Afinal, o que é uma família? O que define a figura de pai, mãe e filhos? Essas questões podem parecer óbvias, mas não o são. E o filme Shoplifters nos mostra isso de forma muito contundente e interessante. Mas o filme não para de nos questionar sobre alguns conceitos que temos estabelecidos não apenas na questão familiar. Ele também nos faz pensar sobre quem nos dá bons ou maus exemplos, e sobre o que podemos verdadeiramente ensinar para os outros. Um filme especial, sem dúvidas. Para mim, melhor do que o tão premiado e badalado Roma. #prontofalei
A HISTÓRIA: Em um mercado, primeiro chega Shota Shibata (Jyo Kairi). Em seguida, aparece ao lado dele, Osamu Shibata (Lily Franky). Com uma cesta no braço, ele pega algumas frutas e passa uma para Shota. Os dois começam a caminhar no mercado, e Osamu come a fruta com tranquilidade. Ele pega uma mercadoria, coloca na cesta, cumprimenta Shota e os dois se separam. Eles tem tudo coordenado e programado. Shota faz o seu ritual com os dedos e beija a mão antes de pegar algumas mercadorias e colocar na mochila. Osamu encobre o garoto para que ele pegue mais mercadorias. Logo vamos conhecer mais de perto Shota, Osamu e sua família.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Shoplifters): Esse é um daqueles filmes sobre os quais quanto menos você souber sobre ele, melhor. Shoplifters no surpreende nos momentos certos, e nos faz pensar sobre como as aparências enganam.
Na verdade, esse filme, como comentei antes, nos faz refletir sobre vários conceitos que temos na nossa sociedade atualmente. Para começar, nos faz pensar sobre o conceito de família. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Quem pode ser considerado um pai e uma mãe? Aqueles que geraram uma criança e a colocaram no mundo ou aqueles que são capazes de amar e de cuidar dela?
Os pais de Yuri maltratam a garota e afirmam que não gostariam de tê-la gerado. Por outro lado, Osamu e Nobuyo Shibata (Sakura Andô) sequestram a menina e passam a cuidar dela, juntamente com a “avó” Hatsue Shibata (Kirin Kiki) e com Aki Shibata (Mayu Matsuoka). Inicialmente, o ótimo roteiro do diretor Hirokazu Koreeda nos faz acreditar que Yuri foi “adotada” por uma família simples e que vive da pensão de Hatsue e do salário de Nobuyo e de Osamu.
Aparentemente, como eles recebem pouco, a família “se vira” praticando pequenos furtos no mercado. Ao menos é isso que acreditamos, inicialmente. Também parece que Osamu ensinou o filho Shota a furtar para que ele tenha um “papel” na sobrevivência da família. Mas a história não é bem essa. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Na verdade, Shota não é filho de Osamu e de Nobuyo. Ele é um garoto que também foi “pego” por Osamu e que passou a ser usado por ele para conseguir realizar os pequenos furtos.
O menino não consegue chamar Osamu de pai. Aparentemente, ele está aceitando ficar com aquela família, mas não parece exatamente confortável com eles. Mas isso começa a mudar com a chegada de Yuri e a convivência entre as duas crianças. Inicialmente, parece normal para Shota que Yuri também seja ensinada por Osamu a furtar. Mas, pouco a pouco, o garoto percebe que isso não é certo. E ele não quer que a menina seja levada a fazer o que é errado.
Essa questão levanta um ponto muito interessante nessa história. Afinal, quando uma criança perde a sua “inocência? Quando ela percebe que o que está fazendo é errado por que um adulto lhe ensinou assim? Quando ela descobre que os adultos mentem e que eles podem prejudicar a ela ou a outras pessoas? Quando uma criança aprende que deve começar a se proteger?
A atitude de Shota mostra que as crianças são sensíveis e que, quando tem a idade certa, elas próprias começam a tomar as suas decisões. Mesmo que sejam ensinadas a fazer o que é errado, elas podem, através da observação e dos comentários de outras pessoas, perceberem o que é certo e o que não é. Ainda assim, e isso é um dos pontos mais interessantes de Shoplifters, Osamu e Nobuyo não são apenas “vilões” da história.
