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El Médico Alemán – Wakolda – The German Doctor – O Médico Alemão


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Todos os dias cruzamos com desconhecidos. Pouco a pouco, alguns destes encontros se tornam recorrentes. Mas para uma família com filhos, como garantir que estes desconhecidos não sejam perigosos? Como ter certeza que aquela pessoa para quem estás estendendo uma mão não vai te pedir também o tronco? El Médico Alemán – Wakolda trata de um destes encontros que se aprofunda, e de um perigo constante que parece cercar uma garota de 12 anos e que parece ser mais jovem. Mais uma história interessante apresentada pela diretora Lucía Puenzo.

A HISTÓRIA: Meninas brincam de elástico. Entre elas, está Lilith (Florencia Bado). Um pouco distante, um homem (o talentoso Àlex Brendemühl) observa as meninas com atenção. Não demora muito para Lilith ser chamada pelo irmão, Tomás (Alan Daicz). Em seguida, a menina começa a contar sobre a reação do homem parado sobre ela e a família. Na primeira vez que ele a viu, pensou que Lilith era “um espécime perfeito”, exceto pela altura da menina.

Em seguida, imagens da caderneta do homem, com muitos desenhos perfeitos das pessoas da família de Lilith e outros rascunhos de animais e bebês. A história se passa na Rota do Deserto, que fica na Patagônia, em 1960. O médico alemão está saindo do local quando vê Lilith derrubando uma boneca, que ela chama de Wakolda. A família da menina está saindo para viajar, e o médico alemão pede para segui-los em caravana. Pouco a pouco a relação dele com aquela família vai se aprofundando.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a El Médico Alemán – Wakolda): O nome do protagonista deste filme nunca é falado. Ainda assim, não demora muito para uma pessoa um pouco informada sobre a história pós-Segunda Guerra Mundial matar a charada. Um dos fugitivos mais famosos da caçada para encontrar os nazistas que sobreviveram ao fim da guerra e que migrou entre diversos países da América Latina é o foco desta produção.

Mesmo que ele seja o “perigo constante” da história, El Médico Alemán – Wakolda é narrado sob a ótica de outro personagem: a jovem Lilith. Essa perspectiva infantil justifica a pegada de curiosidade e mistério do filme com direção e roteiro de Lucía Puenzo. Se fosse narrado por um adulto, dificilmente este filme não “mataria a charada” mais cedo. Mas pelo fato da ótica ser de Lilith, a atração da garota pelo médico e o perigo que o olhar dele revela em cada encarada que ele dá na menina ganha relevância.

Foi um acerto Puenzo ter investido nesta ótica. Antes de ficar mais evidente a identidade do médico alemão que insiste em ficar próximo da família de Lilith, a impressão que o espectador pode ter é que aquela figura misteriosa pode ser um tarado sexual. Pelo menos pensei nisso ao observar como ele olhava para Lilith nos primeiros minutos da produção. Nestes detalhes de reproduzir o olhar e o foco da atenção dos personagens que Puenzo ganha pontos.

Mas as anotações no caderno do médico alemão e, principalmente, os vizinhos misteriosos da hospedaria que será resgatada pelo casal Eva (Natalia Oreiro) e Enzo (o ótimo Diego Peretti), com chegada constante de “visitantes” de avião e uma grande estrutura médica, ajudam a matar logo a charada. Mas mesmo sabendo que aquele médico é Mengele, será que ele se aproveitará de Lilith ou mesmo da mãe dela em algum momento?

O olhar de Mengele disseca as pessoas. Mas neste hábito não existe nenhuma conotação sexual. Ainda assim, o perigo é constante. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). O que ele quer fazer, afinal, com aquelas pessoas? A resposta para esta pergunta está bem clara no final da produção. E por mais que fique claro antes o quanto Mengele experimenta com Lilith, o “toque final” dele com os gêmeos é chocante. Especialmente porque ele estava próximo de fugir e, mesmo sabendo que estava sendo perseguido, ele não quis desperdiçar mais aquela oportunidade de experimentar com humanos.

O roteiro escrito pela diretora também explora a conivência que muitas comunidades na América Latina tiveram com os remanescentes do regime nazista que fugiram para estas bandas. Mesmo não defendendo claramente Mengele, Eva não esconde a alegria por encontrar um alemão de respeito – perto do final sabemos que ela desconfia do passado do médico, mas afirma para o marido que não se importa muito com isso.

