele indivíduo que ele ajudou a colocar no mundo. Com a ajuda das músicas, Gabriel volta a ter um pouco de autonomia e a ter a capacidade de vivenciar de forma consciente um pouco do presente. Uma evolução científica para Diane Daley, que acaba sendo fundamental no processo.
(SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Achei especialmente interessante a forma com que Henry assume o caso do filho como uma espécie de “missão”. Pelo menos no início. Além de encontrar a Diane, ele se desfaz de todos os discos, para os quais nutria tanto apreço, para trocá-los por títulos que ele nunca havia ouvido falar e os quais ele presumia que fossem do agrado do filho. Muito interessante este desapego de Henry, que se esforça para compreender Gabriel pela primeira vez na vida – de verdade. No fim, e isso é uma das partes brilhantes desta história, Henry acaba enxergando o mundo sob a ótica do filho – ao qual ele não compreendia até então.
Para Henry e Gabriel, assim como para mim e para qualquer pessoa que veja a música como elemento fundamental da vida, nada melhor do que imergir nas canções que apaixonam a outra pessoa para, também, nos apaixonarmos ainda mais. Tanto pela pessoa pela qual queremos saber mais, quanto pela vida e por nós mesmos. Porque a música permite isso. Conhecermos mais sobre o outro, sobre nós, a respeito do tempo da música e além.
O desfecho, pelo “andar da carruagem” da história, acaba sendo previsível. Ainda assim, nos emociona. E antes dele, me emocionou muito a sequência em que Celia (Mía Maestro) presenteia Gabriel. Cheia de significados aquela cena. Muito bonita, e uma grande sacada a forma singela com que a cena é revelada pelo diretor que faz um grande trabalho ao deixar a história ganhar protagonismo – sem grandes “invenções” no estilo de filmar.
No fim das contas, e The Music Never Stopped deixa isso muito claro, o que importa é o amor que dedicamos uns para os outros. A música, neste processo contínuo de aprendizado que temos na vida, serve como a nossa particular trilha sonora. Por ser tão potente e eficaz em carregar sentimentos e sensações, a música é capaz de verdadeiros milagres. Bom ver a mais uma história que trata disto com simplicidade e boas intenções.
NOTA: 9,7.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: A experiência deste filme foi significante para mim desde os primeiros minutos. Aquele barulho do telefone tocando alto e ninguém atendendo mexeu comigo. Me irritou. E me lembrou do tempo em que eu morava com os meus pais e que não aguentava ficar ouvindo o telefone tocando muito tempo. Por isso mesmo, não importa o que eu estivesse fazendo, normalmente corria para atender logo. Depois, conforme a história ia transcorrendo, várias outras lembranças familiares vieram à tona. Filmes… nada melhor para fazer a gente viajar em uma nova história e nas antigas também.
Os atores que vemos em tela são conhecidos. J.K. Simmons é um veterano do cinema. O ator tem nada menos que 136 trabalhos no currículo, incluindo longas, curtas, séries e filmes feitos para a TV, e até vozes para personagens de jogos de videogame. Para vocês terem uma ideia de como ele trabalha, neste momento há quatro filmes com ele em pós-produção e dois sendo rodados. Claro que ele tem tantos trabalhos no currículo porque, normalmente, faz pontas ou papéis secundários. Curioso que a carreira dele começou em 1986 em um filme para a TV. Ou seja, foram 136 trabalhos em 27 anos – uma média de cinco trabalhos por ano.
Junto com ele, outro rosto conhecido que aparece nos primeiros minutos de filme é o da atriz inglesa Cara Seymour. Diferente de J.K. Simmons, ela não tem tantos trabalhos no currículo. Segundo o site IMDb, ela participou de “apenas” 29 filmes, curtas, séries e filmes feitos para a TV até o momento. Ainda assim, a exemplo do colega de cena, Cara também é mais conhecida pelos papéis secundários. Mas neste filme, ela é a protagonista, junto com Simmons e o talentoso e jovem ator Lou Taylor Pucci. Para mim, aliás, Pucci foi a grande “novidade” de The Music Never Stopped.
Procurando saber um pouco mais sobre Pucci, observei que ele já acumula, em 11 anos de carreira, 30 trabalhos (entre longas, curtas, séries e filmes para a TV) e cinco prêmios como ator. Não lembro de tê-lo visto antes, mas notei que ele estreou com o filme Personal Velocity: Three Portraits, de 2002, e que ficou mais conhecido pelos trabalhos Thumbsucker (de 2005) e The Story of Luke (de 2012). Acho que o rapaz, de 28 anos, merece ser acompanhado. Se ele tiver as chances certas, pode estourar em breve.
