A dignidade humana, para muitos, passa pelo trabalho. Todos deveriam ter a oportunidade de aprender, de trabalhar e de se desenvolver. Mas é isso o que acontece, de fato? Todos têm essa oportunidade? American Factory nos faz refletir não apenas sobre a realidade do mercado de trabalho atual mas, sobretudo, sobre as grandes diferenças que temos, mundo afora, neste universo do trabalho e do que recebemos em troca por ele. As diferenças são grandes, dependendo do país e da cultura. E isso fica bem evidente neste documentário interessante e que vai fundo no assunto sem ser didático ou chato demais.
A HISTÓRIA
Começa no dia 23 de dezembro de 2008. Em um púlpito, um pastor pede para que todos se aproximem o suficiente para que possam tocar em alguém. Ele comenta que a situação é séria, mais séria do que as pessoas presentes imaginam. Ele faz uma oração, enquanto as pessoas ficam em silêncio. Em seguida, outra pessoa fala sobre a fábrica da GM que está fechando e sobre as pessoas incríveis que trabalharam ali por tanto tempo. Algumas cenas mostram esses trabalhadores antes do fim da produção – que encerrou mais de 10 mil postos de trabalho.
O local fica abandonado. Vemos montes de areia e esteiras transportando o material. Essa areia vai para fornos, onde trabalhadores cuidam da produção de vidro. Esse produto segue por diferentes máquinas e locais da produção. A automação é um elemento muito presente nas cenas, mas há alguns braços e mãos humanas que aparecem aqui e ali. Em 2015, dois chineses jovens olham para a cidade de Dayton, em Ohio, e tentam adivinhar a idade das residências. Eles são dois trabalhadores da Fuyao, fábrica chinesa que compra a antiga fábrica da GM.
VOLTANDO À CRÍTICA
(SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a American Factory): Algo que eu fiquei impressionada com esse filme foi como os diretores Steven Bognar e Julia Reichert conseguiram mostrar a realidade da fábrica chinesa em solo americano.
É muito difícil um empresário permitir que uma equipe de filmagens acompanhe o dia-a-dia da produção de suas fábricas de forma tão franca. Ainda mais difícil é ele falar o que ele pensa como Cho Tak Wong, fundador e CEO da Fuyao faz. Sem a abertura que os diretores conseguiram com a fabricante chinesa de vidros automotivos em solo americano – com visita também na sede da empresa na China -, seria impossível termos a profundidade que este American Factory nos apresenta.
Primeiro elemento a destacar neste filme, portanto, é o material original e dificílimo de achar que os diretores conseguiram conquistar. Além disso, essa produção usa um fato interessante, que foi a compra de empresas chinesas de “espólios” de empresas que fecharam as portas nos Estados Unidos após a crise financeira global de 2008, para mostrar as diferenças entre o modo de produção das duas maiores potências econômicas do planeta.
Francamente, até assistir a American Factory, eu não sabia que os chineses tinham sido tão rápidos no gatilho e aproveitando este vácuo deixado por outras empresas para fincar bandeira nos Estados Unidos com diversas aquisições a partir de 2010. Mas ao fazer isso, é claro, eles deixaram ainda mais evidente algumas diferenças grandes entre o “made in” China e o “made in” Estados Unidos – e da maioria dos países ocidentais.
A primeira diferença gritante entre estes dois modelos de trabalho é a sindicalização dos trabalhadores. Enquanto os sindicatos nos Estados Unidos sempre foram fortes e apresentam uma grande história, na China as empresas odeiam a sindicalização – ao menos é isso que Cho Tak Wong dá a entender. Isso, é claro, tem uma razão de ser.
Quando os sindicatos são fortes e tem uma boa base de adesão, os trabalhadores conseguem mais direitos e benefícios. Ou, nos dias atuais, de crise no mercado de trabalho em diversos países, eles conseguem, ao menos, manter os direitos adquiridos após séculos ou décadas de lutas – dependendo do histórico de cada país.
Mas isso não interessa para os empresários – ou para a maioria deles, ao menos. E não estamos falando apenas dos chineses, é claro. Muitas vezes os trabalhadores são vistos, pelos donos das empresas e seus principais executivos, como um “mal necessário”. Mas como American Factory nos mostra, no final da produção, a tecnologia e a automação que ela propicia podem vir como uma “solução” para este problema.
