Personagens históricos controversos sempre dão pano pra manga. Especialmente quando a história trata de artistas – que sempre terão os seus defensores convictos e seus detratores igualmente “cheios de razão” – e ambos, certamente, corretos. 🙂 Kill Your Darlings se debruça em um episódio importante na vida de autores fundamentais da chamada geração beat. Um crime que iria catapultar os amigos Allen Ginsberg, Lucien Carr, Jack Kerouac e William Burroughs em diferentes direções, rompendo um cotidiano de exageros fundamental para a obra que cada um – exceto Carr – desenvolveria depois.
A HISTÓRIA: Água. Uma música antiga começa a tocar. O corpo de David Kammerer (Michael C. Hall) aparece submerso na água. A ação volta lentamente no tempo, e vemos Kammerer sendo largado na água por um ensanguentado Lucien Carr (Dane DeHaan). Ao fundo, Carr lê o trecho de um escrito de Allen Ginsberg (Daniel Radcliffe) no qual ele fala sobre o poder transformador e destruidor do amor. Corta. Carr aparece lendo o texto, enquanto Ginsberg se aproxima das grades da cela onde o amigo está. Carr diz para Ginsberg que ele não deve mostrar aquele texto para ninguém.
O poeta beat pede para Carr dizer a verdade, mas o amigo contesta que ele não estava no local quando o crime aconteceu. A partir daí, a história volta no tempo e muda de local, mostrando a cidade de Paterson, em New Jersey, no ano de 1943, quando Ginsberg descobre que foi aprovado na Universidade Columbia. É lá que ele irá conhecer Carr e outras pessoas importantes para o surgimento da “geração beat”.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Kill Your Darlings): Admito que fui assistir a este filme desavisada. Não sabia que se tratava da história do encontro das principais figuras da geração beat. Pelo título e pelo pôster da produção, pensei que se tratava de apenas mais uma história de um crime macabro que tivesse acontecido nos Estados Unidos.
Ainda que tenha lido algo feito pelos escritores retratados neste filme, não sou uma profunda conhecedora da obra deles. Acho importante fazer estas duas pequenas observações para contextualizar o leitor sobre a minha postura frente a este filme. Esclarecido estes dois pontos – e acho fundamental especialmente o segundo, por não me colocar nem na seara dos que acham estes nomes brilhantes e nem de quem considera eles dispensáveis -, vamos ao que interessa.
Kill Your Darlings me pareceu um filme feito sob medida para o grupo de pessoas que gosta da geração beat. E que por gostar de Ginsberg, Kerouac e Burroughs, teria um conhecimento prévio sobre a vida deles, a maneria com que eles se encontraram e começaram uma amizade e, claro, sobre o crime praticado por Lucien Carr.
Acredito que para as pessoas deste grupo, este filme parecerá interessante por dramatizar uma visão dos fatos. Sim, porque há um caminhão cheio de controvérsias que cerca o roteiro do escritor Austin Bunn e do diretor John Krokidas. Como o filme segue a linha de pensamento de Ginsberg e a versão dele dos fatos – não por acaso a narrativa inteira está contada sob a ótica deste escritor -, outras visões discordantes ficam de fora da trama.
Como jornalista, sei bem que um fato não tem apenas uma versão. Como ouvi a cantora e compositora Marisa Monte ponderando estes dias em uma entrevista na Globo News, a verdade absoluta é difícil da alcançar. O que costumamos roçar é a verdade diferenciada de cada pessoa. Pois bem, Kill Your Darlings é a verdade de Ginsberg dos fatos.
Sabendo disso, é interessante e bastante corajosa a forma com que ele trata de seu próprio ritual de passagem para a vida adulta. Acompanhamos Ginsberg a partir da saída da casa dos pais – onde tinha uma relação conflituosa com o pai, Louis (David Cross), e de muita atenção e cuidado com a mãe doente, Naomi (Jennifer Jason Leigh) – e até o encontro do jovem com o estimulante ambiente universitário.
Até Ginsberg entrar para a Universidad Columbia, ele era apenas um esboço de escritor. Um jovem talentoso que gostava de ler muito, começava a traçar as primeiras linhas, mas que precisava ser desafiado para romper a casca e sair do ovo. Chegando na universidade, ele fica fascinado com a figura atraente de Carr. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). E esse fascínio, logo vamos saber, não fica apenas no plano intelectual. Muito pelo contrário.
