Duas visões muito diferentes da Igreja. Dois líderes com muitos seguidores – mas um mais que o outro. The Two Popes conta um pouco dos bastidores que levaram o Vaticano a escolher primeiro Ratzinger e, depois, Bergoglio como, respectivamente, os papas Bento XVI e Francisco. Um filme interessante, especialmente para quem não conhecia muito a história e a linha de pensamento de cada um deles. Mas o filme também tem uma que outra carência e fragilidade.
A HISTÓRIA: Começa com uma mensagem gravada de um call center de uma agência de viagens. Do outro lado da linha, Jorge Bergoglio (Jonathan Pryce) aguarda para falar com uma atendente. Ele pretende comprar uma passagem para Lampedusa. Quando ele diz o seu nome e comenta que não sabe o código postal porque mudou-se recentemente, e cita que vive no Vaticano, a atendente comenta que a piada foi engraçada, e desliga. Em seguida, ouvimos Bergoglio falando sobre São Francisco. Ele está na Argentina, celebrando uma missa em uma comunidade. Na saída, é avisado que o Papa João Paulo II morreu. Em breve, ele participará do conclave para a escolha do novo Papa.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a The Two Popes): Estava com grandes expectativas para este filme. Primeiro, pela temática da produção. Depois porque eu vi vários comentários positivos sobre o filme pipocando aqui e ali. E depois, claro, por esse filme ter a direção do brasileiro Fernando Meirelles e por ter os grandes atores Anthony Hopkins e Jonathan Pryce no elenco.
Daí que fui vendo o filme e notei que não me surpreendi com quase nada. Ao menos não com o essencial da história. E o que fundamenta boa parte do roteiro de Anthony McCarten? Por um lado, os “bastidores” do Vaticano – inclusive de que forma é feita e se desenrola a eleição de um novo Papa. Por outro, e o que me parece o cerne da produção, a forma de pensar e agir dos dois papas que a Igreja Católica têm no momento – o Papa Francisco e o Papa Emérito Bento XVI (Anthony Hopkins).
Como o conclave é feito, a questão do voto individual em papel até que o número de votos mínimo seja alcançado por um dos cardeais não é novidade. Talvez alguns detalhes da cerimônia, como a questão dos votos serem amarrados por um fio e a questão da contagem podem trazer alguma novidade – ao menos para mim esses detalhes foram novos.
Mas o outro aspecto do filme, as diferenças de linha de pensamento entre Raztinger e Bergoglio, não trouxeram novidade. Quem é católico e/ou quem acompanha o Vaticano e se interessa pela história da Igreja Católica já sabia de tudo aquilo.
Um pouco do detalhamento da vida de Bergoglio antes dele se converter… isso sim trouxe alguma novidade. São exemplo disso a questão de como ele recebeu o seu “chamado” e de que ele era noivo na época. Eu já conhecia o posicionamento dele e as críticas que ele recebeu durante a época da ditadura argentina, mas não sabia sobre a “penalização” que ele recebeu após o fim do regime.
Então sim, The Two Popes tem esses mergulhos importantes e interessantes na vida de Bergoglio na fase anterior a dele ser Papa. Também me pareceu muito interessante a virada que Ratzinger faz em seu posicionamento. Claramente, no conclave em que ele foi eleito, ele tinha um distanciamento claro de Bergoglio. Mas, anos depois, quando o cardial argentino pediu para ser aposentado, o já Papa Bento XVI quis trazê-lo para perto para saber se a escolha que ele faria um ano depois seria realmente acertada.
Claramente o roteiro de Anthony McCarten defende um lado da história. Dá para entender isso, já que todo roteirista e realizador defende um ponto de vista – mesmo em um documentário. Mas isso não quer dizer, necessariamente, que a obra fruto de uma ideologia seja a melhor experiência para o espectador. No caso de The Two Popes, o filme se apresenta como uma leitura ligeira e uma introdução para as pessoas que não acompanham o tema.
Agora, para os católicos e para quem acompanha o Vaticano, suas diferentes correntes, bastidores, política e forma de agir e de trabalhar, esta produção é um tanto “ligeira” demais. Ou, em outras palavras, superficial e partidária. Claramente McCarten é fã do Papa Francisco e um crítico do Papa Bento XVI. Prova disso é o espaço e o destaque que ele dá para cada um na história.
O roteiro de McCarten mergulha na história de Bergoglio, incluindo comentários sobre sua infância e imagens de sua jovem vida adulta – antes dele optar pela vida religiosa. Depois, mostra o seu principal momento de “conflito”, durante a ditadura argentina. Em contrapartida, o que vemos sobre a vida de Ratzinger? Nada. Absolutamente nada. Apenas sabemos, por um comentário do próprio Papa, que ele pensava em ser músico quando era criança.
