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I Am Not a Witch – Eu Não Sou Uma Bruxa


Acho difícil eu escrever qualquer frase por aqui que vá te preparar para assistir a I Am Not a Witch. Sim, o título é curioso, por si só. Mas o que vemos em cena está fora de qualquer previsibilidade. I Am Not a Witch começa forte, com cenas impressionantes, e depois destrincha relações e formas de exploração que são difíceis de acreditar, mas que até hoje existem. Depois daquele início potente, o filme perde um pouco de força, mas isso não faz com que ele tenha menos impacto.

A HISTÓRIA: Lentamente, um ônibus com alguns turistas vai se aproximando de um local de “exposição”. Nesse local, preparado justamente com turistas, está um grupo de mulheres que já tem uma certa idade. O ônibus para e os turistas saem. Logo eles são informados sobre o custo do “ingresso”, e uma turista reclama do preço. Mas todos pagam. E todos vêem de perto um grupo de “bruxas”. Os turistas perguntam porque elas estão presas com fitas, e o guia explica que é para elas não saírem voando.

Uma menina que faz parte do grupo pergunta se, quando elas voam, elas podem matar uma pessoa. O guia diz que sim, que geralmente elas voam para isso. Com as fitas, contudo, as “bruxas” são inofensivas. Em seguida, aquelas mulheres fazem gestos “ameaçadores”. Corta. Uma mulher tira um balde com água de um poço e caminha com ele sobre a cabeça. Mas ela cai quando se aproxima de uma menina. Logo essa garota será acusada de ser uma bruxa.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a I Am Not a Witch): Que história impressionante, minha gente! Honestamente, não sabia o que esperar de um filme com um título como I Am Not a Witch. Mas, certamente, eu não esperava o que nós vemos em cena com esta produção.

Achei o início de I Am Not a Witch especialmente interessante. Primeiro, aquele “safari” humano que inicia a produção… algo realmente espantoso, mas que serve como um importante cartão de visitas do que veremos depois. Impressionante alguns lugares ainda existirem com a lógica que vemos nesta produção. Em que mulheres são acusadas por desafetos e pela ignorância alheia de serem “bruxas”.

Sim, por um lado temos a crendice e as tradições de um povo que ainda acredita em algo como bruxaria. Se algo “estranho” acontece em uma comunidade – e muitas vezes essa estranheza é apenas o medo das pessoas de algo que elas não conhecem -, é porque existe uma bruxa agindo no local. Mas o pior não é a ignorância, a crendice e as tradições sem fundo lógico destas pessoas simples e sem perspectivas na vida.

O pior mesmo, e muito bem explorado por I Am Not a Witch, é a “indústria” que se cria ao redor desta ignorância. Assim, o “governo”, simbolizado nesse filme pelo Mr. Banda (Henry B.J. Phiri) potencializa e explora aquela cultura que acredita em bruxas. As mulheres, que não passam de escravas, são exploradas em trabalhos forçados e também como atrativo turístico.

Especialmente esta exploração turística é de fazer o queixo cair. Quem é pior, uma figura como Mr. Banda, que explora aquelas mulheres daquela forma, ou os turistas que acham “bonito” fazer fotos com mulheres que não são acorrentadas, mas mantidas presas com “rédeas”? Desta forma, a diretora e roteirista Rungano Nyoni critica toda a exploração de quem tem mais recursos sobre aqueles que não tem nada, seja essa exploração feita por governantes ou por quem vem de fora – os turistas.

Até as “bruxas” que são exploradas por Mr. Banda ficam espantadas quando ele apresenta para a Alteza Real a nova integrante daquela comunidade. Afinal, como eles podem considerar uma bruxa uma criança como Shula? A órfã, que aparece em um vilarejo, não conta com a solidariedade de ninguém. Muito pelo contrário, ela acaba sendo levada para a delegacia e acusada de ser uma bruxa para a policial Josephine (Nellie Munamonga).