Não tenho dúvidas que eles gostavam das crianças. Que eles queriam proteger, cuidar e amar, do jeito deles, Shota e Yuri. Eles formavam, de seu jeito “torto”, uma família junto com a avó Hatsue e com a neta dela, Aki. A questão é que Osamu e Nobuyo, por tudo que eles tinham vivido, já tinham perdido um pouco a noção dos limites e do que poderia ser razoável. Além disso, temos a própria limitação da vida deles.
No final do filme, quando perguntam porque Osamu ensinava Shota e Yuri a furtar, ele comenta que gostaria de ensinar-lhes algo, e que isso era tudo que ele poderia repassar para eles. Na verdade, só entregamos para os outros aquilos que podemos. Se temos uma boa educação, se tivemos acesso ao ensino, à cultura e a diferentes formas de aprendizado, temos repertório suficiente para passar isso adiante. Se não tivemos nada disso, fica difícil passarmos para a frente bons ensinamentos, cultura e tudo o mais, certo?
Com isso eu não quero dizer que tudo pode ser justificado. Não, é claro que não. Apenas comento isso porque mesmo os “brutos” e as pessoas que não tiveram as melhores condições podem também ser amáveis, amorosas e se preocuparem com os outros. Podem cuidar melhor de uma criança do que alguém que tem mais “condições”. O que diferencia uns e outros é a capacidade que cada um tem de se doar e de amar.
Então que realidade seria melhor para Shota e Yuri? Eles viverem em uma família que tinha que os manter escondidos, sem irem para a escola e sem que eles pudessem falar a verdade, ou sendo enviados para as suas famílias “verdadeiras” ou para um abrigo? Difícil dizer. As duas realidades pareciam igualmente complicadas. Claro que as crianças devem ter o direito de se sentirem seguras, amadas e de irem para a escola, estudar e se desenvolver. Mas nem sempre é isso que elas encontram em suas famílias de origem.
Algo que eu achei incrível, no trabalho de Koreeda, é como ele constrói essa história. Temos uma visão da família que mora com Hatsue até que um furto de Shota e Yuri dá errado. A partir daquele momento, a partir da cena forte e impressionante do garoto se jogando de um elevado para impedir que Yuri fosse pega, tudo muda.
Descobrimos que, de fato, Osamu e Nobuyo era um casal do crime. Eles tinham matado uma pessoa e tinham se “refugiado” na casa da viúva Hatsue, que resolveu adotar Nobuyo como uma filha. Aki era, de fato, neta de Hatsue. Mas ela não sonhava que a avó estava “tirando” dinheiro dos pais dela.
Inicialmente, Nobuyo resiste em ficar com Yuri. Mas quando ela percebe que a menina era rejeitada e que era agredida pelos pais, ela vê nela a sua própria história. Nobuyo também foi bastante maltratada, até que encontrou em Osamu alguém que lhe ajudasse a escapar daquela situação.
Os dois acabam matando o marido de Nobuyo e ela encontra Hatsue, um mulher que também tinha sido abandonada pelo marido – e que acaba conseguindo sempre algum dinheiro da situação, da família que “o roubou” dela. Todos ali tinham algum tipo de trauma e de maus-tratos, mas todos pareciam se ajudar e se entender muito bem. Descobrimos também que Hatsue não era, de fato, avó de Aki – apenas uma “avó adotiva”.
A tomada de consciência de Shota em relação ao que estava acontecendo é algo marcante. Um grande trabalho de narrativa de Koreeda. Essa passagem de uma criança para outra fase de consciência sempre impressiona. Poucos filmes retrataram tão bem esta questão quanto este Shoplifters. Muito interessante também como o filme nos mostra que nem sempre o que aparenta é, de fato, realidade.
No final, descobrimos o que realmente acontecia na casa de Hatsue e as relações que foram estabelecidas naquela família inusitada. Mas a produção não termina aí. Vemos o que acontece com Osamu, Nobuyo, Shota e Yuri depois que o sequestro das crianças é descoberto. No fim, Nobuyo acaba se sacrificando e assumindo tudo, praticamente inocentando Osamu. Ele quer ficar com o garoto, mas Nobuyo sabe que o melhor para Shota não é ficar com eles.