Outra figura de destaque neste filme e que, a exemplo de J.K. Simmons e Cara Seymour você já deve ter visto antes, é a sempre encantadora Julia Ormond. Fazia tempo que eu não via um trabalho desta atriz inglesa. Ela está muito bem, ainda que tenha um papel menor em The Music Never Stopped. Além dela, vale citar o trabalho dos coadjuvantes Tammy Blanchard como Tamara; e Scott Adsit como o Dr. Biscow, que cuida de Gabriel.
O ponto forte de The Music Never Stopped, sem dúvida alguma, é o roteiro da dupla Gwyn Lurie e Gary Marks. Eles transportam muito bem para o cinema a história de Gabriel Sawyer. O diretor Jim Kohlberg estreia com esta produção, e faz um bom trabalho na direção, ainda que ele não tenha nenhuma grande “inventividade” – segue a fórmula tradicional, focando na interpretação dos atores e com uma dinâmica tranquila na condução das câmeras. A direção de fotografia remete a um “filme envelhecido” durante todo o tempo, escolha do diretor Stephen Kazmierski.
Da parte técnica do filme, vale destacar ainda o bom trabalho do editor Keith Reamer e a excelente trilha sonora de Paul Cantelon. Sem as músicas que ele escolheu meticulosamente, sem dúvida este filme não teria o encanto e a veracidade que tem. Impecável! Se você quiser saber todas as músicas que fazem parte deste filme, pode consultar esta lista divulgada pelo site IMDb.
Agora, algo que eu achei estranho é que tentei encontrar mais informações sobre a “história real” de Gabriel Sawyer e da pesquisadora Dianne Daley e não tive sucesso. Se alguém souber algo e puder contribuir por aqui, agradeço.
The Music Never Stopped estreou no Festival de Sundance em janeiro de 2011. Depois, em outubro daquele ano, o filme participaria do Festival de Cinema de Hamburgo. E só. Aí acabou a carreira de festivais desta produção. Nesta trajetória, ele foi indicado a apenas um prêmio, o de Melhor Roteiro Adaptado no Chlotrudis Awards. Mas ele acabou perdendo o prêmio para The Descendants, que naquele ano abocanhou uma enxurrada de prêmios – e que tem um comentário sobre ele aqui.
Esta produção teria custado cerca de US$ 4 milhões e faturado pouco mais de US$ 258 mil (sim, mil e não milhões) nas bilheterias dos Estados Unidos. Ajuda a explicar o fracasso o fato de The Music Never Stopped ter chegado a poucos cinemas – 33 foi o recorde. Ainda assim, o desempenho desta produção foi muito ruim. Uma pena.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,4 para The Music Never Stopped. Uma avaliação muito boa, levando em conta o padrão do site. Os críticos que tem o seus textos linkados no Rotten Tomatoes foram bem mais comedidos na avaliação, dedicando 32 textos positivos e 17 negativos para o filme – o que lhe garante uma aprovação de 65% e uma nota média de 6,4.
Esta é uma produção 100% Estados Unidos. Sendo assim, ela se soma à lista de filmes daquele país que eu venho comentando por aqui desde que vocês votaram nos EUA para uma série de críticas do blog.
CONCLUSÃO: Certamente muitos de vocês não vão concordar com a nota que eu dei para esta produção. Mas vocês sabem, tão bem quanto eu, que o cinema é uma experiência muito pessoal. Particular. E eu tenho um fraco determinante – e quem me acompanha aqui no blog já sabe disso – quando vejo filmes que falam sobre o poder da música. E sobre temas envolvendo as famílias também. Pois The Music Never Stopped é um deleite na forma com que torna a música um assunto fundamental da história. E está lá, para nos emocionar, uma profunda busca de redenção de um pai clássico, destes que trabalha a vida inteira para dar conforto para a própria família e que não consegue conhecer ao próprio filho profundamente. Mas sempre é possível recomeçar.
The Music Never Stopped fala disso de forma bacana, leve, e mesmo que o final seja previsível, ele não deixa de emocionar. Para mim, soou como uma produção perfeita. Inicialmente, eu havia dado um 10 para o filme, mas acabei ajustando ao nota ao perceber que lhe falta um pouco mais de ousadia na direção ou mesmo na interpretação dos atores. Tudo está muito bem, mas frente a outros filmes que levaram 10 aqui no blog recentemente, seria injusto dar a mesma avaliação para este filme – ainda que ele tenha falado tão diretamente à minha alma.