As desigualdades sociais e as formas de preconceito estabelecidas de forma estrutural causam injustiças, opressão, revolta. Algumas vezes, estes elementos terminam em violência, crimes, assassinatos (ou tentativas de). Les Misérables, candidato da França ao Oscar de Melhor Filme Internacional de 2020, foi um dos últimos que eu assisti da lista que estava faltando. Assisti ele há meses, mas a essência desta produção ainda está bem presente na minha memória.
A HISTÓRIA
Um garoto preto com a bandeira da França presa no pescoço e com as cores do país pintadas no rosto sai de casa para encontrar alguns amigos. Eles estão na expectativa pelo jogo da Seleção francesa, apostando que o ídolo Mbappé irá marcar na grande final que pode dar a Copa do Mundo de 2018 para os franceses. O grupo de meninos se junta à multidão na torcida e canta o hino nacional. A multidão enlouquece com a vitória, mas em breve vamos ver, na prática, como aquela igualdade entre torcedores termina naquele momento de catarse. Na vida real o protagonista deste filme não é tratado como um igual na França.
VOLTANDO À CRÍTICA
(SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes de Les Misérables, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu ao filme): O ano de 2020 nos revelou muito da falta de empatia e de maturidade da(s) nossa(s) sociedade(s). A pandemia do novo coronavírus pediu um nível de empatia e de maturidade que poucos foram capazes de demonstrar. Mas isso não se aplica apenas à questão da COVID-19 e dos cuidados que todos deveriam ter com todos – com o mínimo de noção de coletividade e civilidade -, mas, também, pudemos ver isso em relação a outros temas relevantes do ano, como racismo, machismo e feminicídio, entre outros assuntos.
Neste contexto, para a maioria das pessoas que não sofrem com estes problemas na pele, fica difícil entender o que realmente acontece na sociedade. Essas pessoas vivem em um mundo paralelo e sem contato com a realidade simplesmente por não entenderem o que não faz parte – aparentemente, apenas – de seu contexto. Ou seja, para estas pessoas, é impossível entender o racismo e o machismo estrutural, por exemplo.
Pois bem, esse Les Misérables nos mostra que problemas que os brasileiros conhecem bem, como o racismo estrutural e a violência policial, não são “típicos” do Brasil, mas são vistos na França também. E em diversos outros países, evidentemente. Sempre há exceções às regras, claro. Mas quantos policiais escrotos existem por aí no estilo do valentão Chris (Alexis Manenti)? Ele destila preconceitos, arrogância e aquela sensação de um falso poder que o cargo lhe sugere.
Uma qualidade do roteiro que o diretor Ladj Ly escreveu junto com Giordano Gederlini e com Alexis Manenti é que o texto fala a linguagem real das pessoas e o tipo de narrativa lembra um pouco o de um documentário. A qualidade de um filme com estas características é que conhecemos um pouco da realidade sobre a qual a história, que não é baseada “em fatos reais”, nos mostra.
Esta produção conta, basicamente, dois lados da mesma moeda. Por uma parte, o trabalho policial que busca manter “a ordem” em uma cidade muito desigual – de uma forma que os cartões-postais não mostram. Por outra parte, diversos personagens desta cidade desigual que busca, cada um à sua maneira, sobreviver e encontrar o seu lugar ao sol – por menor que seja este espaço.
O diretor Ladj Ly faz um trabalho interessante de condução da história com uma narrativa linear que não explica o contexto dos personagens ou muito da sua história até o ponto de começo da história que envolve a euforia da Copa do Mundo ganha pela França e a chegada de um novo policial na corporação liderada por Chris. Claramente o brigadeiro Stéphane Ruiz (Damien Bonnard) faz as vezes do espectador, que é apresentado para a realidade que vamos acompanhar durante a produção.
Os recursos utilizados por Ladj Ly não são novos. O tom “documentarista” da história, assim como a escolha de um dos atores principais para representar os espectadores. Mas o diferencial deste filme é mostrar a realidade conturbada e cheia de conflitos de uma Paris que não é vista pelos turistas. Esse é o grande diferencial desta produção.
Mesmo focando a história em Paris e em sua grande mestiçagem, com diversos elementos fortes em cena, com destaque para o racismo e a xenofobia, presentes não apenas na França, mas na Alemanha, na Espanha e na maioria dos países europeus, esta produção guarda alguns elementos que podem ser entendidos em qualquer parte do mundo. Afinal, onde não existe desigualdade social, diferença de poder, preconceito, injustiça?
Sobre estas questões entendemos bem. Assim como quase todas as pessoas atentas ao que acontece ao seu redor em diversos países. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Algo que este filme nos faz pensar – assim como diversos outros fatos noticiados aqui e ali – é sobre qual é o papel, realmente, da polícia? Ela sempre está à serviço do cidadão comum? Ela sempre está à serviço da sociedade? O que acontece quando esta polícia “cede” a outros poderes e interesses? Certamente, quando isso acontece, ela serve ao aumento da injustiça.
