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Dogman


Um misto de desejar ser aceito por um grupo e dar satisfação para a filha com viagens divertidas. A junção destes dois desejos nem sempre é fácil de ser alcançada. Ao menos, pelas vias “normais”. Dogman nos conta a história de um sujeito comum, trabalhador, que não encontra no seu trabalho cotidiano os recursos para levar a filha única para viajar como ele desejaria.

Isso acaba fazendo com que ele busque outros meios de conseguir dinheiro, e essa busca o leva para caminhos perigosos – e que acabam indo contra aquele desejo de pertencimento ao grupo de “cidadãos de bem” do qual ele se orgulha de fazer parte. Um filme interessante e que nos faz refletir sobre nossas limitações.

A HISTÓRIA: Um cão acorrentado está bastante raivoso. Ele late e mostra os dentes. Ameaça atacar, mas como está preso, a sua capacidade de concretizar isso é limitada. Enquanto isso, Marcello (Marcello Fonte) tenta dar um banho no cachorro. Primeiro, ele espirra alguns jatos de água. Outros cães, presos, observam. Marcello fala com doçura com o cão bravo, mas ele não gosta muito da ideia de tomar banho.

Marcello tenta uma outra técnica, com um pano improvisado sobre o que parece ser uma vassoura. O cão acaba mordendo o pano. Mas Marcello parece ter conseguido avançar, porque ele acaba usando um jato para secar o cão. Essa é a única parte em que ele gosta da experiência. Essa é a rotina de Marcello, que cuida de cães e tem outros desafios em seu cotidiano.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Dogman): O protagonista desta produção nos faz pensar sobre algumas questões importantes. Quando alguém vem com a ideia equivocada de “bandido bom é bandido morto”, eu me questiono: mas quem é esse bandido que a outra pessoa quer ver morta? Quem garante que na família dela não existam “bandidos” como o que ela parece odiar à priori? Quem garante que essa própria pessoa nunca vai cometer um crime na vida?

Digo isso porque o protagonista de Dogman, Marcello, parece um bom sujeito sob qualquer ótica que alguém possa observá-lo. (SPOILER – não leia se você não assistiu ainda ao filme). Primeiro, ele ama verdadeiramente os animais – especialmente os cachorros. Ele não trata os cães bem apenas porque este é o seu trabalho – prova disso é quando ele invade novamente uma casa para salvar um cãozinho que tinha sido colocado no congelador pelos seus “amigos” bandidos.

Depois, Marcello é um sujeito que trabalha um bocado para pagar as contas e para trazer pequenos momentos de felicidade para a filha, Alida (Alida Baldari Calabria). Além disso, o protagonista de Dogman tem diversos amigos no bairro, encontrando com essa turma com uma certa frequência – seja no jogo de futebol regular, seja almoçando ou frequentando o bar de um deles. Para muitas pessoas, ele é um cidadão exemplar. Simpático, bem visto por todos, amável, Marcello não parece ter defeitos.

Mas não demora muito para percebermos que existe um outro Marcello que não é conhecido pela maioria. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Preocupado em garantir ótimas experiências com a filha, que não mora com ele, Marcello vende drogas para ganhar mais dinheiro. O cliente mais costumeiro dele é o “porra louca” Simoncino (Edoardo Pesce). Grande, forte, metido à valente, Simoncino – conhecido também como Simone – é o terror da vizinhança. Literalmente.

Simone é violento e gosta de ser temido. Viciado em cocaína, com bastante frequência ele sai do prumo e parte para cima de alguém. Ou quebra a máquina do bar, ou rouba o restaurante mais próximo, ou cria alguma confusão qualquer. Não por acaso, os vizinhos de Marcello chegam a conversar sobre pagar alguém para dar um fim em Simone. Mas como nem todos concordam com essa “solução”, a conversa termina em impasse.

Marcello parece ser o único amigo de Simone. Essa proximidade faz com que ele vá se envolvendo cada vez mais nas confusões e até nos crimes do “amigo”. Em uma certa noite, Marcello é intimado por Simone para servir de motorista de fuga de um furto. Depois, vem o grande problema (e dilema) da vida do dono do petshop. Por ser vizinho de parede de um comerciante que compra ouro, Simone o “intima” a ceder a chave do local para que ele roube o joalheiro.