Um ponto que parece ser unânime entre as versões daqueles fatos é que Carr era um jovem bonito, muito bonito, e que transbordava energia e vitalidade, o que acabava atraindo muitas atenções. Estiloso e espirituoso, ele aglutinou as figuras principais da geração beat, aproximando o recém-chegado Ginsberg de Burroughs e, pouco depois, Kerouac dos outros dois.
Outro ponto que todos parecem concordar é que Carr tinha uma relação bastante intensa e conflituosa com David Kammerer. E que a proximidade e a relação de Ginsberg e Kerouac com Carr teria desencadeado ainda mais conflitos do jovem com Kammerer, o que terminaria por provocar uma forte discussão dos dois e a morte de Kammerer.
Fora estes dois pontos explorados pelo roteiro de Bunn e Krokidas, todo o restante é controverso. Como vocês podem ver nesta matéria interessante de Mark Judge e publicada no The Daily Caller, com um depoimento forte de um dos filhos de Carr, Caleb, Kill Your Darlings pode ter distorcido totalmente a realidade para afagar o ego de Ginsberg.
Segundo Caleb Carr, o filme segue a ótica de Ginsberg, um gay assumido e militante, para quem todo homem é homossexual – mas nem todo se liberta das próprias amarras para viver esta realidade -, que via na relação de Carr e Kammerer a de dois amantes com diversos conflitos. Segundo esta visão, Carr tinha vergonha de ser gay e, descontrolado pela insistência de “posse” de Kammerer, quando ele, Carr, tinha interesse de ter uma relação com Kerouac, teria preferido matar o professor que se fazia de zelador para ficar perto do “protegido”. Em diversos momentos do filme uma relação sexual entre Carr e Kerouac é insinuada.
O problema fundamental de Kill Your Darlings, segundo Caleb Carr, é que a relação entre o pai dele e Kammerer seria bem diferente. Caleb defende que Lucien era abusado por Kammerer desde os 12 anos de idade, quando Kammerer – 14 anos mais velho – era instrutor de escoteiros e os dois se conheceram em um grupo destes. Como Lucien foi abandonado pelo pai quando era muito jovem, Kammerer teria assumido a figura paterna para o garoto.
O problema é que Kammerer teria aproveitado a autoridade desta presença paterna para abusar sexualmente e psicologicamente de Lucien. Com a conivência da mãe do rapaz, interpretada no filme por Kyra Sedgwick, Kammerer teria feito marcação cerrada contra Lucien. O acosso incluiu uma viagem ao México e chegou até a Universidade de Columbia. A diferença, segundo Caleb, é que no ambiente universitário Kammerer teria tido a concorrência de outras pessoas, especialmente Kerouac – que teria uma postura bastante viril, máscula, assumindo a figura paterna que antes era desempenhada por Kammerer.
Ainda de acordo com o depoimento do filho de Lucien, Ginsberg nunca teria sido correspondido pelo pai dele, por isso esta versão tão distorcida da realidade. Francamente, não sei de que lado está a verdade. Até porque seria compreensível que Caleb, tentando preservar a memória do pai – explorado no filme como um grande manipulador que não tinha talento para a literatura e que vivia jogando com as pessoas -, negasse que ele fosse gay ou bissexual.
O que me chamou a atenção no material da The Daily Caller é que Caleb não apenas nega a história de Kill Your Darlings, mas se expõe de uma maneira tão corajosa quanto o ator Daniel Radcliffe em algumas cenas deste filme (a melhor parte da produção, para mim, foi a entrega do intérprete). Especialmente importante o momento em que ele fala que uma prova de que o pai era abusado por Kammerer e não era amante dele é que Lucien seguiu o padrão de várias pessoas que são abusadas: descontar o que eles sofreram em outras pessoas, especialmente nos filhos, através da violência ou da indiferença.
Caleb é direto em dizer que sofreu violência física do pai. Ora, se ele queria apenas defender a memória de Lucien, parece difícil que ele faça isso dizendo que o pai não era gay, e sim uma figura violenta. Não faz sentido. Por isso mesmo eu desconfio que a versão de Caleb esteja mais próxima da realidade do que o roteiro de Bunn e Krokidas. E se isso for verdade, Kill Your Darlings pinta um pedófilo, que teria abusado sexualmente de um rapaz a partir dos 12 anos, como um sujeito apaixonado e que não queria deixar o amor de sua vida partir.
Essa indefinição sobre o que de fato é verdadeiro atrapalha bastante esta produção. Especialmente porque ela abraça apenas uma versão dos fatos. Além disso, achei o roteiro muito arrastado. Kill Your Darlings, apesar de recorrer ao desgastado recurso de mostrar o final para depois retomar a história desde um princípio relevante, demora para engrenar. Também me pareceu que Bunn e Krokidas quiseram fazer uma homenagem aos autores da geração beat, cuidando para que o retrato deles não fosse denso ou realista demais.