Mas antes de falar sobre o fim de American Factory, vamos falar sobre outros momentos da produção. Como eu dizia, achei muito interessante – e foi uma novidade para mim – o movimento de diversas empresas chinesas em comprar fábricas fechadas nos Estados Unidos. É fato que os empresários chineses estão se “espalhando” pelo mundo afora, em busca de mais dinheiro, de oportunidades e de buscar relevância global ainda maior.
Eles estão investindo no Brasil também. Por isso a importância deste American Factory. Imagino que não é todo empresário chinês que tenha a postura de Cho Tak Wong, mas não tenho dúvidas de que a maioria concorda com ele de que os trabalhadores chineses, a maioria deles explorados, são melhores.
American Factory começa interessante, neste sentido, porque os diretores mostram como os funcionários americanos contratados pela Fuyao começam empolgados e felizes por voltarem a ter uma oportunidade de trabalhar. Afinal, muitos deles ficaram meses ou até anos desempregados. O Brasil conhece bem esta realidade… especialmente após 2014.
Dá para entender que pessoas desesperadas fiquem, inicialmente, felizes com qualquer oportunidade de trabalho. Mas um dia vai se somando ao outro, o trabalhador faz o mesmo trabalho todos os dias, e aí outros fatores começam a pesar. Como a falta de segurança para trabalhar, o risco de sofrer acidentes, a praticamente inexistência de horário de almoço ou para fazer um lanche e os salários bem abaixo da média do país – ou do que a pessoa recebia antes.
Sozinho, o trabalhador dificilmente consegue mudar algo da sua realidade. Por isso, conforme os dias e os meses passam, os funcionários da Fuyao em solo americano começam a pedir o direito de aderirem a um sindicato. A empresa é contra e investe pesado em uma consultoria para que esta ideia não vá adiante.
Enquanto isso, os diretores de American Factory nos apresentam o cotidiano de uma fábrica chinesa em solo americano e as diferenças culturais entre os trabalhadores dos dois países. Nesta parte, contudo, o documentário mostra um pouco de fragilidade. Os diretores conseguem se aproximar muito mais dos trabalhadores americanos do que dos chineses – o que já era esperado, convenhamos, já que os executivos até podem falar, com maior naturalidade, mas os trabalhadores chineses não.
Apesar deste pequeno porém, American Factory consegue capturar momentos realmente importantes de executivos da empresa – especialmente quando eles falam com os funcionários ou quando Cho Tak Wong visita a fábrica americana.
Não demora muito para percebermos que ninguém está feliz naquela relação. Os empregados americanos acham que ganham pouco e que não tem a segurança ou a valorização necessárias. Os empregados chineses estão longe de casa e não recebem um extra por causa disso. E os executivos da Fuyao, especialmente Cho Tak Wong, não estão satisfeitos com a produtividade e os resultados financeiros da empresa em solo americano.
Quando pensamos que os funcionários americanos – e na maioria dos países ocidentais – trabalham oito horas por dia e não costumam fazer horas extras, e que os chineses estão habituados a trabalhar até 12 horas por dia, realmente a diferença de “entrega” é muito grande. Mas será que as pessoas tem escolha? Quem, em sã consciência, gostaria de trabalhar todos os dias uma média de 12 horas por dia?
Enquanto alguns países, especialmente na Europa, estão discutindo a redução do horário de trabalho, seja por dia, seja reduzindo os dias da semana trabalhados, temos os chineses trabalhando como loucos. Para os empresários que tem dinheiro, como vemos no final de American Factory, a automatização das fábricas entra como uma alternativa interessantíssima para substituir os trabalhadores e suas “reclamações” e “problemas”. Afinal, máquinas não reclamam.
Neste sentido, American Factory nos faz pensar não apenas sobre a desigualdade gigante que existe no mercado de trabalho chinês e do restante do mundo quanto sobre o que isso significa para a economia global e para a equiparação de condições de competição das empresas. Com os trabalhadores chineses trabalhando tantas horas a mais e ganhando tanto a menos, como é possível competir com as empresas chinesas?
Os chineses vão dominar o mundo? E com essa dominação, comprando fábricas fechadas ou construindo fábricas novas em outros países, vão levar para o restante do mundo a precarização do mercado de trabalho? As pessoas, se pudessem escolher, iriam preferir que forma de vida e de trabalho? Até quando as pessoas poderão fazer esse tipo de escolha?
