Um regime teocrático e autoritário que controla a comunicação e a imprensa no país e que deseja que apenas a sua versão dos fatos seja conhecida e disseminada. Isso funcionou por décadas, mas fica mais difícil de continuar sendo a única realidade do país quando a internet torna a “cortina de ferro” porosa. Especialmente os mais jovens, que com seus VPNs conseguem driblar a comunicação controlada, acabam tendo acesso a versões divergentes da realidade. Essa é uma parte do que Dane-ye Anjir-e Ma’abed nos conta.
A sacada do filme é nos mostrar o regime autoritário “por dentro” através da ótica de uma família relativamente comum do país. Um filme interessante, ainda que seja o mais fraco entre os que disputaram a categoria Melhor Filme Internacional do Oscar 2025.
A HISTÓRIA
O filme começa com um texto: “A figueira-sagrada tem um ciclo de vida incomum. As aves carregam as sementes, que caem sobre outras árvores. As raízes aéreas brotam e se espalham até o chão. Então os galhos envolvem e estrangulam a árvore hospedeira. Por fim, a figueira sagrada se torna independente”. Começa a narrativa. Oito balas são jogadas, uma a uma, sobre uma mesa. Uma pessoa pega essas balas e, em seguida, mesmo tendo uma caneta colocada ao lado de um papel sobre a mesa, essa pessoa pega sua própria caneta para assinar o papel. Em seguida, o papel e a caneta que estava sobre a mesa são recolhidos.
Lentamente, Iman (Missagh Zareh) caminha por um corredor com diversas figuras relevantes para o regime representadas em totens perfiladas de frente para a câmera. Ele está de terno, gravata e uma pasta, com o semblante fechado, já sabendo que sua nova posição na sociedade iraniana trará diversas mudanças em sua vida.
VOLTANDO À CRÍTICA
(SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte da crítica a seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Dane-ye Anjir-e Ma’abed): Esse é o típico filme que nos resgata um conceito muito discutido após a Segunda Guerra Mundial: como pessoas comuns acabam sendo a base da tirania. Ou como um sistema autoritário e opressor fomenta o que há de pior nas pessoas. Porque sim, estamos falando de um regime, de um país e de uma cultura muito diferentes da Alemanha nazista mas, ainda assim, dá para ver muitos elementos em comum entre uma realidade e a outra.
Claro, a Alemanha nazista de Hitler não era uma teocracia como o governo do Irã e não tinha regras extremamente rígidas sobre o comportamento e as vestimentas da mulher como a república islâmica. Mas o fato do regime nazista estar baseado no serviço de pessoas comuns que se deixaram moldar pelo regime cada vez mais opressor e assassino e que também emprestaram todo seu lado perverso para ajudar a moldar e a consolidar esse regime tem muito a ver com o que vemos na narrativa de Dane-ye Anjir-e Ma’abed.
No centro dessa história, temos a família encabeçada pelo casal Iman e Najmeh (Soheila Golestani). No início do filme, esse casal parece o típico casal classe média da sociedade iraniana. Claro que Najmeh é uma mulher caseira, que vive para “educar” as duas filhas do casal, Rezvan (Mahsa Rostami) e Sana (Setareh Maleki) e, principalmente, Najmeh vive seus dias para agradar o marido Iman.
Ela é o que costumeiramente chamamos de “mulher submissa”, aquela esposa que tem como principal função apoiar, incentivar e adular o maridão. Como segunda função, dar “limites” e orientações para as filhas, ensinando as meninas a serem “boas” jovens e mulheres. Essa apresentação inicial do filme é interessante porque vamos que Dane-ye Anjir-e Ma’abed vai se revelar uma produção diferente justamente por nos contar parte dos conceitos e da estrutura do regime iraniano justamente sob a ótica de “pessoas comuns” e de uma família.
Logo no início da produção, somos apresentados para um ponto de virada na vida daquela família. Iman finalmente consegue uma promoção no trabalho. Fica evidente como o maior sonho dele e de Najmeh, principalmente, é que Iman tenha uma ascensão social e que a família ganhe muito mais dinheiro, tenha uma casa maior (com três quartos, como pede Najmeh) e um status melhor na sociedade.
Sim, eles são ambiciosos. E o discurso de Najmeh parece fomentar ainda mais essa ambição em Iman. Mas conforme a história se desenvolve e, principalmente, na reta final da produção com direção e roteiro de Mohammad Rasoulof, descobrimos que há mais por trás daquela promoção e daquele semblante geralmente calmo de Iman. Mas falemos sobre isso um pouco adiante.