Assim, ela nos ensina como uma “criminosa” pode ter mais consciência e altruísmo do que muitas outras pessoas “de bem”. O filme termina de forma marcante, com Shota e Yuri buscando as suas próprias representações de família. Onde eles vão encontrar o carinho e o amor que tanto merecem? Em que endereço, em que parte? As respostas para estas questões nem sempre são tão simples ou fáceis de encontrar. Muita vezes, diferente do que os finais felizes gostam de nos mostrar, elas nem são possíveis ou viáveis.
Um filme que nos faça pensar em tudo isso e que, de quebra, nos apresente um roteiro muito bem construído, uma direção cuidadosa, atenta e envolvente e um grupo de atores carismáticos e muito competentes, não é fácil de encontrar. Mas Shoplifters é exatamente isso tudo em um único pacote. Uma excelente pedida nessa temporada do Oscar 2019. Para mim, o Melhor Filme em Língua Estrangeira do ano – pelo menos entre os concorrentes principais e entre os filmes que eu assisti até agora.
No final das contas, Shoplifters nos mostra como, no fim das contas, nós formamos e escolhemos a nossa própria família. Que muitos pais e filhos “verdadeiros” são bastante disfuncionais e fazem mal uns aos outros, e que a família que formamos na nossa vida, com amigos e outras pessoas, muitas vezes é que nos salvam.
Tomara que mais pessoas rediscutam a questão da família e a sua formação. Nem todas as pessoas que tem filhos deveriam ter entrado neste barco, enquanto que outros que não quiseram ou não puderam ter filhos podem ser mais amorosos do que quem gerou uma vida. Shoplifters vale para pensarmos, refletirmos e revermos nossos conceitos. Até porque, muitas vezes, as pessoas “só fazem” o melhor que elas podem. Se esforçam ao máximo, mas o “máximo” que elas podem ainda é pouco, é insuficiente. Uma pena.
NOTA: 9,8.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Tudo funciona muito bem nessa produção. Talvez apenas algumas sequências do filme, como quando Osamu e Nobuyo resgatam o “fogo” de sua relação, ou pelo fato da polícia não procurar, aparentemente, nas casas próximas da família de Yuri pela menina, é que fazem o filme não receber a nota máxima. Mas é por pouco, como vocês puderam ver acima.
Shoplifters é o 23º filme da trajetória de Hirokazu Koreeda como diretor. Ele estreou na direção em 1989 com o documentário para a TV Nonfix. Depois, em 1991, lançou o documentário Shikashi – Fukushi Kirisute no Jidai Ni. O primeiro longa dele, sem ser documentário, foi Maboroshi No Hikari, lançado em 1995. Fiquei com vontade de ir atrás de seus filmes. Apenas avaliando Shoplifters, acho que ele é um diretor diferenciado. Vale ser mais conhecido.
Gostei muito do trabalho do diretor e roteirista Hirokazu Koreeda. A forma com que ele conduz essa história, nos aproximando pouco a pouco da rotina e da vida da “família”, nos apresentando as suas relações de forma gradativa e sem pressa e, depois, dando uma bela e marcante reviravolta na produção, é exemplar. Toda produção que consegue surpreender o público com uma história que parecia uma coisa e depois se mostrou outra, como acontece com Shoplifters, tem grandes chances de marcar os seus espectadores. Além disso, Shoplifters tem momentos graciosos, de “a vida como ela é”, e um ótimo equilíbrio entre drama e humor.
O roteiro é um diferencial e um ponto forte de Shoplifters. Mas a direção de Koreeda, sempre focada no ótimo trabalho dos atores, assim como em revelar a sua intimidade e sua realidade, também não fica atrás. O elenco também se destaca, com um trabalho bastante interessante e envolvente dos carismáticos Lily Franky, Sakura Andô, Kirin Kiki, Mayu Matsuoka e, em especial, das crianças Jyo Kairi e Miyu Sasaki. Eles são incríveis.
Além deles, vale citar os coadjuvantes, que aparecem praticamente em pontas, Yûki Yamada e Moemi Katayama, que interpreta os pais biológicos de Yuri; e Naoto Ogata e Yôko Moriguchi, que interpretam os pais de Aki. Gostaria de citar outros coadjuvantes, como o comerciante que pede para Shota não ensinar Yuri a furtar, mas não encontrei o crédito deles nas notas dos produtores.