Sobre o Papa Francisco, todos sabemos mais. Sobre sua vida, sobre sua conduta e ideias. Mas sobre o Papa Bento XVI é que temos uma lacuna maior de conhecimento. E isso não é resolvido por este filme. Assim, achei o trabalho de McCarten um tanto preguiçoso. Contar o que todos sabem – ou praticamente isso – é fácil. Difícil seria realmente mergulhar mais na trajetória dos dois e, principalmente, nas duas linhas de pensamento que eles seguem.
Quem é católico e/ou acompanha o Vaticano já sabia muito bem que Ratzinger seguia uma linha mais conservadora e que Bergoglio era de uma linha reformista da Igreja. Novidade alguma aí. Uma parte interessante, sem dúvida, de The Two Popes, é quando os dois papas acabam interagindo um ano antes da renúncia de Bento XVI. Ali está a parte mais interessante da produção. E, ainda assim, achei esta parte falha.
Por que digo isso? Porque é fácil apresentar um resumo simplista sobre a diferença de visões entre os dois. O difícil seria mergulhar no cerne da questão. Nas razões que faziam um ser conservador e o outro ser reformista. Temos uma visão um pouco maior da ótica de Bergoglio, mas não temos o mesmo de Ratzinger. O que é uma pena. Eu gostaria, realmente, de conhecer um pouco melhor o que pensava Bento XVI sobre a Igreja, seu papel no mundo e etc. Mas não somos brindados com isso.
Enquanto achei o roteiro de McCarten um tanto preguiçoso, não posso dizer o mesmo sobre o trabalho do diretor Fernando Meirelles. Ele dá uma dinâmica muito interessante para a produção, valorizando cada detalhe das cenas e, principalmente, as interpretações dos ótimos atores que protagonizam essa produção. As câmeras do diretor deslizam com facilidade e mostram uma dinâmica importante para um filme que tinha a tendência de ser bastante parado.
Assim, a razão principal para a minha nota abaixo é pelo belo trabalho do diretor Meirelles e pelo excelente trabalho dos atores Jonathan Pryce e Anthony Hopkins. Mas o roteiro de Anthony McCarten realmente deixa a desejar. Para os desavisados e para quem não segue a Igreja, talvez esse filme apresente muitas novidades. Para quem segue a Igreja, ele parece superficial e forçado em algumas partes. Logo mais falarei sobre esta forçada de barra.
NOTA: 8,2 8.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Apesar da fragilidade do roteiro de McCarten, The Two Popes tem momentos interessantes. Destaco, por exemplo, quando Bergoglio comenta que não existem coincidências. Sobre isso, estou de pleno acordo. Para alguns, pode parecer “esoterismo” dos dois Papas buscarem “sinais divinos” para identificarem que decisões tomar ou que caminhos seguir. Mas quem acredita que deve estar em sintonia com Deus está, realmente, sempre aguardando estes “sinais” para identificar o melhor caminho a seguir. Sob esta ótica, coincidências não existem, de fato.
The Two Popes é baseado em uma história real. Nem por isso tudo que vemos em cena deve ser entendido como uma reprodução do que, de fato, aconteceu. Alguma viagens e encontros, claro, foram documentados e podem ter sido “resgatados” pelo roteirista do filme. Mas os diálogos e algumas sequências foram imaginadas por McCarten. Neste sentido, em especial, acho muito difícil de acreditar na sequência em que Bergoglio ensina alguns passos de tango para Ratzinger.
Achei um exagero aquela sequência. Entendo que uma das finalidades do filme era humanizar os personagens. Mas era necessário, realmente, colocar uma cena como aquela? Achei um exagero, uma fragilidade da produção. Desnecessário.
Por outro lado, devo destacar o excelente trabalho dos atores Anthony Hopkins e Jonathan Pryce. Os dois foram tão bem caracterizados e encarnaram tão bem os seus personagens que, algumas vezes, conseguimos ver os papas originais no lugar dos atores. Um trabalho incrível, de fato. Digno de premiações e de indicações a prêmios.
A “preguiça” do roteiro de McCarten não me ajudou a entender, de fato, quais foram as motivações de Bento XVI para fazer o que ele fez. Sim, ele estava pressionado por vários escândalos. Mas isso, por si só, não explica a sua motivação. No filme, fica sugerido que ele não “ouvia mais” ou “sentia a presença de Deus”. Me desculpem, mas isso é pura especulação. E uma explicação simplória, me parece. Gostaria de realmente saber o que o levou a renunciar e a ter uma inclinação por seu “opositor”, Bergoglio. Isso o filme não responde de forma satisfatória, a meu ver.