No início, fica claro que o sonho de Najmeh é um dia ver o marido tornando-se juiz. Por enquanto, ele foi promovido apenas ao cargo de investigador, Iman gosta de ressaltar, mas esse é o primeiro passo para ele ter uma ascensão importante nos “tribunais revolucionários”. Logo depois de receber sua promoção, Iman é celebrado pela esposa, que pede que o marido conte a “ótima” novidade para as filhas. Ela acha que as garotas devem saber mais sobre o trabalho do pai para se aproximarem mais dele e terem orgulho de Iman.
Quando Najmeh sugere que eles conversem sobre isso, Iman comenta que os “tribunais revolucionários” não são bem vistos… de fato, por uma parte importante da população, especialmente os mais jovens, o Tribunal Revolucionário Islâmico não é bem visto. Especialmente porque são pessoas como Iman que assinam penas de morte para “crimes” controversos como blasfêmia, incitação à violência e insulto ao Líder Supremo do país.
Não é difícil de imaginar que esse tribunal é usado com bastante frequência para o regime autoritário do Irã perseguir seus opositores e desafetos, não é mesmo? Algo que conhecemos bem com a Ditadura Militar que marcou de forma trágica e triste a história do Brasil. Mas, enfim, Iman acaba aceitando a ideia da esposa e contando para as filhas sobre a novidade de sua promoção e explicando para elas que essa ascensão dele dentro do regime irá exigir mudanças no comportamento da família. Afinal, as três mulheres que ele tem em casa devem ser “exemplares” e terem muito cuidado e atenção em tudo que fazem.
Mas é nesse cenário particular da família de Iman e Najmeh em que vemos o reflexo de mudanças importantes que acabam ocorrendo na sociedade iraniana. Não é exatamente uma novidade na história do país, mas certos fatos que ocorreram na vida real e que são espelhados nesse filme acabam provocando revoltas populares que tem uma repercussão importante na trajetória da família dos protagonistas.
Antes de entrarmos na razão das revoltas populares no país que aparecem em diversos momentos do filme e que são um fator importante para desestabilização na vida da família protagonista, vale comentar alguns pontos que Rasoulof introduz na trama de forma bem programada. Antes das ruas de Teerã, capital do país e cidade onde Najmeh, o marido e as duas filhas moram começar a efervescer, vemos como Rezvan e Sana apresentam algumas das características libertárias e “revolucionárias” das jovens que serão importantes para a trama.
As filhas do casal de protagonistas querem roupas, unhas e cabelos diferentes do que as normas do país preveem. Os códigos de vestimenta rígidos que o país impõe desde que o regime atual tomou o poder, após a revolução liderada por Khomeini em 1979, não permitem que as mulheres utilizem roupas que não sejam compridas ou largas e todas devem usar o hijab (geralmente um lenço que deve cobrir a cabeça e impedir que os cabelos das mulheres fiquem à mostra).
Então as cenas que mostram Rezvan e Sana conversando com uma costureira, sugerindo pequenas mudanças para deixar a roupa que elas encomendaram mais interessante, e a sequência em que as irmãs recebem em casa a visita da jovem Sadaf (Niousha Akhshi), aparentemente mais “moderna” e alternativa, e com quem as jovens passam um tempo divertido pintando as unhas e falando sobre como gostariam de mudar seus cabelos, com Najmeh acompanhando parte da visita tirando pelos da sobrancelha da filha mais velha, não são bobas ou dispensáveis. Claro, talvez poderiam ser um pouco mais curtas, mas elas existem justamente para mostrar que o casal Najmeh e Iman tem em casa duas representantes da juventude questionadora do Irã.
E essa galera jovem, especialmente as mulheres, serão importantes para uma parte fundamental da produção. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme ainda). O primeiro ponto de virada da trama ocorre quando somos apresentados a diversos protestos nas ruas de Teerã por causa da morte de Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos que morreu na prisão depois de ter sido capturada pela “polícia da moralidade”. Ela morreu em 2022, então presume-se que a trama desse filme se passe naqueles dias e meses após a morte de Mahsa.
A partir dos protestos que o filme retrata, percebemos claramente que Iman faz parte do sistema e que ele está disposto a fazer tudo que for necessário para manter sua carreira e sua evolução dentro dos “tribunais revolucionários”. Isso fica evidente também quando ele comenta com Najmeh que ele está sendo “obrigado” a assinar uma pena de morte, mesmo sem saber se a pessoa merece essa penalidade extrema, porque é isso que o promotor quer que ele faça… e ele relembra que o seu antecessor foi dispensado após não assinar uma pena de morte.
