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RBG


Certa vez, alguém disse que o Papa era pop. Mas quem diria que uma juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos poderia ser pop? RBG traz essa novidade para quem vive fora dos Estados Unidos – porque quem vive lá, certamente, sabe que a juíza é pop. Através desse documentário, que faz parte da “lista curta” de produções pré-indicadas ao Oscar de Melhor Documentário – saberemos se ele chegará na lista de finalistas na próxima terça-feira -, conheci a história da juíza Ruth Bader Ginsburg. Um documentário muito interessante para quem gosta de Direito, da luta por igualdade de direitos e para quem precisa entender que em diversas partes do mundo dividimos problemas semelhantes – inclusive com tribunais superiores que “sofrem” com distintos vieses políticos.

A HISTÓRIA: Começa com diversas cenas de Washington, capital dos Estados Unidos. Em seguida, diversas pessoas começam a criticar uma mulher, chamando de “bruxa”, de uma pessoa que não tem respeito à Constituição ou aos costumes americanos. Outro afirma que ela é uma “verdadeira desgraça para a Suprema Corte”. São diversos os xingamentos, que incluem “antiamericana” e “zumbi”. Todos endereçados para Ruth Bader Ginsburg. Mas afinal, quem é essa mulher? Após as opiniões mais que críticas à ela, Ruth Bader Ginsburg começa a sua fala citando alguém que ela admira, e que diz: “Não peço nenhum favor ao meu sexo. Tudo o que eu peço aos meus irmãos é que deixem de oprimir-nos”. Essa é a história sobre essa juíza que virou ícone pop nos EUA.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso só recomendo que continue a ler quem já assistiu a RBG): Esse filme, dirigido por Julie Cohen e Betsy West, cai como uma luva para um tempo em que muitos valores voltaram a ser discutidos. No mundo, como bem previu o grande Zygmunt Baumann, vivemos um novo ciclo de “conservadorismo”, das pessoas preferindo abrir mão da liberdade conquistada para voltarem a ter mais “segurança”.

Nesse cenário, em que diversos avanços sociais voltam ao debate e em que, na visão de alguns, estamos tendo alguns retrocessos na defesa dos direitos humanos e da igualdade entre as pessoas, RBG aparece como um filme necessário. Primeiramente, para mostrar para as novas gerações de americanos – em especial, mas não apenas para eles -, quem é esse ícone pop inusitado que virou meme nas redes sociais. Como uma juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos caiu tão bem no gosto popular e “viralizou”?

RBG nos conta essa história. E é uma história importante de ser contada, porque em 2019 não parece que, há algumas décadas atrás, tivéssemos uma compreensão equivocada sobre tantos fatos. Parece incrível, mas há apenas 40 anos milhares de mulheres em diversos lugares do mundo estavam pedindo por mais direitos. As manifestações nas ruas foram importantíssimas, mas pessoas como Ruth Bader Ginsburg foram fundamentais ao levar toda aquela discussão e comoção popular para dentro dos tribunais.

Afinal, não era necessário apenas mudar a compreensão da sociedade sobre o que é termos um coletivo justo e igualitário, para homens e mulheres, mas, sobretudo, mudar o marco legal que permitia que injustiças acontecessem. Nesse sentido, RBG é um filme interessante e fundamental. Pessoalmente, para mim, que sempre amei o Direito e o debate jurídico, o marco legal que acaba guiando as nossas sociedades, esse filme é especialmente interessante.

Não lembro de outro documentário que eu tenha visto e que aborde uma pessoa que ajudou a mudar, pouco a pouco, leis injustas em um país. Então, apenas por isso, essa produção já é diferenciada. Além de apresentar uma história interessante que envolve o Direito, RBG tenta se aprofundar na história de uma mulher incrível, que a sua maneira – bastante discreta, mas firme e obstinada – e com muito trabalho contribui para mudar uma sociedade.

Admiro muito, muito mesmo todas as mulheres da geração de Ruth Bader Ginsburg – ou que vieram um pouco antes ou um pouco depois do que ela – e que, de forma corajosa, ajudaram a mudar a nossa sociedade, empoderando as mulheres e mostrando que o sexo feminino não é “menor”. Acho que o trabalho das diretoras Cohen e West fazem um resgate importante da trajetória de Ginsburg, contando um pouco da sua origem, dos seus estudos e do apoio decisivo que ela recebeu do marido, Martin D. Ginsburg.