No final de American Factory somos apresentados a um cenário de automatização de fábricas que está em expansão. Figuras como Yuval Harari já nos falaram sobre o futuro que se avizinha e que significará uma exclusão cada vez maior das pessoas. A desigualdade está crescendo e tende a aumentar cada vez mais. Com ela, segundo Harari, teremos cada vez mais pessoas à margem das sociedades, exploradas ou miseráveis.
Sei que nada disso é bom de se ler. E que você, provavelmente, não gostaria de estar lendo isso por aqui. Mas American Factory nos faz pensar sobre estes e outros temas. Para onde vamos, afinal? Qual será o futuro das nossas sociedades daqui a 5, 10 ou 50 anos? Quando paramos para pensar no mercado de trabalho e na questão ambiental, por exemplo, não temos boas perspectivas pela frente. Infelizmente.
Por tudo isso que comentei e por conseguir avançar tanto nas curiosidades que envolvem um investimento chinês em solo americano, com tudo que isso pode significar, American Factory é um filme fundamental. Achei essa produção muito bem conduzida, narrada e construída, com algumas ideias muito importantes e interessantes que devem ser debatidas. Merece ser visto, sem dúvidas.
NOTA
9,3.
OBS DE PÉ DE PÁGINA
A correria do final de 2019 e do início de 2020 não me permitiu assistir a todos os filmes que eu gostaria. Como vocês repararam, nos últimos meses, teve toda uma temporada em que eu não consegui atualizar o blog aqui nem mesmo uma vez por semana. Digo isso porque, claro, comecei a ver os filmes indicados a Melhor Documentário do Oscar 2020 pelo favorito na disputa, que é este American Factory. Mas quero assistir aos outros filmes ainda… pouco a pouco chego neles.
Acabei adiantando a um dos tópicos desta seção das minhas críticas. American Factory ganhou 16 prêmios, até o momento, e foi indicado a outros 43 – incluindo a indicação do filme ao Oscar de Melhor Documentário. Para quem aposta no Oscar, esta produção é considerada a favorita.
Entre os prêmios que recebeu até agora, American Factory ganhou como Melhor Documentário Político e Melhor Diretor para Steven Bognar e Julia Reichert no Critic’s Choice Documentary Awards; Melhor Direção em Documentário no Directors Guild of America; Melhor Diretor conferido pelo International Documentary Association; Melhor Documentário no Festival de Sundance e Melhor Documentário no Gotham Awards.
Entre os aspectos técnicos do filme, sem dúvida alguma o destaque vai para a direção da dupla Steven Bognar e Julia Reichert. Eles contam, com precisão e de forma muito interessante, a história desta indústria chinesa que se instala em uma comunidade castigada pela crise econômica que afetou gravemente os Estados Unidos desde antes da chegada deles e mostrando todo o processo da empresa em seus primeiros tempos de operação. A forma com que eles contam essa história, mostrando detalhes de cada momento, é fascinante. Uma aula de como fazer um documentário.
Fiquei curiosa para saber mais sobre os diretores. Steven Bognar recebeu, com American Factory, a sua segunda indicação ao Oscar. Há exatos 10 anos, em 2010, ele foi indicado por The Last Truck: Closing of a GM Plant na categoria Melhor Curta Documentário. Bognar estreou na direção em 1990 com o curta documentário Welcome to Censornati. A estreia dele em longas de documentário aconteceu em 1996 com Personal Belongings. Depois disso, ele dirigiu mais cinco curtas, duas séries de TV de documentário, um filme para a TV documentário e dois documentários. Ou seja, American Factory é o quarto longa documentário que ele faz para o cinema.
A diretora Julia Reichert é mais experiente – ao menos em termos de Oscar. Com American Factory ela soma quatro indicações ao Oscar – foi indicada pela primeira vez em 1978 por Union Maids, indicado a Melhor Documentário; depois em 1984 por Seeing Red, indicado a Melhor Documentário e, finalmente, em 2010, ao lado de Bognar, com o curta The Last Truck: Closing of a GM Plant. Julia Reichert estreou na direção de documentários com o longa Growing Up Female em 1971. Depois, ela dirigiu mais cinco documentários, um longa de ficção, duas séries de TV de documentário, dois curtas e um filme para a TV de documentário. Desde 2006 ela trabalha ao lado de Bognar.
Além da direção de Steven Bognar e Julia Reichert, me chamou a atenção neste filme a trilha sonora de Chad Cannon; a direção de fotografia de Steven Bognar, Aubrey Keith, Jeff Reichert, Julia Reichert e Erick Stoll; e a edição de Lindsay Utz. Todos esses são elementos que funcionam muito bem e um trabalho de equipe que viabilizou uma produção como American Factory.
