O Velho Oeste é agora. Ele não terminou com o passar das décadas e com a mudança ocorrida no cenário. Alguns personagens podem ter mudado, com o passar do tempo, mas a mesma “terra sem lei” parece continuar valendo. Alguns tem muito, outros tem pouco e parte desta desigualdade tenta ser resolvida à força, à bala. Hell or High Water é um filme despretensioso que tem muitos argumentos interessantes e surpreendentes. Um dos bons achados da temporada pré-Oscar 2017.
A HISTÓRIA: Uma cidade do interior como outra qualquer do Texas. Um carro desliza devagar pelas ruas enquanto Elsie (Dale Dickey) chega para mais um dia de trabalho. Em um muro está pixado “três missões no Iraque, mas não refinanciam as nossas hipotecas”. O cenário ao redor do Texas Midlands Bank é comum, ordinário.
Depois de terminar mais um cigarro, Elsie vai para a agência, quando é rendida por dois bandidos armados. Ela informa que não tem dinheiro no caixa, apenas no cofre. Os bandidos resolvem esperar o gerente, Sr. Clauson (Wiliam Sterchi). Quando ele chega, logo é agredido. Os criminosos não estão brincando, e esta é apenas uma das agências que eles vão roubar pelo caminho. Perto de se aposentar, o policial Marcus Hamilton (Jeff Bridges) acaba vendo na série de crimes da dupla um motivo para uma última emoção.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Hell or High Water): O começo desta produção é certeiro. Muito bem conduzido, o filme dá o seu recado logo nos primeiros minutos. Instigante, Hell or High Water mostra que nem tudo avançou na sociedade americana como normalmente estamos acostumados a ver nos filmes de Hollywood.
O Velho Oeste segue válido em várias partes da América das oportunidades. Depois da crise do mercado imobiliário e financeiro de 2008, muitas cidades dos Estados Unidos sofreram com o desemprego e com a dívida de boa parte de sua população.
Esta “bancarrota” na vida de muitas pessoas é o pano de fundo fundamental desta história e mostrado muitas vezes em diversas placas de “vende-se” e de ofertas de crédito pelas cidades do interior do Texas onde a história desta produção é ambientada. Este, para mim, é um dos pontos fortes do filme. Enfocar uma realidade pouco mostrada nos filmes americanos – ainda que esta realidade tenha melhorado nos últimos tempos, segue sendo complicada para muita gente.
Uma qualidade e ao mesmo tempo um problema do filme é que ele começa arrasador. Não apenas o roteiro de Taylor Sheridan, mas principalmente a câmera atenta e ágil do diretor David Mackenzie nos apresentam um início bastante dinâmico e potente. Cenas de ação muito bem filmadas e com uma trilha sonora que desde cedo mostra todo o seu potencial.
Depois, o filme passa a ter a narrativa dividida em duas frentes: a dos criminosos que seguem em sua “missão” até atingir o objetivo proposto e a dos “mocinhos” que estão no encalço deles. Mackenzie e equipe escolheram a dedo cada um dos atores e acertaram na mosca. Ben Foster e Chris Pine estão ótimos como os irmãos Tanner e Toby Howard, os homens por trás das máscaras e dos crimes. E Jeff Bridges dá mais um show como o policial Marcus Hamilton, tendo ao seu lado o competente e menos “estrelado” Gil Birmingham como o policial Alberto Parker.
Hell or High Water não tem firulas. Ele não doura a pílula. Muito pelo contrário. O roteiro de Sheridan tenta permanecer embebedado o máximo possível na realidade. É desta forma com que começamos a nos debruçar no dia a dia da dupla de irmãos e de seus perseguidores. Como antes da ação sempre há o tempo de espera, o filme também tem estes hiatos de “calma” e de preparação. Momentos em que o roteiro explora as características de cada um dos personagens.
Na medida em que o filme perde em ritmo, adentramos na relação dos irmãos Tanner e Toby e sabemos um pouco mais sobre as suas motivações. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Tanner passou 10 anos de sua vida preso, enquanto Toby cuidou da mãe deles até que ela morreu. Quando Tanner deixa a prisão, Toby vai procurar o irmão pedindo ajuda. Um dos bancos do Estado – justamente aquele que vira o alvo deles – coloca a mãe dos dois em uma dívida que poderá fazer eles perderem a propriedade que a família penou muito para conseguir.