Apesar de ser uma sociedade miscigenada, especialmente com o aumento da imigração, e apesar de defender um lema fundamental para a humanidade, como a Igualdade, a Liberdade e a Fraternidade, este filme mostra claramente como na França os pretos são tratados de forma diferente. O racismo é estrutural lá como é no Brasil. E um dos maiores símbolos disso é o policial Gwada (Djebril Zonga), policial parceiro do valentão e corrupto Chris.
Ele é preto, mas está em uma posição social que o torna “diferenciado”. Então ele ignora o racismo estrutural e serve ao sistema ao invés de tentar buscar mudanças naquela realidade desigual e injusta. Gwada é “protegido” pela sua posição social, por seu trabalho, então ele anula tudo o que conhece sobre o racismo estrutural. Em Les Miserábles ele acaba tendo um papel fundamental na injustiça praticada contra Issa (Issa Perica).
O filme é duro, mas potente. Impossível ficar impassível com o que vemos em cena. E o que fica mais forte, no final, é o impasse com o qual o diretor e roteirista decide terminar a produção. Depois de diversos absurdos, o coletivo se une e se rebela. Torcemos pelos mais fracos, pelos injustiçados. Mas o uso da violência para combater a violência só aumenta o problema.
O caos, a destruição e a morte de um ou dois injustos não vai solucionar o problema estrutural. Mas é compreensível quando as pessoas se rebelam e resolver dar um “basta” para os absurdos. Mas como resolver o problema? É preciso mudar a sociedade, com muitos programas de inclusão e mudar as pessoas. Não é possível que tenhamos uma polícia essencialmente branca em uma sociedade miscigenada. E isso deveria se repetir em todas as partes. Também deveria haver um controle rígido sobre abusos de poder e para combater a corrupção.
As diferentes esferas de governo deveriam servir à sociedade. E não apenas parte da sociedade, mas todos os cidadãos que fazem parte dela. Com um olhar especial para quem está na “parte inferior” da pirâmide e que deveria receber auxílio e apoio para ter mais oportunidades, em uma busca real por igualdade.
Além disso, precisamos ter uma discussão séria sobre os problemas estruturais das nossas sociedades. Em especial sobre racismo e machismo, duas chagas que provocam ainda mais violência, crimes e desigualdade. Gwada atira, parece, de forma acidental. Mas será mesmo? Será que ele não está tentando atingir o preconceito que ele mesmo não admite sentir? Seu parceiro, Chris, representa tudo que há de mais podre e corrupto na sociedade, além de representar um tipo de homem que se acha poderoso pela violência que pode causar.
Les Misérables é um filme potente, bem narrado e que acerta no tom quase documentarista. Mas senti falta da produção apresentar, além da problemática, um pouco mais de contexto. Especialmente dos principais personagens da produção. Qual é a relação de fundo entre eles, seus contextos e “backgrounds”? O filme terminar com um impasse difícil de resolver foi uma boa escolha.
NOTA
8,5.
OBS DE PÉ DE PÁGINA
Assisti esse filme há meses. Admito. Foi antes do segundo semestre de 2020 começar a acelerar novamente. Como estou dando aulas e, neste segundo semestre, também orientei três alunas com seus TCCs, acabei ficando sem tempo de escrever sobre Les Miserábles. Mas resolvi dar uma “acelerada” no texto sobre esta produção para fechar 2020 com um olhar ainda para o Oscar que aconteceu neste ano.
Admito também que, como assisti esta produção há meses, perdi um pouco das impressões que eu tive sobre o filme quando eu o assisti. Mas trouxe o essencial que eu achei sobre ele acima. Espero que sirva como um registro sobre esta produção importante e que chegou até a reta final do Oscar 2020 de Melhor Filme Internacional. A França, mais uma vez, mostrando a qualidade do seu cinema.
Muito boa a direção de Ladj Ly. O diretor e roteirista nascido em Mali tem 42 anos e estreou em longas de ficção com Les Miserábles. A primeira produção dirigida por ele foi o curta documentário 365 Jours à Clichy Montfermeil, lançado em 2006. Depois, Ly dirigiu mais dois curtas e um episódio de uma série de TV documentário antes de filmar Les Miserábles. Pela força desta produção, acho que ele é um nome interessante a ser acompanhado. Neste filme, o seu principal acerto é focar a narrativa nos personagens, acompanhando cada um deles bem de perto, além de juntar questões muito atuais na sua narrativa – como a dinâmica dos grupos sociais diversos de uma cidade multiétnica como Paris, além do uso de drones e das redes sociais pelos cidadãos e pela polícia.
Outro ponto de destaque desta produção é o roteiro escrito por Ly junto com Giordano Gederlini e Alexis Manenti. O roteiro acerta na narrativa linear, com diálogos de pessoas comuns e de como “se fala na rua”, assim como por abordar algumas questões fundamentais que envolvem a desigualdade social, diferentes formas de preconceito, opressão e violência, mas deixa a desejar na contextualização sobre os personagens principais desta história. Senti falta de saber mais sobre o contexto e a história de Chris, Gwada, Issa e Ruiz, principalmente.