A policial escuta a todos da comunidade, inclusive a um bêbado (Leo Chisanga) que depõe contra a menina narrando um sonho que teve e no qual ela era uma bruxa. Pressionada por todos os lados, Shula não nega e nem confirma que é uma bruxa, segundo Josephine. Isso é o suficiente para a policial ligar para Mr. Banda que, claro, não desperdiça a chance de ter mais uma escrava que o ajude a faturar.

Diversas cenas de I Am Not a Witch são impressionantes. Chama muito a atenção, além daquela cena inicial com os turistas e as sequências em que Shula é acusada e transformada em uma “bruxa”, as imagens que mostram como as mulheres são exploradas pelo Sr. Tembo (John Tembo). Aquelas estruturas, que parecem enormes carretéis de linha, das quais saem as faixas em que as mulheres são presas, é algo impressionante. Algumas imagens com aquelas estruturas sobre uma carreta são muito simbólicas e impactantes.

Mas não é só em trabalhos forçados em campos e em pedreiras que as “bruxas” são exploradas. A jovem Shula logo será utilizada para outros trabalhos do “governo”. Ela vai decidir quem é inocente ou culpado em um julgamento e tomar outras decisões com base no “desconhecido”. Também será levada para a frente da TV. Fora estes momentos de exploração, vemos como as “bruxas” são tratadas pelas pessoas comuns. Elas são hostilizadas e temidas. Literalmente, muitas vezes, apedrejadas.

Difícil acreditar que até hoje existam pessoas e lugares que funcionem com essa lógica. Com tanta ignorância, com tanta crueldade. Não sei até que ponto este filme é baseado em histórias que seguem válidas até hoje ou é fruto da criatividade de Rungano Nyoni. Mas o fato é que até hoje existe muita crueldade, ignorância e exploração de humanos feita por humanos mundo afora. Nesse sentido, I Am Not a Witch é de arrepiar, pois nos mostra uma realidade que é difícil de aceitar.

Uma qualidade de I Am Not a Witch é que o filme começa muito bem e sabe explorar o talento da protagonista, a jovem Maggie Mulubwa. Ela é a estrela da produção, não há dúvida. A diretora e roteirista Rungano Nyoni também sabe explorar muito bem o talento de pessoas comuns e valorizar o local em que eles vivem. Estes fatores são importantes para a história porque eles ajudam a dar legitimidade para ela e a nos transportar para aquele ambiente que é tão diferente do que estamos acostumados.

Só achei uma pena que o filme acabe perdendo um pouco a força no meio do caminho. Especialmente quando Shula se aproxima da mulher do Mr. Banda. Apesar de curioso, aquele trecho da narrativa realmente não acrescenta muito valor para a história. Também não gostei muito do desfecho da produção. Pressionada, na reta final, Shula acaba comentando que preferia ter “escolhido” ser uma cabra do que uma bruxa.

Apesar de não fazer chover e de perder o “encanto” para o Mr. Banda, Shula não parecia realmente doente perto do final. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Pouco antes de vermos o corpo dela sendo deixado pelos empregados do Mr. Banda para que ela fosse velada pelas velhas bruxas, vemos como ela acorda durante a noite e recolhe toda a sua rédea. Na cena seguinte, estão levando ela em uma carroça para depositá-la no chão para as outras bruxas. Então o que pode ter acontecido?

A resposta para esta pergunta fica em aberto. Da minha parte, acredito que ela tenha tentado fugir e que tenham matado ela por causa disso. Então ela estava cansada daquilo e queria a sua liberdade, mas isso era algo que não poderia ser aceito pelo “governo” local. Entre continuar sendo escrava e ser explorada até a morte, Shula preferiu tentar ser livre e foi sacrificada como uma anciã havia comentado com ela na véspera do que aconteceu.

Para mim, esta é a resposta para aquele final. É como se a diretora estivesse defendendo a ideia de que é melhor morrer tentando ser livre do que viver sendo o que uma pessoa não é – e, no caso de Shula, fazendo de conta que era uma bruxa.