Agora, vale citar uma ou duas curiosidades sobre American Factory. Esta é a primeira produção lançada pela nova produtora Higher Ground, fundada pelo ex-presidente americano Barack Obama e sua esposa, Michelle Obama.
A diretora Julia Reichert está com um câncer terminal e, por isso, ela disse que este será o seu último filme. Puxa, que lamentável. Gostaria de ver a outros filmes dela. Pela qualidade desta produção, sinceramente espero que ela receba um Oscar por American Factory.
Procurando mais sobre Cho Tak Wong, descobri que ele está na lista da Forbes como o 163º chinês mais rico, com um patrimônio de cerca de US$ 2,2 bilhões – o ápice da riqueza dele ocorreu em 2018, quando ele somava um patrimônio de US$ 2,5 bilhões. Segundo a Forbes, ele é casado e pai de três filhos.
American Factory estreou em janeiro de 2019 no Festival de Cinema de Sundance. Até novembro daquele ano, o filme participou, ainda, de 27 outros festivais de cinema pelo mundo. Produção da Netflix, o documentário estreou no serviço de streaming em agosto de 2019.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,5 para American Factory, enquanto que os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 79 críticas positivas e duas negativas para este filme – o que lhe garante uma aprovação de 98% e uma nota média de 8,39.
O site Metacritic apresenta um “metascore” de 86 – fruto de 22 críticas positivas e uma mediana – para o filme, assim como o selo “Metacritic Must-See” para American Factory.
American Factory é uma produção 100% dos Estados Unidos. Por isso, esse filme passa a fazer parte da lista de produções que atende à uma votação feita há tempos aqui no blog.
CONCLUSÃO
Um filme que consegue mergulhar, como poucos, na realidade de uma indústria que tem duas fábricas em realidades muito diferentes do mercado de trabalho. American Factory impressiona tanto pelos depoimentos e pelas capturas de realidade que realiza quanto pela reflexão que provoca na audiência sem fazer grandes discursos para isso.
O filme também nos faz pensar como o mercado de trabalho é cada vez mais injusto e que a tendência é isso apenas piorar. Infelizmente. Me desculpem dizer isso, mas é a verdade. Eis uma produção necessária e que merece ser debatida em diversas esferas, até para fazermos bem nossas escolhas.
PALPITES PARA O OSCAR 2020
Vou dizer para vocês, é difícil opinar nesta categoria porque eu só assisti a esse filme até o momento. Como não vi a nenhum dos outros quatro concorrentes a Melhor Documentário do Oscar 2020, fica difícil de comentar sobre as reais chances de cada um.
Para dar palpites, neste caso, portanto, vou apelar para bolsa de apostas e para os resultados de cada um dos concorrentes até agora. Como comentei antes, segundo as bolsas de apostas, American Factory é o favorito. Mas o filme não é o maior vencedor da temporada. Recentemente ele perdeu o BAFTA de Melhor Documentário para For Sama. Ou seja, esta categoria não é super previsível não – como outras da premiação neste ano.
Se vamos olhar para os filmes em disputa mais premiados, teríamos a seguinte ordem de classificação: For Sama lidera com 59 prêmios até o momento, seguido de Honeyland com 32 prêmios, American Factory com 16, The Cave com 11 e The Edge of Democracy (ou Democracia em Vertigem) com apenas um prêmio.
Se analisarmos apenas por esta ótica, claro, For Sama seria o favorito. Mas é preciso avaliar outros pontos. Honeyland, por exemplo, está indicado em duas categorias do Oscar – Melhor Documentário e Melhor Filme Estrangeiro. Na segunda categoria, certamente, ele vai perder para Parasite (comentado aqui no blog).
Como o Oscar é uma premiação única e que, especialmente em Melhor Documentário e em Melhor Filme em Língua Estrangeira, muitas vezes, não segue a maioria das premiações mundo afora, eu diria que os maiores concorrentes são For Sama, American Factory e Honeyland. Mas meu palpite é que a disputa está mesmo, nesta ordem de preferência, entre American Factory e For Sama. Veremos… Eu ainda apostaria em American Factory, inclusive pela aposentadoria forçada da diretora – que pode, após quatro indicações ao Oscar, finalmente ganhar a sua estatueta.