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Gräns – Border – Fronteira


E se tivéssemos, entre nós, outros seres diferentes da gente? Não estou falando de humanos com características diferentes, mas de seres que não são humanos como nós. Como você agiria? Será que os aceitaríamos como eles são ou tentaríamos “moldá-los” à nossa imagem? Gräns é um filme “diferentão” mas que nos faz pensar sobre o quanto estamos realmente preparados para aceitar e conviver com o que é diferente da gente – ou do padrão. O filme também aborda questões como amor, autoconhecimento, definição da própria identidade e fazer o bem independente da sua origem e das suas características. Inusitado e interessante.

A HISTÓRIA: Sons de gaivotas e de uma embarcação. Perto dela, Tina (Eva Melander) está observando o nascer de mais um dia. Ela pega um grilo e o observa atentamente. Depois, o liberta. Em seu trabalho, Tina essencialmente observa. Muita gente passa por ela e por seu colega, mas ela pede para parar, geralmente, quem tem algo a esconder. Ela para um rapaz com boné e pede para ele lhe passar a sua bolsa. Sem mesmo abri-la, ela sabe que ele tem alguns litros de bebida ali. O rapaz diz que comprou as garrafas, mas ela o adverte que ele é jovem e que é proibido ter tantas bebidas. Tina faz o trabalho dela, mas é insultada com frequência. Essa é a sua história.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Gräns): Minha gente, que mês atribulado esse de abril! Tanto é verdade que, vejam só, esse é apenas o segundo texto que eu consigo publicar aqui no blog. Mil desculpas pela ausência e pelo número pequeno de críticas nesse mês. Espero que maio seja melhor. 😉

Desculpas pedidas, vamos ao que interessa: a crítica sobre Gräns. Assisti esse filme há algumas semanas. Como sempre, não tinha lido nada sobre ele antes e, por isso, fui completamente surpreendida por sua história. Muito interessante como o roteiro de Ali Abbasi, Isabella Eklöf e John Ajvide Lindqvist vai nos apresentando esse conto que, ao mesmo tempo, consegue ser bem realista e cheio de fantasia.

Gostei muito da direção de Ali Abbasi. Ele tem um olhar diferenciado para os personagens e, claramente, volta toda a sua atenção para a protagonista. Vemos a realidade sob a ótica de Tina, e isso é algo fundamental para esta história, que é baseada em um conto de John Ajvide Lindqvist. Se você, como eu, não leu nada sobre Gräns antes de assistir ao filme, certamente você ficará surpreso(a) com esse filme.

Dito isso, a partir de agora, vou conversar com você que já assistiu à produção, beleza? (SPOILER – não leia a partir daqui se você não assistiu ao filme). Descobrirmos quem é a personagem de Tina é um dos grandes processos desta produção. E não somos apenas nós que estamos descobrindo quem ela é. A própria Tina está em uma jornada de autodescoberta – na qual ela entra sem esperar ou desejar.

Por isso Gräns tem a força que tem. Primeiro, porque a descoberta sobre a personagem que fazemos é potente através do trabalho da atriz que vivencia Tina,  a ótima Eva Melander. Inicialmente, ao ver o rosto da protagonista, ela me lembrou a história do Homem Elefante. Ou seja, eu apenas achava que ela tinha alguma deformação no rosto. Mas aos poucos, quando percebemos que ela tem o que parece ser um olfato aguçado e uma capacidade extraordinária de “farejar” o medo dos outros, começamos a nos perguntar a origem deste “super poder”.

Para a protagonista de Gräns, até então, ela deveria ser apenas uma mulher “fora do padrão” que cresceu sendo insultada. Mas isso muda quando ela encontra, em um dia normal de trabalho, um sujeito parecido com ela. Ao conhecer Vore (Eero Milonoff), ela fica intrigada com ele. Deseja saber mais sobre ele e o acaba chamando para a propriedade da família.

Até aí, tudo muito “normal”. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Tina vive com um sujeito “encostado” e um tanto machista, Roland (Jörgen Thorsson). Ela está com ele para não ficar sozinha, mas claramente ela não gosta de ter contato físico com ele. Quando Vore passa a ficar mais próximo dela, ela descobre o porquê de sempre ter se sentido abusada por Roland: ela é um troll. Como Vore. E o interessante dos trolls é que ela, que inicialmente poderia ser vista como uma fêmea, é quem tem o órgão reprodutor que nós consideramos masculino. Ou seja, ela é quem engravida Vore – que, em teoria, seria o “macho”.