Por muito tempo, se disse que “por trás de um grande homem, sempre existe uma grande mulher”. Um grande homem ou uma grande mulher podem “se fazer” sem o apoio de uma outra pessoa – ao menos de um parceiro ou parceira mas, certamente, sempre vão precisar do apoio de outras pessoas. Mas RBG nos mostra que uma grande mulher pode se fazer tendo um grande homem “por trás”. Na verdade, nunca acho que o homem ou a mulher estão um atrás do outro, enquanto visão de um ser mais importante que o outro, mas um casal deve sim se apoiar e, através desse apoio, ajudarem-se mutuamente a fazerem a diferença nas suas respectivas realidades.

RBG é um filme do estilo homenagem. Ou seja, ele não chega a ignorar as críticas que são feitas para a pessoa retratada, mas, certamente, as diretoras focam a sua narrativa e o seu trabalho em construir uma “heroína” chamada Ruth Bader Ginsburg. De fato, ela é uma mulher admirável, por tudo que fez e que continua fazendo. Mas acho que o filme poderia montar um perfil um pouco mais aprofundado sobre ela, seja com entrevistas mais densas com a própria retratada, seja com as pessoas que conviveram com ela.

Por que, por exemplo, não são entrevistadas as pessoas que “combateram” (ou seguem combatendo) Ginsburg? Desta forma, talvez, teríamos um perfil um pouco mais completo. Outro documentário no estilo biografia que está buscando a estatueta dourada do Oscar, Won’t You Be My Neighbor? (com crítica neste link), me parece ter mais sucesso nessa busca por um perfil aprofundado do “homenageado”.

Não apenas nos aprofundamos mais no fenômeno de Fred Rogers, como também conhecemos mais sobre as críticas feitas à ele e sobre a sua filosofia de vida. Temos em RBG, acredito que na parte alta do filme, alguns trechos de argumentações e de defesas de causas feitas por Ginsburg. Mas senti falta de ter mais opiniões dela sobre o seu estilo, sobre os seus valores e, até, sobre a sua vida pessoal. Ginsburg fala de alguns pontos, mas ela fala menos do que seria realmente interessante para um perfil mais completo.

Por tratar sobre a evolução de questões importantes para a sociedade e sobre como guinadas recentes “à direita” podem nos levar a retrocessos; por tratar sobre a busca por mais igualdade na sociedade – entre homens e mulheres, negros e brancos, heterossexuais e homossexuais e um longo etcétera; por resgatar a história de um mulher discreta, inteligente, à frente do seu tempo e que sempre defendeu valores fundamentais; e por nos lembrar que é sempre possível defender o que é certo, mesmo quando a maioria está defendendo o que é errado, RBG vale 1h30 do nosso tempo.

Quem dera que mais pessoas como Ruth Bader Ginsburg “viralizasse”. Quem dera que mais Ginsburg virasse “meme” e se transformasse em ícone pop. Pessoas como ela, que defendem valores importantes, que continuam trabalhando enquanto o corpo lhes permitir, porque acreditam em um ideal, deveriam ser realmente os ícones da nossa sociedade. Isso se quiséssemos avançar, é claro. Mas cada sociedade é fruto do que deseja e do que acredita importante. Infelizmente, em diversas partes do mundo, muitas pessoas estão em fase de idiotização e, neste processo, transformando as nossas sociedades em locais mais duros para se viver.

Diante deste cenário, apesar de RBG não ser tão complexo ou completo quanto poderia ser, ele se torna um filme importante. Espero, honestamente, que mais documentários nos lembrem de causas importantes e de histórias inspiradores. Acredito que todos nós estamos precisando delas. Ah sim, e outro aspecto que achei interessante deste filme: como não é apenas no Brasil em que o Supremo Tribunal Federal se dividi entre juízes mais ou menos conservadores, mais ou menos liberais. Isso acontece nos Estados Unidos e, acredito, em todos os países que funcionam sob esse regime.