Nessa parte, de forma muito inteligente, o roteiro de Ugo Chiti, Matteo Garrone e Massimo Gaudioso, que contaram com a colaboração de Marco Perfetti, Damiano D’Innocenzo, Fabio D’Innocenzo e Giulio Troli, não mostra tudo o que acontece. Assim, fica a critério do espectador interpretar os fatos.

(SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Da minha parte, acho sim que Marcello deu uma cópia de suas chaves para Simone. Tanto que, depois que ele sai da cadeia, ele cobra do “amigo” os 10 mil euros que ele estaria lhe devendo. Ora, será que se ele fosse inocente no crime, ele teria cobrado esse dinheiro? E como ele cobraria exatamente 10 mil euros se não tivesse combinado isso com Simone antes? Ele até poderia ter lido sobre a quantia roubada e ter pedido metade, mas acho que faz mais sentido ele realmente ter facilitado o furto,  nesse caso.

Pois bem, antes de ceder para Simone, Marcello chega a comentar que ele não daria as chaves porque era amigo de todos da comunidade e que ele era bem quisto por todos, e que isso ele não iria perder. Mas ele cede, ele se deixa levar pela cobiça de ganhar mais dinheiro e isso acaba sendo o início de seu fim. Bandido como ele é, Simone não paga para o “amigo” o que ele pede, e Marcello perde a cabeça e destrói parte da morto de Simone.

Bem, nem preciso dizer que isso acaba virando uma espiral do caos, não é mesmo? Em troca de ter mais dinheiro para, entre outras coisas, pagar por mais viagens dos sonhos para a filha, Marcello abre mão do respeito que ele tinha na comunidade. Muito rapidamente ele passa a ser desprezado e excluído. Ignorado, ele acaba forçando a barra para cima de Simone, para ganhar mais dinheiro.

No final, como um cão que precisa ser aceito pela matilha, Simone leva o seu “troféu” para a comunidade para que, desta forma, ele receba algum sinal de aceitação novamente. Sim, existe um paralelo interessante entre os homens e os cães nesse filme. Somos pessoas gregárias, que gostam – e precisam, geralmente – viver em grupo, em comunidade.

Acreditando que, por não viver com a filha, ele precisava propiciar as melhores experiências para ela, Marcello se deixa levar pela ambição e perde o que lhe dava sustentação. Justamente o sentimento de pertencer a uma matilha. Essa percepção acaba sendo fatal para ele, que acaba caindo em ações intempestivas e para as quais não existe volta atrás.

Um filme envolvente, muito bem narrado e que não deixa ninguém indiferente. Impossível não se interessar pela história de um sujeito comum que acaba fazendo uma série de escolhas equivocadas e, com isso, colocando a própria vida a perder. Com um belo roteiro e uma direção atenta e cuidadosa, Dogman é um filme interessante sobre as escolhas que fazemos e sobre como, dentro destas escolhas, devemos ter a consciência de que não podemos ter tudo.

Sim, o protagonista desta produção tinha coração e bons valores – tanto que não pensou duas vezes em salvar Simone quando ele é atingido por alguns disparos. Mas nem todos são como ele e, certamente, Simone não era. Ainda que nos solidarizamos com os outros e que Marcello quisesse não abandonar Simone, ele deveria ter aprendido que o melhor que podemos fazer, em algumas situações, é nos afastarmos do mal. Ou, ao menos, não sucumbirmos a ele.

Mas, voltando para o início dessa crítica, algo Dogman deixa bem claro: ninguém está realmente livre de cometer erros e de se envolver em situações muito complicadas, mesmo sem realmente desejar isso. Um “cidadão do bem” como Marcello acaba se enrolando tanto em problemas que depois essa espiral acaba o engolindo. Uma pena. Mas também um alerta.

NOTA: 9.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Honestamente, eu estava cansada e com um certo sono quando assisti a Dogman. Mas o filme é tão envolvente, e os personagens tão bem desenvolvidos, que eu venci o sono facilmente. Acho que um dos grandes méritos do filme é realmente ter poucos personagens importantes e focar nestes personagens – especialmente no protagonista – e nas suas relações. Um belo trabalho dos roteiristas e do diretor Matteo Garrone.