Procurei saber mais sobre partes do filme que procuram “humanizar” os personagens e se elas eram reais ou não. Essa reportagem da USA Today nos tiram algumas dúvidas a respeito. Por exemplo, que os papas não compartilharam uma pizza juntos ou assistiram à partida da Copa do Mundo como o filme mostra. Se isso não aconteceu, imaginem a cena do tango… muito menos! Então para que mostrar isso em cena? Achei muito forçado. Eu preferia um pouco mais de realidade.
Na entrevista para a revista feita por Meirelles, ele mesmo admite que o filme é sobre o Papa Francisco. Mas não é isso que você espera ao ler o título The Two Popes, certo? Então acho o filme falho ao retratar de forma fraca e superficial Bento XVI. Gostaria de saber mais sobre ele.
Apesar do roteiro não lhe ajudar em nada, Anthony Hopkins dá um show de interpretação. Como sempre, aliás. Ele é um dos grandes atores de todos os tempos. Impressionante.
Para mim, além da direção inspirada de Meirelles, o grande mérito deste filme são as interpretações de Anthony Hopkins e de Jonathan Pryce. Eles estão divinos. Realmente humanizaram muito bem os seus personagens. Além deles, vale comentar o belo trabalho de Juan Minujín como o jovem Bergoglio; de Luis Gnecco em uma ponta como o cardeal brasileiro Hummes; de María Ucedo como Esther Ballestrino, amiga de Bergoglio na juventude; e de Germán de Silva como o padre Yorio e de Lisandro Fiks como o padre Jalics, ambos amigos de Bergoglio que sofreram com a ditadura.
Entre os aspectos técnicos do filme, além da direção bem orquestrada e precisa de Meirelle, vale destacar a direção de fotografia – em preto e branco e em cores – de César Charlone; a ótima edição de Fernando Stutz; a trilha sonora presente e bem planejada de Bryce Dessner; o design de produção de Mark Tildesley; a direção de arte de Saverio Sammali; os figurinos de Luca Canfora e Beatriz de Benedetto; e a decoração de set de Livia del Priore, Véronique Melery, Natalia Mendiburu e de Germán Naglieri.
Muito interessante a mistura de referências e de escolas cinematográficas feitas por Meirelles nesse filme. Destaco, em especial, os requintes de “expressionismo” e de cinema mudo na sequência de Bergoglio na Igreja, quando ele se confessa para o padre e descobre a sua vocação. Neste momento, compartilho com o Papa Francisco também o entendimento que não podemos fugir da nossa missão. Quer dizer, até podemos fugir dela, mas nunca seremos felizes ou realizados ao fazer isso.
Pelo roteiro deste filme, certamente, eu daria uma nota mais baixa do que a que conferi acima. Só dei a nota que eu dei, boa, me parece, pelo trabalho de Meirelles e dos atores.
The Two Popes estreou em agosto de 2019 no Festival de Cinema de Telluride. Depois, o filme passaria, ainda, por outros 12 festivais de cinema em diversos países. Em novembro de 2019 ele estreou de forma limitada, apenas em alguns cinemas, dos Estados Unidos. Sua estreia na internet, pela Netflix, ocorreu em dezembro de 2019. Esse é mais um filme que mostra a maturidade da Netflix a respeito do cinema – a marca deve se tornar cada vez mais forte neste segmento. O que é bastante importante para a renovação do cinema.
Até o momento, The Two Popes ganhou 9 prêmios e foi indicado a outros 34 – incluindo, nesta lista, a indicação em 4 categorias do Globo de Ouro: Melhor Filme – Drama, Melhor Roteiro para Anthony McCarten, Melhor Ator – Drama para Jonathan Pryce e Melhor Ator Coadjuvante para Anthony Hopkins.
Agora, vale citar algumas curiosidades sobre esta produção. Inicialmente, esta produção se chamaria O Papa. Com a entrada de Anthony Hopkins no projeto, o título foi alterado para Dois Papas. Isso para atender a um pedido do agente de Hopkins.
Fernando Meirelles não tinha pensado em Pryce, inicialmente, para o papel de Papa Francisco. Mas ao pesquisar na internet sobre o Papa, ele encontrou várias fotos de comparação entre Bergoglio e Pryce. Foi aí que o diretor foi atrás da história e da filmografia de Pryce e, ao saber sobre seu trabalho, o convidou para o papel.