O roteiro e a direção de Koreeda são os pontos mais destacáveis da parte técnica desta produção. Mas outros elementos também merecem ser citados. Como a ótima direção de fotografia de Ryûto Kondô; a edição de Hirokazu Koreeda; a trilha sonora bastante pontual de Haruomi Hosono; o design de produção de Keiko Mitsumatsu; a decoração de set de Akiko Matsuba; e os figurinos de Kazuko Kurosawa.
Shoplifters estreou em maio de 2018 no Festival de Cinema de Cannes. Até março de 2019, o filme participou, ainda, de impressionantes 44 festivais em diversos países. Nessa sua trajetória, o filme ganhou 35 prêmios e foi indicado a outros 88 – inclusive uma indicação ao Oscar 2019 de Melhor Filme em Língua Estrangeira.
Entre os prêmios que recebeu, destaque para o de Melhor Filme no Asia Pacific Screen Awards; para oito prêmios, incluindo os de Melhor Filme, Melhor Atriz para Sakura Andô, Melhor Diretor para Hirokazu Koreeda, Melhor Atriz Coadjuvante para Kirin Kiki e Melhor Roteiro dados pelo prêmio da Academia de Cinema Japonesa; para o prêmio de Melhor Filme em Língua Estrangeira no Prêmio César; para o prêmio de Melhor Filme Internacional no Festival de Cinema de Munique; e para a Palma de Ouro de Melhor Filme no Festival de Cinema de Cannes.
Agora, vale citar algumas curiosidades sobre esta produção. O diretor Hirokazu Koreeda disse que desenvolveu a história desta produção a partir da pergunta “O que faz uma família?”. Ele vinha pensando em fazer um filme com esta proposta de discutir a família há anos. Para o diretor, Shoplifter é “socialmente consciente”. O objetivo da produção, segundo o cineasta, não foi explorar uma história a partir do ponto de vista de alguns indivíduos, mas tentar capturar a ideia de “família dentro da sociedade”. Ambientada em Tóquio, Shoplifters foi influenciado pela recessão econômica japonesa. O diretor se inspirou em relatos que ele viu na mídia, dessa época, de pessoas que viviam na pobreza e do furto de lojas.
Outra fonte de inspiração para o diretor foi a notícia de que várias famílias viviam do dinheiro recebido, de forma ilegal, da aposentadoria de seus pais mortos há muito tempo. Realmente, esse contexto social está bem presente nesta produção, o que é um ponto de destaque do filme, sem dúvida.
Os usuários do site IMDb deram a nota 8,1 para esta produção, enquanto que os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 194 críticas positivas e apenas duas negativas para o filme, o que lhe garante uma aprovação de 99% e uma nota média de 8,82. Chama muito a atenção, em especial, as notas altas e bem acima da média dos dois sites. O site Metacritic apresenta um “metascore” 93 para esta produção, além do selo “Metacritic Must-see”.
De acordo com o site Box Office Mojo, Shoplifters fez pouco mais de US$ 3,26 milhões nas bilheterias dos Estados Unidos. Um resultado que pode ser considerado bom para um filme estrangeiro, ainda mais no idioma japonês, na terra do Tio Sam, onde costuma fazer sucesso apenas os filmes daquele país.
Shoplifters é uma filme 100% do Japão. Como esse país foi o mais votado há tempos para que rendesse críticas aqui no blog, essa crítica passa a fazer parte de uma lista de produções que atendem a votações feitas aqui.
Faz tempo que eu assisti a Shoplifters. Algumas semanas. Então me perdoem se eu esqueci de algum aspecto relevante ou não tenha tão “fresco” na minha memória os detalhes do impacto que esta produção teve em mim. Mas é fato que eu achei ela uma das melhores desta temporada.
CONCLUSÃO: Que filme interessante, meus amigos! Muito bem narrado, com uma direção cuidadosa e uma história humana e envolvente, essa produção nos acerta com golpes precisos e nos momentos certos. Shoplifters é daqueles filmes que ficarão na nossa memória por muito tempo. Não apenas pela construção cuidadosa da história e por causa do carisma dos seus atores, mas especialmente pela forma com que ele nos faz refletir sobre temas importantes e que, algumas vezes, consideramos como de leitura óbvia. Para mim, um dos melhores filmes desta temporada do Oscar. Se você ainda não o assistiu, faça isso. Tenho certeza que você não vai se arrepender.