Além da hipoteca atrasada, a família está com impostos atrasados que foram assumidos pelo banco em vias de vencer. Para evitar que eles percam tudo e pensando em seus próprios filhos, Toby resolve radicalizar. Chama o irmão para ajudá-lo a roubar agências pequenas de cidades do interior do Texas, onde está a propriedade da família. Para “limpar” o dinheiro do crime, eles se utilizam da falta de checagem e de controle de um cassino.
Enquanto eles seguem na levada de cometer crimes, trocar de carros e de locais de hospedagem, Marcus Hamilton e o seu parceiro Alberto Parker procuram seguir os rastros deles. Mais experiente e muito irônico – até que ponto ele usa de ironia ou é preconceituoso? -, Hamilton é o que dá a direção para o trabalho da dupla. Perto do fim, ele conclui certo sobre o próximo local do assalto à banco, mas eles chegam atrasados.
Um ponto fundamental desta produção, sem dúvida, é a forma com que ela mergulha na “América profunda”. O roteiro de Sheridan acerta especialmente ao nos mostrar um “jeito de ser” em que andar armado, usar chapéu de cowboy e falar de forma ríspida é lugar-comum, faz parte da identidade das pessoas. No Texas que vemos no filme o cidadão comum não pensa duas vezes em atirar em criminosos que estão roubando o banco.
Nem por isso os homens que estão no restaurante em que os irmãos param para almoçar não deixam de ver um certo “mérito” no estilo Robin Hood dos bandidos. Afinal, como um dos senhores comentam, são os bancos que estão acabando com as pessoas e deixando todos cada vez mais pobres. Ainda que exista este questionamento na produção, na hora do “vamos ver”, a última cidade roubada reage contra a dupla de assaltantes. Todos saem na caçada deles.
Neste momento, os irmãos se revelam ainda mais diferentes. E a ação volta a dominar a cena. A revelação da “América profunda” e as cenas de ação são pontos fortes de Hell or High Water, é verdade, mas, para mim, o filme só é grande por causa da sequência final.
(SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Achei simplesmente brilhante o desfecho da produção. Um tanto entediado com a aposentadoria e, principalmente, ainda indignado pela morte de seu companheiro, Marcus Hamilton não se conforma que o segundo criminoso não foi preso ou morto – preferencialmente o segundo caso, na visão dele. Porque naquela terra de “bravos”, vale lembrar, a morte é a solução mais adequada para os problemas – nada mais equivocado e, aparentemente, nada mais texano.
Pois bem, incomodado com aquele desfecho que não lhe agrada nem um pouco, Hamilton volta para a delegacia para tentar encontrar algum fio que alguém pode ter deixado solto. E assim que ele vai procurar Toby em seu território. E aí, meus amigos, aquele final ao melhor estilo de “duelo” é incrível. Não é apenas um duelo de palavras, mas de ameaças de morte. Hamilton mata toda a charada, e sem Toby negar, muito pelo contrário, sobre o perfil de cada irmão, o papel de cada um nos crimes e a motivação para eles terem feito o que fizeram.
De fato, o “cérebro” da sequência de crimes foi Toby. Enquanto ele tinha a motivação de garantir o futuro dos filhos, que nunca mais precisariam correr atrás de dinheiro, se eles não quisessem – acabando com uma sequência familiar de “pobreza” -, a motivação de Tanner era a diversão que o crime lhe dava. “Picado” pela adrenalina dos assaltos e das mortes, ele sentia prazer em fazer aquilo – diferente de Toby, aparentemente.
No final, o tiroteio é evitado pela aparição dos filhos de Toby. Mas o suspense e a ameaça da “caça” e do “caçador” ficam no ar, podendo ou não ser resolvida em algum outro momento. Final genial para um filme que tem a coragem de nos mostrar uma América que nem sempre os americanos gostam de revelar. Ou sobre a qual muitos deles não se importam. Pois muitas daquelas pessoas, ao menos daquele perfil de personagens que vemos no filme, elegeram este ano Donald Trump como presidente. Veremos o que ele apresentará para o mundo como resposta.
NOTA: 9,7.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Algumas vezes eu dou uma determinada nota para os filmes e esqueço de comentar um pouco sobre como eu cheguei até ela. Pois bem, vou fazer isso por aqui e também vou atualizar a crítica que publiquei ontem, a de Sully (acessível por aqui), para explicar melhor o meu critério para vocês.
Achei que Hell or High Water é um filme quase irretocável. Com um bom ritmo e boas apostas, esta produção tem a coragem de mostrar um Estados Unidos que nem sempre Hollywood gosta de mostrar. Um país em que as pessoas andam armadas e tem orgulho disso. Em que ninguém se importa muito em chamar a polícia mas, tendo a oportunidade, agem rápido para atirar contra o “bandido”. E detalhe: sem lembrar que o criminoso é uma pessoa como eles, só que geralmente desesperada.