Além dela, Mengele tinha muitos fãs em solo argentino – e em outros países pelos quais ele passou para sobreviver à perseguição do governo de Israel que tentou, por muitas décadas, encontrar, julgar e eliminar os inimigos dos judeus. Estes fãs faziam tudo que o médico queria, além de protegê-lo e garantir uma fuga segura após a captura de Adolf Eichmann – político alemão, oficial da SS e um dos responsáveis pela logística de envio de vítimas para os campos de extermínio nazistas – em Buenos Aires.

Segundo este texto da Aventuras na História, a Argentina foi o país da América do Sul que mais recebeu criminosos de guerra: cerca de 300 segundo o historiador argentino Jorge Camarasa. No filme de Puenzo fica clara a rede de apoio a estes fugitivos. É sugerida, mas fica menos evidente, a rede de informantes judeus que ajudaram o Mossad, serviço secreto de Israel, a capturar muitos destes criminosos.

Um acerto deste filme é que ele não se desvia do olhar de Lilith em nenhum momento. Ao aproximar tanto o espectador de uma família comum como aquela comandada pelo casal Enzo e Eva, a diretora e roteirista quer defender a ideia que o encontro com um criminoso de guerra poderia ter ocorrido com qualquer um. Apenas judeus interessados em justiça poderiam, a exemplo de Nora Eldoc (Elena Roger), reconhecer Mengele com certa facilidade.

Para os demais, mesmo para uma descendente de alemães com certa “admiração” pelos nazistas, como era o caso de Eva, não ficava tão evidente a desconfiança ou a suspeita que aquele poderia ser um fugitivo de guerra importante. Interessante também o jogo que o roteiro faz entre a interpretação do que é perfeito e da importância de sermos todos diferentes. Enquanto Mengele defende o uso da genética e de outros recursos da Medicina para procurar cada vez mais o humano perfeito, Enzo defende para a filha Lilith a importância de cada um ser único ao ter suas próprias imperfeições e qualidades.

Em determinado momento da história, como tudo levava a crer, estas duas visões se chocam. Enzo pede pela saída de Mengele, mas tem os planos adiados com o nascimento dos gêmeos que Eva esperava. E aí, mesmo na iminência de ser encontrado pelo Mossad, Mengele revela o seu lado mais cruel e obcecado. No final, apenas imaginamos quantas pessoas de países latinos não serviram de experimento para aquele homem.

Todos os atores deste filme fazem um grande trabalho. Mas o destaque fica mesmo com Àlex Brendemühl. Ele transparece em cada minuto do filme frieza, autocontrole extremo, obsessão por medir pessoas e para manipular quem está perto. Na reta final, apresenta também o seu lado perverso ao torturar psicologicamente a Nora Eldoc.

O olhar de Lilith, em uma ótima interpretação de Florencia Bado, é sempre de curiosidade, nunca de julgamento. Puenzo acerta nesta escolha. Afinal, como uma boa contadora de histórias, ela deve apresentar os fatos com sensibilidade e atenção, deixando o julgamento para quem assiste a sua obra.

Durante e após a Segunda Guerra Mundial muitas pessoas, seja na Alemanha, seja no Brasil ou em outros países pelo mundo, foram coniventes com absurdos cometidos contra gente de carne e osso. Esse passado ainda assombra muita gente. E contar estas histórias é fundamental para o resgate da nossa memória.

NOTA: 8,8.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: El Médico Alemán – Wakolda tem muitas qualidades. Começando pela direção segura e bem planejada de Lucía Puenzo e pelo ótimo trabalho do diretor de fotografia e irmão da diretora, Nicolás Puenzo. Aliás, eles fazem parte de uma família de cineastas. Lucía e Nicolás são filhos de Luis Puenzo, diretor de La Historia Oficial, ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1986. E os dois trabalham em uma produtora da família com outros irmãos.

Neste último filme de Lucía, a fotografia é fundamental. A Patagônia, uma das partes mais bonitas da Argentina, acaba sendo também um personagem da história. A diretora sabe explorar muito bem os cenários, mas sem deixar em momento algum de valorizar a interpretação dos atores, mantendo a câmera quase sempre perto do rosto deles para capturar todos os detalhes de suas expressões.

Da parte técnica do filme, além da direção de fotografia, vale destacar a edição segura de Hugo Primero e o ótimo resgate de época do início dos anos 1960 na Argentina feito pela direção de arte de Marcelo Chaves, pela decoração de set de Antonella Pasini e pelos figurinos do trio Nora Lia Alaluf, Beatriz de Benedetto e Pilar Gonzalez. Achei perfeito o trabalho da equipe de som – algo que, muitas vezes, os filmes brasileiros não apresentam – liderada por Andrés Perugini. E para fechar a lista de elogios, muito boa a trilha sonora bem pontual de Andrés Goldstein e Daniel Tarrab.