Por outro lado, entendo a escolha dos roteiristas em abrir mão desta contextualização para desenvolver a segunda parte do filme, que foi a resposta de Issa e de seus amigos aos abusos policiais de Chris e seus colegas. O filme foi pensado em mostrar de forma nua e crua os abusos das autoridades para provocar revolta e, torcemos, alguma mudança.
Outro ponto de destaque desta produção foi a escolha dos atores. Damien Bonnard é sempre brilhante. Junto com ele, faz um bom trabalho Alexis Manenti e Djebril Zonga, que são os condutores de boa parte desta história. Por parte da sociedade reprimida e acuada, estão muito bem os garotos Issa Perica e Al-Hassan Ly – este último vive Buzz, o garoto que filma com um drone a violência policial.
Além deles, estão em papéis de coadjuvantes, mas importantes para mostrar a diversidade de interesses e de “esferas de poder” na sociedade os atores Steve Tientcheu, que interpreta Le Maire; Almamy Kanouté como Salah; Nizar Ben Fatma como La Pince; e Raymond Lopez como Zorro. Cada um deles é líder de um grupo que concorre por poder e pelas “mentes e corações” dos garotos que vemos crescendo em uma sociedade que tem muito o que resolver para seguir evoluindo.
Entre os aspectos técnicos desta produção, destaque para a edição de fotografia de Julien Poupard; para a ótima edição de Flora Volpelière; para o trabalho com o casting desenvolvido por Elise Vogel; para o trabalho dos 13 profissionais envolvidos com o departamento de filmagens e, com menor destaque, para a decoração de set de Karim Lagati; para os figurinos de Marine Galliano; epara a maquiagem de Sarah Pariset.
Les Miserábles estreou em maio de 2019 no Festival de Cinema de Cannes. Até setembro de 2020 o filme passou por outros 32 festivais e mostras de cinema em diversas partes do mundo. Ou seja, a produção fez uma grande carreira de sucesso e foi vista em diversas partes. Nesta trajetória, o filme colecionou 19 prêmios e foi indicado a outros 54, inclusive a indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional.
Entre os prêmios que recebeu, destaque para o de Melhor Filme na escolha da audiência e o de Melhor Filme pela associação de críticos gregos no Festival Internacional de Cinema de Atenas; para o Prêmio do Júri do Festival de Cannes, que Les Miserábles dividiu com o brasileiro Bacurau; para o prêmio de Melhor Filme Europeu no Prêmio Goya; e para os prêmios de Melhor Filme, Melhor Edição e Melhor Ator Promissor para Alexis Manenti nos Prêmios César, que é considerado o “Oscar” do cinema francês. Além desses prêmios, Ladj Ly recebeu o César do Público no Prêmio César.
Agora, uma rápida curiosidade sobre esta produção: o subúrbio de Paris onde a história deste filme se passa, Montfermeil, foi onde o diretor Ladj Ly cresceu. Ou seja, ele conhece como poucos aquela realidade.
Vivemos muitos momentos tristes em 2020. Entre outros, os assassinatos de pretos no Brasil e nos Estados Unidos, assim como em outros países, também por policiais brancos. Esperamos que Les Miserábles e que as manifestações vividas em 2020 contra o racismo provoquem reflexão e mudanças. Para que comecemos a ter, de fato, sociedades mais justas e igualitárias.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,6 para esta produção, enquanto que os críticos que tem os seus links divulgados no site Rotten Tomatoes dedicaram 165 críticas positivas e 22 críticas negativas para esta produção, o que lhe garante uma aprovação de 88% e uma nota média de 7,6. Por sua vez, o site Metacritic apresenta o “metascore” 78 para Les Miserábles, fruto de 33 críticas positivas e de duas medianas.
Me desculpem por ter atualizado o blog poucas vezes em 2020. Mas, como vocês bem sabem, este foi um ano complicado e desafiador. Espero que 2021 seja melhor. Não vejo a hora da vacina chegar a todas as partes e de ficarmos todos seguros, podendo nos despedir desse que foi o maior desafio dos últimos 100 anos. Espero em 2021 também publicar mais textos por aqui. Então os meus melhores desejos para o 2021 de todos vocês, que me acompanham aqui no blog. Até breve!
CONCLUSÃO
Um filme necessário pelas temáticas que ele aborda. Em um ano como o de 2020, no qual o tema do racismo estrutural esteve tão presente nos debates mundo afora, esta produção se torna ainda mais atual. Desta forma, ela revela como o problema realmente precisa ser tratado, combatido, porque vem se arrastando há anos sem que seja resolvido. Apesar de ter temas importantes, acho que Les Misérables carece um pouco de uma história mais aprofundada, contextualizada, que aprofundasse um pouco mais os personagens principais. Senti falta desta “humanidade” maior da produção, que considero importante, mas apenas mediana.