Outra possibilidade é que ele tenha ficado doente e morrido por causa disso. Mas essa falta de conclusão e de definição, achei um recurso desnecessário. Até parece que I Am Not a Witch precisava terminar logo e que o diretor e roteirista teve que correr para finalizar o seu filme. Acho que ele poderia ter tido um pouco mais de cuidado ao arrematar a história.

NOTA: 8,7.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: I Am Not a Witch tem algumas “brincadeiras” narrativas interessantes. Primeiro, um certo protagonismo da trilha sonora aqui e ali para dar maior dramaticidade para a história. Depois, alguns “congelamentos” de cenas no momento em que Shula é “testada” como uma bruxa com o sacrifício de uma galinha. Esses recursos chamam a atenção, ainda que não seja, exatamente, inovadores. Mas são detalhes interessantes do trabalho da diretora Rungano Nyoni.

O trabalho da diretora Runagno Nyoni é o ponto forte do filme, assim como a interpretação de Maggie Mulubwa e, em segundo lugar, de Henry B.J. Phiri. Nyoni sabe explorar muito bem o talento de diversos atores evidentemente não profissionais nesse filme. Um belo trabalho. O roteiro de Nyoni também é interessante, ainda que ele vá perdendo força durante a produção e não se sustente com a mesma pegada até o final.

Entre os aspectos técnicos desta produção, vale comentar a ótima direção de fotografia de David Gallego; a marcante e bastante pontual trilha sonora de Matthew James Kelly; a edição cuidadosa, detalhista e competente de George Gragg, Yann Dedet e Thibault Hague; o design de produção de Nathan Parker; a direção de arte de Malin Lindholm; a decoração de set de Clementine Miller; os figurinos de Holly Rebecca; e a maquiagem de Charlene Coetzee, Thwaambo Mujanja e Julene Paton.

Do elenco, o grande destaque é a menina que interpreta Shula, sobre isso não há dúvidas. Maggie Mulubwa faz um trabalho excepcional, e em um papel muito difícil. A expressividade da jovem atriz é algo impressionante. Muitas vezes ela impacta o espectador sem falar nada, apenas com as suas expressões e olhar. Além dela, vale destacar o trabalho de Henry B.J. Phiri como Mr. Banda, o homem do governo que explora mulheres e crianças sem nenhum peso na consciência.

Além deles, estão muito bem as atrizes e atores com papéis menores, mas que tem a sua importância na trama, com destaque para John Tembo como Mr. Tembo, o capataz de Mr. Banda, responsável por controlar as “bruxas” mais velhas; e todas as mulheres que vivenciam essas “bruxas”. Vale citá-las: Janet Chaile, Martha Chig’Ambo, Loveness Chilndo, Joyce Chilombo, Nelly Chipembele, Kalenga Chipili, Mrs. Chishimba, Aliness Chisi, Mary Chulufya, Mariam Chansa Kabunada, Chama Kaifa, Grace Kunda, Mary Lungu, Dina Lupiya, Mandalena, Eneless Mbewe, Joyce Mbomena, Gertrude Mulenga, Magdalena Mumba, Ruth Njobru, Josephine Penti, Lexina Phiri, Fides Sinyangwe e Setrida Zulu.

Apesar da direção de fotografia de I Am Not a Witch ser boa, senti que em diversos momentos do filme temos pela frente cenas muito escuras, o que prejudica algumas partes da produção.

I Am Not a Witch estreou em maio de 2017 no Festival de Cinema de Cannes. Depois, o filme participaria, ainda, de outros 39 festivais em diversos países. Números impressionantes. Realmente um filme de festivais. Nessa sua trajetória, o filme ganhou 16 prêmios e foi indicado a outros 26.

Entre os prêmios que recebeu, destaque para o Prêmio BAFTA de “Outstanding Debut by a British Writer, Director or Producer” para Rungano Nyoni e Emily Morgan; para o prêmio de Melhor Filme dado pelo Festival de Cinema de Adelaide; para o prêmio de Melhor Estreia na Direção para Rungano Nyoni no Festival de Cinema de Estocolmo; e para os prêmios de Melhor Diretora para Rungano Nyoni, “Breakthrough Producer” para Emily Morgan e o prêmio Douglas Hickox para Rungano Nyoni no British Independent Film Awards.