O filme sabe a hora certa de acelerar e de apostar na ação e os momentos de aprofundar nos personagens e nas suas relações. Mas para não dizer que a produção é perfeita, ela me incomodou perto do final. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). O encontro de Hamilton com Toby é incrível, mas a falta de investigação policial que fez com que aquele final fosse possível me parece um bocado forçado e irreal. Difícil acreditar que realmente ninguém foi atrás do irmão do bandido morto. Nesta parte, achei a escolha do roteirista um pouco equivocada. Ao menos ele poderia ter mostrado mais interesse da polícia em Toby. Faria mais sentido.
O elenco de Hell or High Water foi muito bem escolhido. Começando pela coadjuvante Dale Dickey, perfeita como a caixa do primeiro banco que é roubado. Ben Foster, Chris Pine e Jeff Bridges estão perfeitos em seus papéis. Foster tem aquele olhar e trejeito um tanto desequilibrado e pronto para explodir a qualquer momento que caem como uma luva para o personagem de Tanner. Pine equilibra bem o sujeito “do bem” que se coloca em uma situação perigosa porque está farto de seguir o “caminho certo” e não conseguir nada com isso. E Bridges é o sujeito que plasma com o sotaque e cada trejeito o estilo do homem de meia idade que mora naquele local. Estão ótimos, todos.
Além dos três atores que são os nomes fortes do filme, vale comentar o bom trabalho do já citado Gil Birmingham como Alberto Parker; de Dale Dickey em uma super ponta como Elsie; de William Sterchi bem convincente na ponta como Mr. Clauson; do veterano Buck Taylor que aparece de forma genial como o “velho senhor” que está sendo atendido no banco pela caixa Olney Teller (interpretada por Kristin Berg) quando eles são assaltados; Katy Mixon bem como a garçonete Jenny Ann, interessada no bonitão Toby; Keith Meriweather como o caubói que ajuda Hamilton; Joe Berryman como o gerente de banco “boa praça”; Margaret Bowman como a garçonete de idade que mostra que as mulheres também podem ser ríspidas; Marin Ireland como a ex-mulher de Toby, Debbie Howard; John-Paul Howard como o filho mais velho de Toby, Justin; e Christopher W. Garcia em uma pequena ponta como o filho mais novo de Toby, Randy. Não aparece nos créditos, mas a menina que dá em cima de Toby no cassino e que leva um “chega pra lá” forte de Tanner é Melissa-Lou Ellis.
Da parte técnica do filme, sem dúvida alguma merecem destaque o roteiro bem feito e quase perfeito de Taylor Sheridan e a ótima direção de David Mackenzie. O diretor acerta em cada detalhe, dando dinâmica interessante e estilosa nas cenas de ação e valorizando o trabalho dos atores sempre que possível. Destaque também para a direção de fotografia de Giles Nuttgens, para a edição de Jake Roberts e para a envolvente e interessante trilha sonora da dupla Nick Cave e Warren Ellis. Ponto forte do filme, aliás, é a sua trilha sonora.
Ainda merecem ser citados o design de produção de Tom Duffield, a direção de arte ótima de Steve Cooper, a decoração de set de Wilhelm Pfau e os figurinos acertados de Malgosia Turzanska.
Hell or High Water estreou em maio no Festival de Cinema de Cannes. Depois, o filme participou de outros seis festivais de cinema pelo mundo. Em sua trajetória até o momento, o filme ganhou cinco prêmios e foi indicado a outros 24, incluindo três indicações ao Globo de Ouro 2017.
Entre os prêmios que recebeu, destaque para o de Melhor Ator Coadjuvante para Jeff Bridges dado pelo National Board of Review; o de Melhor Elenco pelo Prêmio da Associação de Críticos de Cinema da Área de Washington DC; e o quinto lugar na lista dos 10 Melhores Filmes do Ano pela Associação de Críticos de Cinema Online de Boston. Hell or High Water também foi escolhido como um dos melhores filmes do ano pelo AFI Awards e pelo National Board of Review.
Hell or High Water foi indicado ao Globo de Ouro 2017 nas categorias Melhor Filme – Drama, Melhor Ator Coadjuvante para Jeff Bridges e Melhor Roteiro para Taylor Sheridan. Sem dúvida, são indicações justas.
Esta produção, que teria custado cerca de US$ 12 milhões, faturou pouco mais de US$ 27 milhões apenas nos Estados Unidos. Não é um graaaande sucesso, mas também não é um fracasso. O filme está batalhando para conseguir começar a lucrar.