Segundo o site IMDB, The Two Popes é baseado em eventos históricos, incluindo discursos públicos e debates religiosos dos dois papas, mas as conversas privadas entre Bergoglio e Ratzinger têm como base a criatividade as conjecturas do roteirista. O próprio McCarten comentou que o que ele fez foi especular, esperando que sua especulação fosse baseada em fatos e na verdade. Ou seja, há um risco grande de boa parte do que vemos em cena ter sido pura fantasia do roteirista.
Apesar de recheado de fantasia, o filme The Two Popes acerta em algo: um Papa, por mais que seja diferente de seu antecessor ou de seu sucessor, jamais será contra ele publicamente. Isso porque o Papa sabe a importância de manter a unidade da Igreja, mesmo que existam tantas correntes diferentes dentro da instituição religiosa. Ele entende que isso faz parte e respeita a escolha do conclave. Nisso o filme acerta.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,7 para esta produção, enquanto que os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 167 críticas positivas e 21 negativas para o filme – o que lhe garante uma aprovação de 89% e uma nota média de 7,33.
O site Metacritic apresenta um “metascore” de 75 para The Two Popes, fruto de 32 críticas positivas, 5 críticas medianas e 1 crítica negativa para o filme. De acordo com o site Box Office Mojo, esta produção teria arrecadado cerca de US$ 139,7 mil nos cinemas em que estreou em diversos países de forma limitada – não há informações sobre o resultado do filme nas bilheterias norte-americanas.
Esse filme é uma coprodução do Reino Unido, da Itália, da Argentina e dos Estados Unidos.
Para quem ficou interessado sobre o tema da renúncia de Ratzinger e o que aconteceu com o Papa Bento XVI desde então, recomendo este texto de El País. Também achei interessante e recomendo este texto sobre a santificação de João XXIII e João Paulo II, feita pelo Papa Francisco, e que ajuda a mostrar que as divergências e as diferentes correntes dentro da Igreja não são de agora.
The Two Popes é o décimo longa-metragem dirigido por Fernando Meirelles. Ele estreou na direção em 1983 com o curta Mary Normal. Além dos longas, ele tem no currículo, como diretor, três curta e 10 séries de TV. Aqui no blog, comentei, da filmografia dele, apenas 360 – com crítica neste link.
CONCLUSÃO: Um filme que apresenta, para quem não está muito familiarizado com a Igreja Católica, um pouco dos seus bastidores. O grande mérito de The Two Popes é o seu esforço por humanizar essas duas figuras máximas de uma das religiões mais importantes e influenciadoras do mundo. Mas um pouco de seu defeito é justamente esse. Há cenas do filme que, claramente, são pura “licença poética” do seu realizador. Tudo bem, mas não para uma produção que pretende apresentar uma história o mais próxima possível da realidade, não é mesmo?
Como todo realizador, o diretor brasileiro Fernando Meirelles tem uma preferência e uma ideologia. Isso se respeita. Claramente ele prefere a visão do Papa Francisco e dá mais espaço para este “personagem” do que para o não tão “simpático” Bento XVI. Mesmo respeitando a linha do diretor, como espectadora, devo dizer que fiquei decepcionada pela escolha pelo caminho fácil. Queria saber mais sobre Ratzinger e sobre Bento XVI. Por tudo isso, considero esse filme interessante, especialmente sobre os bastidores do Vaticano, mas um tanto falho ao retratar um dos personagens.
PALPITES PARA O OSCAR 2020: Difícil acertar agora sobre a chances de The Two Popes no próximo Oscar. Mas acredito que o filme tem boas chances para ser indicado como Melhor Filme – especialmente pela boa recepção da crítica – e por alguma indicação para os atores. Tanto Jonathan Pryce quanto Anthony Hopkins podem emplacar indicações para Melhor Ator e Melhor Ator Coadjuvante – respectivamente.
McCarten até pode ser indicado como Melhor Roteiro Original. Mas, francamente, eu acharia um exagero e uma certa injustiça isso acontecer. Como disse antes, o roteiro me parece o ponto mais fraco do filme. Além disso, o filme pode emplacar algumas outras indicações – torço por Fernando Meirelles como Melhor Diretor, mas acho o caminho dele difícil. The Two Popes poderia ser indicado, ainda, como Melhor Trilha Sonora.
Apesar de suas indicações, acho difícil o filme conquistar algum prêmio. Mas é cedo para dizer, ainda. Preciso ver a outros possíveis indicados para realmente opinar. As melhores chances, me parece, envolve o trabalho dos atores. Mas, mesmo aí, acho que ele tem fortes concorrentes – e até favoritos.
Uma resposta em “The Two Popes – Dois Papas”
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