Duvido muito que Ginsberg, Kerouac e Burroughs não escandalizassem muito mais do que o que é visto nesta produção. Pensando em outros filmes que mostraram gente mergulhando fundo nas drogas, Kill Your Darlings parece uma produção quase pueril. Duvido que as figuras retratadas neste filme não mergulharam muito mais em orgias, drogas e bebida do que o que Bunn r Krokidas querem nos contar. Essa vontade de “embelezar” a visão de todos os envolvidos, menos de Carr, torna a espinha dorsal de Kill Your Darlings muito frágil e sem vigor.
O filme também perde força com algumas caricaturas aqui e ali. Por exemplo, a caracterização da mãe de Ginsberg ou a necessidade de Carr subir na mesa da biblioteca na apresentação do local para os novos alunos. Recursos batidos em outras produções e que parecem descolados da narrativa teoricamente “embebida” na realidade.
As interpretações de Daniel Radcliffe e Dane DeHaan são o que o filme tem de melhor. Os dois mergulham em seus respectivos papéis e convencem em cada fala, mesmo quando elas não são bem escritas. Outros atores mais veteranos e normalmente muito bons em seus papéis, como Michael C. Hall e Ben Foster, não conseguem fazer uma entrega tão boa – talvez porque nem eles acreditaram no texto que tinham que interpretar. Jack Huston está bem como Kerouac. Mas o problema envolvendo estes últimos três atores é que os personagens deles não são bem desenvolvidos pelo roteiro. Não ao ponto de convencer o espectador como é o caso dos personagens de Radcliffe e DeHaan.
Mesmo com tantos problemas, Kill Your Darlings ganha certo interesse por contar como Ginsberg, Kerouac e Burroughs se encontraram. O filme faz um resgate interessante – ainda que previsível – do ambiente vivido nos Estados Unidos em 1944 e 1945, e ganha alguns pontos por adicionar, aqui e ali, algo de poesia e do talento dos autores retratados. O melhor daqueles atores, contudo, seria lançado apenas tempos depois – por isso, para a nossa desgraça, não era possível o roteiro deste filme acrescentar mais de suas obras. A nota abaixo é justificada principalmente pelo ótimo trabalho de Radcliffe e DeHaan. O melhor do filme.
NOTA: 7.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Cada um tem os “ídolos” que lhe interessa. Da minha parte, nunca achei interessante esse tipo de artista que tem que afundar em drogas ou álcool para conseguir escrever. Verdade que “estados alterado da mente” fazem alguns criarem melhor. Mas de fato a arte precisa deste tipo de aditivo? É impossível criar algo sublime se não for através do uso massivo de drogas e/ou álcool? Acredito que muitos artistas geniais de diferentes gerações podem servir de contraponto para esta crença.
Talvez pelo comentado no parágrafo acima é que a geração beat nunca tenha “feito a minha cabeça”. Não ao ponto de eu realmente ir atrás de boa parte da obra de Kerouac, Ginsberg ou Burroughs. Mas é claro que respeito quem tenha feito isso. Certamente se você é uma destas pessoas, vai ter uma leitura diferente de Kill Your Darlings. Comente por aqui o que você achou.
E para quem quer ter uma visão “simplificada” da geração beat, esta matéria ligeira do Mundo Estranho pode ser uma boa palhinha.
Apesar de convencerem menos que Radcliffe e DeHaan, o excelente ator Michael C. Hall e Jack Huston se saem bem em seus respectivos papéis. O que faltou para Huston neste filme, a meu ver, foi um pouco de “postura viril”. O que eu li sobre Kerouac me faz acreditar que ele tinha uma presença mais máscula do que Huston consegue imprimir. Ben Foster é o único que realmente ficou apagado na produção – para quem viu o ator em outros papéis, aqui ele parece “fora do tom”.
Falando nos grandes trunfos deste filme, o trabalho de Radcliffe eu já conhecia, e gosto dele, mas quem me chamou a atenção pela surpresa do desempenho foi Dane DeHaan. Esse jovem ator de 27 anos está filmando Tulip Fever, um filme de época do diretor Justin Chadwick (que fez Mandela: Long Walk to Freedom e The Other Boleyn Girl, comentado aqui no blog, entre outros). Com este filme, são 23 trabalhos como ator – incluindo filmes e séries de TV. Uma produção anterior a Tulip Fever que ele fez foi Life, filme no qual ele interpreta James Dean. Se ele conseguiu fazer uma entrega no estilo de Kill Your Darlings, vamos ouvir falar muito dele ainda, tanto por interpretar James Dean como por outros papéis. Vale ficar de olho.