Essa é uma outra questão levantada pelo filme que me pareceu muito interessante. Ainda que os juízes devem basear-se na legislação nacional – ou local -, eles são indivíduos, formados por ideias e valores. Como a lei não é formada de letras incontestáveis, os juízes tem a função de interpretar esta lei. Eles devem ser isentos? RBG e a realidade nos mostram que essa isenção não existe.

Eles podem – e devem – tentar ser justos, mas eles sempre terão a interpretação da lei influenciada por suas visões de mundo. E isso acontece com os jornalistas e com qualquer outra profissão, por mais que alguns tentem defender a isenção. Na prática, ela não existe. Isso se aplica também à todo e qualquer texto aqui no blog. Posso tentar ser justa com os filmes mas, no fim das contas, a minha leitura sobre qualquer produção estará influenciada por minha história, por meus valores e crenças. Quem nega isso, essa influência, na sua própria vida e decisões cotidianas, está negando a realidade. E tenho dito! 😉

NOTA: 8,5.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Eu acho impressionante, de verdade, pessoas que passam dos 80 anos de idade e que continuam trabalhando. Eu não tenho metade desta idade ainda e gostaria, honestamente, de levar uma vida mais tranquila, sem tanto trabalho e uma rotina mais de “aposentada” – que, para mim, é sinônimo de você fazer apenas o que você deseja. Então acho impressionante a história de Ruth Bader Ginsburg e de outros que parecem amar tanto o trabalho e/ou a “missão” que eles acreditam que o trabalho tem para eles e seguem atuando no mercado mesmo muito depois do que seria o seu direito de se aposentar. Admirável e surpreendente, ao mesmo tempo.

Para mim, a melhor parte de RBG é quando o filme resgata os casos importante na trajetória de Ginsburg. Como amo o Direito e o que ele prevê, achei o resgate dessas histórias o ponto alto da produção. Assim, RBG parece nos vender a ideia que o que realmente interessa em Ginsburg é o seu trabalho – a sua vida pessoal está em segundo plano. Sim, ainda que ela focou grande parte da vida no trabalho, eu acho que o filme poderia tentar explorar outros aspectos das opiniões, dos valores e dos sentimentos da retratada. Senti falta disso.

As diretoras Julia Cohen e Betsy West utilizam recursos interessantes para contar a história de Ginsburg. Muitos deles, clássicos para documentários, como entrevistas com pessoas que conheceram a retratada e, inclusive, vídeos e depoimentos exclusivos para o filme da própria biografada. Elas também resgatam áudios de audiências e reproduzem reportagens, fotos e vídeos relacionados com a narrativa. Só senti falta delas entrevistarem mais pessoas, inclusive críticos da biografada, assim como aprofundar nas entrevistas com Ginsburg. Se tivessem feito isso, talvez teríamos um perfil mais completo dela.

A pessoa mais interessante que aparece em cena, sem dúvida alguma, é a própria Ginsburg, uma mulher que, após os 80 anos de idade, segue na ativa. RBG resgata a sua trajetória através de fotos e filmagens antigas, assim como pela reprodução de áudios de sessões na Suprema Corte e depoimentos de familiares – dos dois filhos e de uma neta -, amigos antigos e colegas de profissão. Entre outros nomes, temos a aparição de pessoas muito conhecidas, como Bill Clinton, o presidente que a indicou para a majoritariamente masculina Suprema Corte. Bacana, ao resgatar a casos antigos da juíza, quando ela ainda era advogada, foi o fato das diretoras trazerem os “requerentes” à cena novamente. Bacana ouvir as suas histórias de forma direta.

Entre os aspectos técnicos do filme, vale comentar a trilha sonora de Miriam Cutler; a direção de fotografia de Claudia Raschke e a edição de Carla Gutierrez. Repararam em algo? Sim, na predominância de mulheres nessa produção. Achei isso muito interessante. Por que mais produções não buscam ao menos um equilíbrio entre profissionais dos dois sexos? É possível, sem dúvida. Basta o interesse dos envolvidos.

RBG estreou em janeiro de 2018 no Festival de Cinema de Sundance. Depois, o filme participaria, ainda, de 19 festivais de cinema em diversos países. Na sua trajetória, o documentário ganhou nove prêmios e foi indicado a outros 36, inclusive uma indicação ao BAFTA. Entre os prêmios que recebeu, destaque para o prêmio de Melhor Documentário segundo o National Board of Review e para os prêmios de Melhor Documentário Político e Melhor Documentário sobre uma Pessoa Viva dados pelo Critic’s Choice Documentary Awards.