Um dos grandes méritos do filme também é o carisma do protagonista, vivido pelo ator Marcello Fonte. Impossível não desenvolver empatia com ele – mesmo quando tememos e/ou discordamos das suas decisões. Fonte faz um trabalho incrível e franco, trazendo muita legitimidade para o seu personagem e nos fazendo mergulhar na sua história.

O grande parceiro de cena dele é Edoardo Pesce, que dá a vida para o valentão Simoncino (chamado pelo apelido de Simone). Pesce também se sai muito bem no seu papel, mas o seu personagem tem menos camadas que o de Marcello. Assim, claro, como era de se esperar, ele brilha menos que o seu companheiro de cena. Mas faz um belo trabalho, muito convincente também.

Gostei da direção de Matteo Garrone, que sabe fazer uma dinâmica interessante entre diferentes elementos que ajudam a contar e a narrar essa história. O jogo que ele faz entre as pessoas, os animais e aquele bairro um tanto marginalizado da Itália é perfeito. Eis uma alquimia interessante e que faz a história ter os temperos que ela nos apresenta. Afinal, pessoas, animais e lugar são elementos importantes para a trama – nada está ali por acaso.

Além do ótimo trabalho de Marcello Fonte e de Edoardo Pesce, vale comentar o bom trabalho de outros atores com papéis menos relevantes. Fazem um belo trabalho, quando aparecem em cena, Nunzia Schiano como a mãe de Simoncino – uma típica e “clássica” mãe italiana; Adamo Dionisi como Franco, o comerciante que é vizinho de Marcello; Francesco Acquaroli como o proprietário do bar e casa de jogos; Gianluca Gobbi como o proprietário do restaurante; e Alida Baldari Calabria como Alida, filha de Marcello.

Outros atores praticamente só fazem aparições no filme. Com papéis bem menores, vale citar Laura Pizzirani como a mãe de Alida; e Aniello Arena como o inspetor da polícia que prende Marcello.

Entre os aspectos técnicos da produção, vale citar o belo trabalho de Nicolai Brüel na direção de fotografia; de Michele Braga na trilha sonora; de Marco Spoletini na edição; de Dimitri Capuani no design de produção; de Massimo Pauletto na direção de arte; de Giovanna Cirianni na decoração de set; e de Massimo Cantini Parrini nos figurinos.

Dogman estreou em maio de 2018 no Festival de Cinema de Cannes. Depois, o filme participaria, ainda, de outros 13 festivais em diversos países. Nessa trajetória, a produção ganhou 12 prêmios e foi indicada a outros 5. Entre os prêmios que recebeu, destaque para os prêmios de Melhor Ator para Marcello Fonte e o Palm Dog para o elenco canino do filme no Festival de Cinema de Cannes; para o prêmio de Melhor Filme Internacional no Festival de Cinema de Jerusalém; e para os prêmios de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator para Marcello Forte e para Edoardo Pesce, Melhor Edição, Melhor Design de Produção, Melhor Diretor de Casting, Melhor Produtor e Melhor Som conferidos pelo Sindicato Nacional Italiano de Jornalistas de Cinema. Ou seja, na Itália, o filme foi um papa-prêmios. Mas achei muito justo o prêmio de Melhor Ator para Forte em Cannes. Realmente ele faz um trabalho especial nesse filme.

Agora, vale citar algumas curiosidades sobre esta produção. O ator Roberto Benigni foi convidado para fazer o papel de Marcello, mas acabou recusando o papel. Gosto do Benigni, mas achei ótimo que o talento de Marcello Forte acabou sendo evidenciado por causa desta recusa. Ele merecia ser “descoberto” por um público mais amplo.

Esse filme é inspirado em uma história real – apesar de não citar isso. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). De acordo com os produtores do filme, Dogman é inspirado em um dos crimes mais infames do pós-guerra na Itália, quando um cuidador de cachorros de 27 anos aprisionou e matou um ex-boxeador que estava fazendo “bullying” contra ele. Talvez a história original não tivesse a complexidade do que vemos em Dogman, por isso eles não citam como baseado em fatos reais.

Dogman é o representante da Itália para a categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira no Oscar 2019. Mas além de ser produzido pela Itália, o filme tem a França como país coprodutor.