Para quem ficou curioso para saber em que local I Am Not a Witch foi filmado, esta produção foi totalmente rodada na Zâmbia.

I Am Not a Witch foi escolhido pelo Reino Unido para representar o país na categoria Melhor Filme em Língua Estrangeira no Oscar 2019.

Os usuários do site IMDb deram a nota 6,8 para esta produção, enquanto que os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 67 críticas positivas e duas negativas para o filme – o que lhe garante uma aprovação de 97% e uma nota média de 7,4. O site Metacritic confere um “metascore” de 80 para o filme, fruto de 17 críticas positivas e de uma mediana.

Como alguns dos prêmios que eu citei acima sugerem, I Am Not a Witch é o primeiro longa-metragem da diretora Rungano Nyoni. Ela começou a carreira como diretora com o curta 20 Questions, em 2009. Depois, ela dirigiu outros quatro curtas e um média-metragem com 1h de duração. Apesar de nunca ter feito um longa antes, a diretora acumula um número importante de prêmios: 47, até o momento. Ou seja, um nome a ser acompanhado. E um pequeno detalhe: Nyoni nasceu na Zâmbia, justamente no local em que o filme é rodado, em Lusaka. Ou seja, ela conhece bem aquela realidade.

Este é um filme coproduzido pelo Reino Unido, pela França, pela Alemanha e pela Zâmbia.

CONCLUSÃO: I Am Not a Witch nos fala de um universo muito diferente do nosso. Em um local em que crenças e tradições são utilizados por autoridades para explorar pessoas. Um filme bem narrado e que impacta desde o primeiro minuto mas que, depois, perde um pouco da sua força. Uma produção que trata sobre a exploração de humanos por outros humanos sem filtros – seja estes humanos cruéis turistas ou governantes. Um soco no estômago que conta com elementos que são importantes para o Oscar. Filme interessante, ainda que tenha lhe faltado uma conclusão um pouco melhor acabada.

PALPITES PARA O OSCAR 2019: Muitos apontam I Am Not a Witch como um dos filmes com boas chances de chegar entre os finalistas na categoria Melhor Filme em Língua Estrangeira no Oscar. Ainda é cedo para saber ao certo se ele chegará lá porque, afinal de contas, este é apenas o segundo filme da lista de 86 produções que estão habilitadas para conseguir uma vaga entre as finalistas.

Acho sim que I Am Not a Witch tem alguns elementos que agradam à Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Além de ter qualidades enquanto obra de cinema, esse filme tem uma criança como protagonista. E isso é sempre um atrativo para Hollywood. Falta ver diversas outras produções, mas inicialmente eu acharia até justo o filme chegar tão longe, a uma indicação, especialmente pelas críticas que ele faz.

Mas ganhar uma estatueta dourada? Bem, para isso, acho que falta a I Am Not a Witch um roteiro um pouco melhor. Nesse sentido, eu ainda prefiro o dinamarquês Den Skyldige, recentemente comentado por aqui. Acho Den Skyldige mais inovador e com um roteiro melhor acabado que I Am Not a Witch. Assim, eu votaria em Den Skyldige para receber a estatueta dourada. Mas não seria uma surpresa o dois chegarem entre os finalistas.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 25 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing, professora universitária (cursos de graduação e pós-graduação) e, atualmente, atuo como empreendedora após criar a minha própria empresa na área da comunicação.

3 respostas em “I Am Not a Witch – Eu Não Sou Uma Bruxa”

[…] PALPITES PARA O OSCAR 2019: Difícil isso de avaliar filmes e, especialmente, de tentar adivinhar o gosto dos participantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, viu? Especialmente quando a gente tem, pela frente, filmes tão, mas tão diferentes entre si como este Dogman e os recentemente comentados por aqui, Den Skyldige (com crítica neste link) e I Am Not a Witch (comentado por aqui). […]

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