Além dos atores já citados, vale comentar o bom trabalho de Elizabeth Olsen como Edie Parker, namorada de Kerouac, e John Cullum como o professor Stevens, esforçado em ensinar bons conceitos para figuras “do contra” como Ginsberg. Curioso ver o resgate que o filme faz do ator David Rasche, que interpreta o diretor da Universidade Columbia – ele é uma figura conhecida de quem acompanhou o cinema dos Estados Unidos nos anos 1980.
Da parte técnica do filme, gostei da trilha sonora de Nico Muhly, ainda que ela pareça um pouco carregada em certos momentos; assim como da direção de fotografia de Reed Morano e da edição de Brian A. Kates. Como este é um filme de época, importante o resgate dos anos 1940 feito pelo figurino de Christopher Peterson e, principalmente, pelo design de produção de Stephen H. Carter, pela direção de arte de Alexios Chrysikos e a decoração de set de Sarah E. McMillan.
Kill Your Darlings estreou em janeiro de 2013 no Festival de Sundance. Depois, o filme participaria ainda de outros 18 festivais e semanas de cinema – um número impressionante! Nesta trajetória, o filme conseguiu quatro prêmios e foi indicado a outros seis. Nenhum prêmio de grande relevância.
Esta produção foi filmada totalmente em Nova York – incluindo o campus da Columbia University.
Não há informações sobre o custo de Kill Your Darlings. Há dados apenas sobre a arrecadação do filme nos Estados Unidos: pouco mais de US$ 1,03 milhão. Pouco, muito pouco.
Este é o primeiro longa dirigido por John Krokidas. Sem dúvida ele precisa de mais experiência atrás das câmeras para começar a chamar atenção tanto quanto outros nomes de diretores jovens que estão no mercado e que já apresentaram filmes com um estilo pessoal muito marcante. Krokidas é natural de Massachusetts e tem 40 anos – fará 41 em outubro deste ano. Antes de Kill Your Darlings ele tinha dirigido a dois curtas.
Os usuários do site IMDb deram a nota 6,5 para esta produção, enquanto os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 94 textos positivos e 29 negativos para o filme – o que lhe garante uma aprovação de 76% e uma nota média de 6,6.
CONCLUSÃO: Eis um filme com algumas ousadias interessantes e certos problemas difíceis de superar. O principal mérito está na interpretação dos atores, especialmente no trabalho corajoso de Daniel Radcliffe e na entrega firme do menos conhecido Dane DeHaan. O problema da produção está no roteiro questionável que embala o resgate histórico cheio de controvérsia. Independente do trabalho ser mais ficcional ou realista – o que lembra a própria obra da geração beat -, ele procura lançar uma luz, mesmo que difusa, em uma época fundamental para aqueles ícones da literatura norte-americana e que tiveram uma influência grande em outros movimentos mundo afora. Vale pela curiosidade, ainda que esta obra exija um bocado de paciência do espectador.
Uma resposta em “Kill Your Darlings – Versos de Um Crime”
Gostei das referencias na sua crítica, me levaram a buscar partes da história que eu desconhecia, mas achei engraçado porque tudo o que caleb diz sobre o pai, enquanto eu via o filme, era o que eu apreendia do que estava acontecendo. Nesse ponto discordo um pouco, não acho que o filme esconde isso. Acho que na verdade deixa claro que essa era a visão de Ginsberg, e assim sendo coloca sutilmente a outra versão, apresentando-a à livre interpretação do espectador em vários detalhes ao longo da história, a forma como a mão de david pousava sobre o ombro de Carr por exemplo, amorosa mas ao mesmo tempo dominadora, e a expressão aprisonada e confusa de lucien. Achei isso uma jogada fantástica, e uma critica embutida a essa monopolização da visão do incidente por parte de ginsberg. O que me levou a pensar sobre a questão autoral da geração beat, que é um emaranhado de personagens e histórias que se encontram em todos os autores que participaram deste momento, cada um apresentando a sua versão do que foi vivenciado. Fica pra mim um questionamento sobre a propria produção artística da geração. Plus: “Especialmente quando a história trata de artistas – que sempre terão os seus defensores convictos e seus detratores igualmente “cheios de razão” – e ambos, certamente, corretos. ” Melhor começo! hahaah amei
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