Fiquei curiosa por saber mais sobre Marcello Fonte. Ele é um ator italiano com 11 trabalhos no currículo até Dogman – agora, ele está participando das filmagens de outras duas produções. Ele estreou no ano 2000, em uma série de TV, em um papel em que ele não chegou a aparecer nos créditos. O primeiro trabalho dele realmente creditado foi em 2011, no longa Corpo Celeste. Até o momento, Fonte recebeu três prêmios – todos por Dogman. Realmente esse filme o projetou. Bacana.

Matteo Garrone é um belo diretor. Dogman é o 15º trabalho dele como diretor – atualmente ele está em fase de pré-produção de seu décimo-sexto título, Pinocchio. Ele estreou na direção em 1996 com Terra di Mezzo, mas eu o conheci vários anos depois, em 2008, com Gomorra (comentado por aqui). Cheguei a ele, portanto, porque naquele ano Gomorra buscava uma vaga como finalista no Oscar. Ele não chegou lá, mas acabei conferindo o belo trabalho de Garrone por causa disso. Outro filme dirigido por ele, Il Racconto Dei Racconti (ou Tale of Tales), também tem uma crítica aqui no blog. Vale conferir.

Os usuários do site IMDb deram a nota 7,5 para esta produção, enquanto que os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 37 críticas positivas e 11 negativas para o filme – o que lhe garante uma aprovação de 77% e uma nota média de 7,5. Achei curioso como a nota do RT é boa, acima da média do site, mas o nível de aprovação é relativamente baixo. No site Metacritic o filme apresenta um “metascore” de 75 – fruto 10 críticas positivas e de 4 medianas.

CONCLUSÃO: O caminho de fazer sempre o que é certo não é cheio de recompensas. Ele exige trabalho, vigília, atenção aos detalhes e às ações. Mas ele traz ao menos uma grande recompensa: dormir de forma tranquila todas as noites sabendo que você não prejudicou ninguém. Isso era o que o protagonista de Dogman queria, inicialmente, mas ele se deixa leva por sua “cobiça” – não para si, mas para presentear a filha – e acaba trilhando um caminho sem volta. Bem narrado, com uma história interessante e um bom elenco, Dogman é um filme singelo com algumas mensagens interessantes. Não é muito inovador ou arrebatador, mas mantém o público atento e até certo ponto envolvido.

PALPITES PARA O OSCAR 2019: Difícil isso de avaliar filmes e, especialmente, de tentar adivinhar o gosto dos participantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, viu? Especialmente quando a gente tem, pela frente, filmes tão, mas tão diferentes entre si como este Dogman e os recentemente comentados por aqui, Den Skyldige (com crítica neste link) e I Am Not a Witch (comentado por aqui).

Se eu fosse medir o impacto que cada filme teve em mim, eu diria que Den Skyldige sai na frente, seguido de I Am Not a Witch e de Dogman. Para o meu gosto, se eu tivesse que votar em qualquer um dos três, preferiria Den Skyldige e ficaria em dúvida sobre o segundo colocado. Isso porque Dogman me pareceu uma história mais envolvente, com algumas mensagens que me interessam mais, mas sem dúvida alguma I Am Not a Witch é um filme mais artístico e ousado.

Quais deles tem chances de chegar a uma indicação no Oscar? Puxa, difícil dizer. Acho que Den Skyldige e I Am Not a Witch tem uma vantagem maior, já que são filmes mais ousados, cada um a sua maneira. Apesar de interessante, Dogman segue uma fórmula mais tradicional e, sem demérito algum, até mais previsível. Apesar disso, a temática dele me agrada. Então não seria uma surpresa se os três chegassem a uma indicação, ainda que eu acho que Dogman corre por fora.

Agora, quem poderá realmente arrematar a estatueta dourada? Ainda é prematuro apontar algum vencedor. Faltam muitos filmes para ver ainda – inclusive o que muitos apontam como o favorito, Roma. Então vou pedir para vocês esperarem eu ver a mais concorrentes para poder falar sobre isso, beleza? Mas acho que, mesmo que Dogman chegar até os indicados, ele terá poucas chances de vencer.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 20 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing e, atualmente, atuo como professora do curso de Jornalismo da FURB (Universidade Regional de Blumenau).

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