Agora, uma curiosidade sobre esta produção: As diretoras Julie Cohen e Betsy West já tinham trabalhado em alguns projetos que incluíam Ginsburg até que, em 2015, elas decidiram fazer um documentário focado exclusivamente na juíza. Em 2016, as diretoras acompanharam Ginsburg em diversos eventos, reuniões e discursos em que ela participou, incluindo eventos nas cidades de Chicago e Washington. No total, as diretoras tinham 20 horas de filmagens para trabalhar. A entrevista com Ginsburg feita “cara a cara” foi realizada em 2017.

Os usuários do site IMDb deram a nota 7,6 para esta produção, enquanto que os críticos que tem os seus textos linkados no site Rotten Tomatoes dedicaram 145 críticas positivas e oito negativas para RBG – o que lhe garante uma aprovação de 95% e uma nota média de 7,5. O site Metacritic apresenta o “metascore” 71 para esse documentário, fruto de 28 críticas positivas, três medianas e uma negativa.

De acordo com o site Box Office Mojo, RBG faturou US$ 14 milhões nas bilheterias americanas. Para um documentário, esse resultado pode ser considerado excelente. Com certeza, por ser um “ícone pop” nos Estados Unidos, Ginsburg atraiu muitas pessoas para o cinema para conhecer um pouco mais sobre a sua história. Interessante.

Eu não sei se o Supremo Tribunal Federal permite “votos dissidentes” registrados como tal, como RBG mostra que acontece nos Estados Unidos, mas isso seria algo interessante de ser feito por aqui também. Ficar registrado, em algumas decisões, as opiniões contrárias e bem argumentadas de alguns juízes.

RBG é uma produção 100% dos Estados Unidos, por isso o filme vai fazer parte da lista de produções que atendem a uma votação feita há tempos aqui no blog. Mais um para a lista. 😉

CONCLUSÃO: Não importa se a maioria está defendendo algo errado e se o seu voto sempre é vencido. O importante é que você está defendendo o que é certo e deve ter o direito de verbalizar isso. Essa é uma das principais mensagens que RBG passa. Um filme sobre uma personagem muito interessante. Bem conduzida e interessante, essa produção só peca um pouco por investir mais na “curiosidade” sobre a personagem do que no aprofundamento sobre ela. Senti falta de ouvir mais opiniões da magistrada ou mesmo depoimentos de pessoas que esboçassem um retrato mais rico dela. Ainda assim, é um filme interessante pelas mensagens que ele passa. Vale ser visto e compartilhado, especialmente porque a mulher retratada é um grande exemplo, de fato.

PALPITES PARA O OSCAR 2019: Difícil fazer um prognóstico da categoria Melhor Documentário para a premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood deste ano. Especialmente porque tenho muitos títulos para conferir ainda. Ainda assim, considerando que a Academia gosta de ter a sua presença “política” nos Estados Unidos, não seria nenhuma surpresa que um filme como RBG fosse indicado ao prêmio.

Agora, ele tem chance de ganhar? Se a Academia estiver em um ano de crítica maior, digamos assim, ao cenário político americano, certamente. O filme é bom o suficiente para levar um Oscar? Não acho. Acho sim que RBG é um filme importante por resgatar uma história inspiradora e por nos mostrar, em perspectiva, como podemos avançar ou retroceder enquanto sociedade. Mas acho que como produção cinematográfica, RBG poderia ser melhor.

Assisti, como vocês sabem, a apenas dois documentários desta temporada – além de RBG, assisti a Won’t You Be My Neighbor? (comentado por aqui). Francamente, achei o filme sobre Fred Rogers muito mais bem acabado, completo, envolvente e emocionante. Entre os dois, o meu voto iria para Won’t You Be My Neighbor?, sem dúvidas. Mas, claro, eu ainda preciso assistir a outras produções que estão na disputa para realmente poder opinar. Sigamos em frente, portanto! 😉

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 20 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing e, atualmente, atuo como professora do curso de Jornalismo da FURB (Universidade Regional de Blumenau).

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