Importante para este filme Lucía Puenzo ter escolhido um grupo diminuto de personagens. Desta maneira fica mais fácil aprofundar nas características de cada um e na tensão das relações entre alguns deles. María Laura Berch acertou na escolha e no preparo do elenco, especialmente nas figuras de Àlex Brendemühl e Diego Peretti, que interpretam respectivamente ao médico alemão e ao patriarca da família e que acabam sendo os antagonistas da história. Os dois atores dão um show. Florencia Bado e Natalia Oreiro, filha e mãe na história, também fazem um trabalho muito seguro e convincente. E o impressionante é que este é o primeiro filme de Florencia.

Além dos atores já citados, vale comentar o trabalho de alguns coadjuvantes. Se saem bem nesta produção Guillermo Pfening como Klaus, namorado de Nora e que apresenta ela para o médico alemão; e Ana Pauls como a enfermeira que aparece na reta final da produção.

El Médico Alemán – Wakolda estreou no Festival de Cinema Judeu na Austrália no ano passado. Depois, o filme passaria em Cannes e em outros 20 festivais até abril deste ano. Nesta trajetória o filme ganhou 11 prêmios e foi indicado a outros 10. Entre os que recebeu, destaque para o de Melhor Diretora no Festival de Cinema de Havana e para 10 premiações dadas pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas da Argentina, incluindo as de Melhor Filme, Melhor Diretora e Melhor Ator para Àlex Brendemühl.

Interessante que este filme tem dois títulos – além de El Médico Alemán, também Wakolda. Para quem ficou na dúvida sobre o segundo título, Wakolda é o nome que Lilith deu para a sua boneca sem coração e “imperfeita”. Essa boneca não apenas simboliza a própria Lilith, mas todas as crianças e pessoas que deveriam ser adequadas no mundo ou serem eliminadas segundo a filosofia do médico alemão.

Esta produção teria custado US$ 2 milhões e faturado, nos Estados Unidos, pouco mais de US$ 401 mil. No restante dos mercados em que estreou mundo afora, o filme teria conseguido outros US$ 2,6 milhões de bilheteria. Ou seja, pelo menos está se pagando.

Para quem gosta de saber sobre as locações dos filmes, El Médico Alemán – Wakolda realmente foi rodado em Bariloche e em Buenos Aires, ambas na Argentina.

El Médico Alemán – Wakolda foi a indicação da Argentina para o Oscar deste ano. Mas a produção não chegou a lista final de indicados.

Os usuários do site IMDb deram a nota 6,9 para esta produção. Uma boa avaliação, levando em conta a média do site. Os críticos que tem o seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 24 textos positivos e 11 negativos para a produção, o que lhe garante uma aprovação de 69% e uma nota média de 6,7.

A diretora Lucía Puenzo tem 37 anos – fará 38 em novembro – e seis produções no currículo como diretora (sendo três longas e três curtas). A estreia dela no cinema foi com o filme XXY, muito interessante e que tem uma crítica no blog aqui. Vale ser visto, e Lucía, certamente, merece ser acompanhada.

Apesar do nome e da cara de alemão, Àlex Brendemühl é espanhol. Pois sim! O ator nasceu em Barcelona em novembro de 1972 e estreou no cinema com o longa Tot Verí em 1996. Ele foi bem reconhecido por seus papéis nos filmes Las Horas del Día e 53 Días de Invierno. Gostei do estilo dele. Também vale ser acompanhado. O “arqui-inimigo” de Brendemühl em El Médico Alemán – Wakolda, o ator argentino Diego Peretti, tem 51 anos e atuou em 37 projetos – incluindo cinema e TV. Bem conhecido em seu país, Peretti tem como trunfos em seu currículo produções como La Señal e Música en Espera.

El Médico Alemán – Wakolda é uma coprodução da Argentina com a Espanha, a Noruega e a França.

CONCLUSÃO: Pouco sabemos sobre as lideranças do regime nazista que fugiram para a América Latina. Esse não é um tema recorrente no cinema. Procurando preencher um pouco esta lacuna, a diretora argentina Lucía Puenzo nos apresenta esta história cercada de suspense e de uma narrativa constantemente tensa. Desde o princípio o espectador espera pelo pior. Por algum ataque ou violência. Por mais que a charada sobre a identidade do protagonista seja facilmente resolvida e muito antes da reta final desta história, o desfecho da produção consegue impactar. Bem dirigido e com atuações convincentes, El Médico Alemán – Wakolda reafirma a qualidade do cinema argentino. Vale pelo resgate histórico.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 25 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing, professora universitária (cursos de graduação e pós-graduação) e, atualmente, atuo como empreendedora após criar a minha própria empresa na área da comunicação.

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