Ou seja, aparentemente, os trolls não tem o sexo definido como o dos humanos. A noção de gênero é diferente. Apenas isso já torna Gräns interessante, porque ele subverte justamente o que caracteriza homens e mulheres. Um órgão reprodutor define um ser ou são outras características que o definem? Esta é uma das questões apontadas por esse filme. Mas existem várias outras em jogo. Como a capacidade das sociedades de terem seres diferentes convivendo nos mesmos espaços.

Tina, mesmo antes de descobrir a sua verdadeira origem, se sentia um bocado desprezada e deslocada na sociedade. O quanto isso não ocorre todos os dias ao nosso redor? O quanto você e eu ajudamos para que os diferentes se sintam integrados ou não nos ambientes nos quais circulamos? Gräns nos faz pensar sobre tudo isso. E, com uma boa dose de fantasia, nos faz pensar sobre como reagiríamos caso encontrássemos seres que não fossem 100% humanos. Conseguiríamos ter uma convivência pacífica com eles ou gostaríamos de “moldá-los”? Quantas pessoas, por medo ou desprezo, tentariam exterminá-los?

Quem nos garante que, por evolução natural ou por avanços da ciência e da manipulação genética, daqui algumas décadas ou séculos não teremos realmente “seres humanos” ou seres não tão humanos convivendo nas nossas sociedades? X-Men está aí para nos fazer pensar sobre isso. Gräns também. Teremos convivência pacífica ou complicada quando isso acontecer? Só nós mesmos e as próximas gerações poderão responder a essas perguntas.

Outra questão interessante levantada por Gräns é a noção da identidade. Até conhecer Vore, Tina realmente não sabia quem ela era. Ao conhecer, finalmente, alguém da mesma espécie, Tina fica fascinada. Se apaixona. Se identifica. Sente-se poderosa ao reconhecer-se no outro e, principalmente, ao verificar, nestas semelhanças e diferenças, quem ela própria era de verdade.

Conhecer-se profundamente é algo muito poderoso. Torna as pessoas mais corajosas, mais seguras de si e mais interessantes. Tina passa por esse processo em Gräns. Mas ao fazer isso, ela percebe também que não é tão parecida de Vore quanto ela poderia inicialmente imaginar. Sim, eles são da mesma espécie. Mas as semelhanças terminam por aí. Enquanto Vore quer se vingar dos humanos, Tina gosta deles e não quer matar ou destruir ninguém por fatos que não tem a ver com ela.

A postura de ambos é muito diferente e, conforme Tina vai conhecendo mais Vore, ela percebe isso. Não apenas a história de vida e a educação de Tina foi diferente da recebida por Vore, como a personalidade dela é outra. Ou seja, desta forma, Gräns está nos dizendo que não é apenas a espécie que nos define. As nossas origens contam, da mesma forma que a nossa criação, a educação que recebemos e, principalmente, as escolhas que fazemos durante a nossa trajetória.

Sem dúvida alguma, Gräns é um filme diferentão. Provocador, nos faz pensar em questões importantes sob uma ótima que mistura fantasia e realidade. Será especialmente interessante para quem não tem preconceito de conhecer uma história que foge do comum. Da minha parte, fui surpreendida pela produção. Original e interessante, acima da média.

NOTA: 9,3.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Tenho todo um processo para escolher os filmes que eu vou assistir a cada semana – quando o mês ajuda e eu consigo ver ao menos um filme por semana. O que, como vocês viram pela baixa atualização do blog, não aconteceu em abril. Procuro sempre por filmes que estão no cinema ou que vão estrear. Também procura assistir ao filmes que são destaque nos principais festivais de cinema ou recuperar alguma produção de algum diretor de quem eu gosto e que eu perdi. E há ainda os filmes clássicos, que procuro assistir para a sessão Um Olhar Para Trás aqui do blog.

Vendo os filmes que iam estrear em abril, nos principais cinemas do Brasil, encontrei esse Gräns. Como sempre, não busquei informação alguma sobre a história do filme antes de assisti-lo. Ele só entrou para a minha lista porque eu vi que ele apresentava várias críticas positivas. Foi bom ter escolhido ele, porque Gräns foge bastante do meu padrão de filmes e do que tenho comentado aqui no blog nos últimos anos. Bom ver a um filme “diferentão” para variar.

Achei interessante o trabalho do diretor e roteirista Ali Abbasi. Gräns é apenas o segundo longa-metragem dele. Abbasi estreou como diretor com o curta Officer Relaxing After Duty, em 2008, e fez outro curta, M for Markus antes de estrear nos longas com Shelley, em 2016. Fiquei curiosa para ver a Shelley e para acompanhar mais de perto esse diretor. Ele me parece bastante promissor.