Hell or High Water foi totalmente rodado no Novo México, nos Estados Unidos. Entre outros lugares, ele teve cenas rodadas nas cidades de Clovis, Portales, Tucumcari, Albuquerque, Estancia, Moriarty e Quay County. O cassino escolhido fica na famosa Rote 66 e faz parte de uma reserva Comanche.
Este é o 15º trabalho do diretor inglês David Mackenzie. Ele começou a carreira na direção em 1994 com o longa Dirty Diamonds. Ele tem na filmografia também curtas e séries de TV. Até o momento, Mackenzie tem 20 prêmios no currículo. Nada mal para um diretor que completou 50 anos em 2016 e tem muito trabalho para apresentar ainda.
A frase “hell or high water” (algo como “que venha o inferno ou a água alta”) normalmente significa “fazer o que precisa ser feito não importando as consequências”. A expressão também tem a ver com a cláusula de alguns contratos, especialmente os de arrendamento, que prevê que os pagamentos devem continuar sendo feitos independente de qualquer dificuldade que o devedor poderá eventualmente passar. As duas leituras tem tudo a ver com o “espírito” deste filme, não?
Hell or High Water é dedicado para David John Mackenzie e para Ursula Sybil Mackenzie, os pais do diretor que morreram enquanto ele estava fazendo o filme.
Uma curiosidade sobre esta produção: apesar da história do filme ser ambientada no Texas, nenhuma cena de Hell or High Water foi rodada por lá. Comancheria, que era o nome original da produção, faz referência à região Oeste do Texas, também conhecida como Novo México, parte do território ocupado pelos Comanches antes dos anos 1860.
Outra curiosidade: o Texas é um dos 10 Estados dos EUA que permitem que menores de idade bebam álcool desde que eles estiverem em casa ou forem supervisionados por um adulto – em uma certa cena Toby oferece uma cerveja para o seu filho mais velho e menor de idade.
O roteirista Taylor Sheridan faz uma ponta no filme como o caubói que está liderando o grupo que tenta levar o gado para longe de um incêndio na mata.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,8 para esta produção. Os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 203 textos positivos e apenas quatro negativos para a produção, o que lhe garante uma aprovação de 98% e uma nota média de 8,5. As duas avalições são muito boas, mas chama a atenção, em especial, a alta aprovação dos críticos no site Rotten Tomatoes.
Esta é uma produção 100% dos Estados Unidos. Por isso o filme entra para a lista de produções que atendem a uma votação feita aqui no blog há algum tempo.
CONCLUSÃO: Um filme potente, que começa forte e que termina de forma brilhante. Entre um ponto e outro, Hell or High Water nem sempre segura a tensão. Mas neste miolo ele acaba se debruçando em outros elementos, como no contexto social e no estilo dos personag
PALPITES PARA O OSCAR 2017: Antes das indicações do Globo de Ouro saírem nesta última semana, Hell or High Water já era apontado em várias bolsas de apostas do Oscar como um dos fortes nomes na disputa por estatuetas na próxima edição da premiação. Ao assistir ao filme, eu entendi o porquê.
Estou de acordo com a maioria dos críticos e especialistas que colocou este filme entre os fortes indicados para a premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Francamente, acho que Hell or High Water tem mais chances para ser indicado como Melhor Filme, Melhor Roteiro Original e Melhor Ator Coadjuvante para Jeff Bridges. Pode emplacar, ainda, Melhor Trilha Sonora e até Melhor Diretor.
Para chegar em todas estas categorias ou na maioria delas, ainda falta ver a outros dos favoritos. Aparentemente Jeff Bridges é um dos favoritos de sua categoria, então dificilmente vai ficar de fora. Como a premiação tem 10 vagas na categoria Melhor Filme, dificilmente ele não chegará lá. As reais chances de levar nas categorias mais “fáceis” para ele, como Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Roteiro Original, só saberemos após assistir aos concorrentes diretos. Veremos.
4 respostas em “Hell or High Water – A Qualquer Custo”
[…] (19/12): Como comentei na crítica de Hell or High Water (que pode ser acessada aqui), nem sempre eu deixo clara as razões que fazem eu dar uma nota e não outra nas minhas críticas. […]
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[…] Zootopia (comentado aqui), Arrival (com crítica neste link); Hell or High Water (com crítica aqui); e Sully (comentado neste link). Falta assistir ainda La La Land, Manchester by the Sea, […]
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[…] Hell or High Water […]
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Crítica muito bem feita! Excelente!
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