Além de apresentar um roteiro e uma direção competente e envolvente, Gräns conta com um elenco pequeno e com um trabalho diferenciado. Destaque, claro, para a protagonista Eva Melander. Ela tem pela frente um papel desafiador, mas se entrega de corpo e alma para ele. Muito bom o trabalho de seu principal companheiro de cena, Eero Milonoff. Ambos estão muito bem e sustentam o filme.

Depois dos protagonistas, há alguns coadjuvantes que fazem um bom trabalho. Vale destacar, nesse sentido, o trabalho de Jörgen Thorsson como Roland, o namorado de Tina e que mora com ela até que ela o expulsa de casa; Sten Ljunggren como o pai de Tina; Ann Petrén como Agneta, policial que chama Tina para ajudar em uma investigação; Josefin Neldén como Esther, e Tomas Ahnstrand como Stefan, casal que tem um filho que vira alvo de Vore e que são amigos de Tina.

Entre os aspectos técnicos do filme, vale destacar a direção de fotografia de Nadim Carlsen; a trilha sonora bastante pontual e um tanto sinistra de Christoffer Berg e Martin Dirkov; a edição de Olivia Neergaard-Holm e Anders Skov; o design de produção de Frida Hoas; os figurinos de Elsa Fischer; a ótima maquiagem feita por uma equipe de 22 profissionais; e o trabalho fundamental da equipe de 39 profissionais envolvidos com os Efeitos Visuais do filme.

Gräns estreou em maio de 2018 no Festival de Cinema de Cannes. Depois, a produção participou, ainda, de outros 34 festivais em diversos países. Nessa sua trajetória, o filme ganhou 16 prêmios e foi indicado a outros 24, inclusive uma indicação ao Oscar de Melhor Maquiagem e Cabelo. Entre os prêmios que recebeu, destaque para o Un Certain Regard Award dado para Ali Abbasi no Festival de Cinema de Cannes; Melhor Filme de um Diretor Emergente no Festival de Cinema de Munique; e para os prêmios de Melhor Filme, Melhor Som, Melhor Atriz para Eva Melander, Melhor Ator Coadjuvante para Eero Milonoff, Melhor Maquiagem e Melhores Efeitos Visuais no Guldbagge Awards, considerado o Oscar do cinema sueco.

Essa produção foi a escolhida pela Suécia para representar o país na categoria Melhor Filme em Língua Estrangeira no Oscar. Mas Gräns não chegou até a lista dos finalistas ao prêmio.

O diretor Ali Abbasi disse que foi inspirado por vários escritores latino-americanos conhecidos por suas obras de realismo mágico, como Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes e Roberto Bolaño para fazer Gräns.

Fui procurar mais informações sobre os trolls. Segundo esse artigo da Wikipédia, os trolls são criaturas antropomórficas imaginárias do folclore escandinavo. E aí temos uma curiosidade interessante sobre uma característica deles em Gräns: a ideia deles serem “perseguidos pelos raios” e de terem medo dos trovões faz relação aos tempos pagãos da Escandinávia, quando o deus do trovão, Thor, caçava gigantes e os matava com um golpe do seu martelo, ou seja, com um relâmpago. No folclore posterior, diversas criaturas “do mal”, como lobisomens e trolls, viviam com medo dos trovões.

Para o diretor e roteirista Ali Abbasi, Gräns não é um filme de “nós contra eles”, e sim a história de uma pessoa que pode escolher a sua própria identidade e que faz isso.

Os usuários do site IMDb deram a nota 7,1 para esta produção, enquanto que os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 109 críticas positivas e apenas quatro negativas para a produção – o que lhe garante uma aprovação de 96% e uma nota média de 7,88. O site Metacritic apresenta um “metascore” 75 para Gräns, fruto de 23 críticas positivas e de duas medianas.

De acordo com o site Box Office Mojo, Gräns arrecadou quase US$ 772 mil nos cinemas americanos. Bilheteria baixa e, certamente, fruto de poucos cinemas que exibiram o filme – além dele ser bem alternativo e estrangeiro, o que nunca atrai muito o público americano.

Gräns é uma coprodução da Suécia com a Dinamarca.

CONCLUSÃO: Uma fantasia que nos faz pensar um bocado sobre “o outro” e sobre nós mesmos. O quanto a nossa sociedade e nós, como indivíduos, estamos preparados para aceitar o que é diferente? Gräns explora esta questão, assim como a sensação de um indivíduo pertencer a um grupo ou local, a definição de identidade e outras questões importantes em qualquer tempo. Produção que vai se revelando pouco a pouco e nos surpreendendo na mesma medida. Bastante original, Gräns vale especialmente para quem gosta de narrativas diferenciadas e nada óbvias.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 20 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing e, atualmente, atuo como professora do curso de Jornalismo da FURB (Universidade Regional de Blumenau).

2 respostas em “Gräns – Border – Fronteira”

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