Até aquele ponto, Najmeh segue apoiando cegamente o marido. Tanto que ela justifica a decisão dele de assinar a pena de morte dizendo que não é responsabilidade dele essa resolução e sim de quem o está “pressionando” a fazer isso. Ora, essa foi a essência do nazismo e de outros absurdos cometidos em todos os regimes autoritários e de exceção do qual tivemos notícia na História. Pessoas que não assumem suas próprias responsabilidades e que sempre tem alguma justificativa para cometer os atos mais cruéis.
“Simplesmente eu estava cumprindo ordens”, muitos afirmaram no decorrer da História para tentar justificar seus atos abjetos. Ora, os mártires estão aí para comprovar que há sempre uma possibilidade de escolher pelo certo, mesmo que isso signifique a pessoa abrir mão da própria existência… mas ao menos a perda da vida não significa um crime capital e ser responsável por um assassinato disfarçado de sentença de pena de morte – chega a ser revoltante quando protagonista ainda tenta se eximir da culpa dizendo que aquela era “apenas” uma decisão de primeira instância e que a pessoa poderia, de fato, não ser morta, já que poderia recorrer. Sem comentários.
Mas toda essa questão já nos mostra o caráter do protagonista. Ele é um covarde que está preocupado apenas em sua própria ascensão e sucesso e fará tudo que for necessário para chegar onde ele quer. Ou seja, um homem típico em posição de poder no regime do Irã e em tantos outros governos abusivos espalhados mundo afora. E esse caráter deplorável de Iman só vai piorar conforme a trama se desenvolve. Ah, impossível não comentar como o lobo se veste de pele de cordeiro… porque Iman mantém uma fala tranquila e um rosto quase impassível por grande parte do filme – apenas na reta final da trama ele deixa essa máscara cair.
Mas antes de falarmos do final do filme, vamos voltar um pouco na trama. Existem dois pontos decisivos de ruptura no “status quo” daquela família: quando as revoltas populares ganham força e acabam batendo na porta do casal Iman e Najmeh através da amiga das filhas do casal, Sadaf, e quando a arma de Iman desaparece de dentro da casa deles.
(SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Primeiro, depois de um dia aparentemente normal, no qual Najmeh deixa Rezvan na faculdade e Sana na escola, as três mulheres da família são obrigadas a lidar com a violência que está acontecendo nas ruas do país quando Sadaf é mortalmente atingida no rosto. A sequência em que Najmeh ajuda a garota, mesmo não gostando dela, por ela representar uma “ameaça” para a ideia de “família perfeita” que a dona de casa quer imprimir para sua família, é bem dura de assistir. O diretor e roteirista Rasoulof não tem pressa em nos mostrar como Najmeh retira cada fragmento de bala que a jovem levou e que destruiu praticamente metade de seu rosto.
A intenção do diretor é clara naquela sequência: ele quer mostrar a violência contra uma jovem que era culpada apenas por discordar do governo do país de perto e sem pressa. Najmeh fica abalada com o que ela vê – e não tem como não se abalar frente a tanta violência. A partir dali, e muito por causa da pressão feita por suas filhas, Najmeh começa a, inicialmente bastante de leve, questionar um pouco sobre o que o regime do país estava fazendo. Afinal, realmente era necessário acabar com a vida das pessoas daquela forma? E como as filhas dela vivem repetindo, e se isso tivesse acontecido com uma delas?
Esse questionamento, bastante presente a partir dali, começa a fazer Najmeh pensar. Ainda assim, claro, ela segue a vida quase normalmente, ainda apoiando o marido e sendo submissa – essa avaliação feita especialmente pelas filhas dela. Rezvan e Sana, por sua vez, seguem tentando “saber a verdade” através da internet, percebendo que o que aparece na TV é manipulado.
Elas burlam as restrições feitas pelo regime totalitário usando VPN e acompanhando vídeos que mostram o que está acontecendo pelas ruas de fato – o filme explora bastante imagens reais do que aconteceu no Irã após a morte de Mahsa Amini. Eu diria que explora até demais… algumas sequências que vemos no filme poderiam ser resumidas, já que mostravam um pouco mais do mesmo, digamos assim. Ainda que se manifeste menos, por ser mais jovem que a irmã, Sana parece, claramente, ser a pessoa da família mais revoltada com tudo que está acontecendo – ainda que ela mantenha a sua revolta bem escondida, simbolizando bem o movimento de muitas jovens naquele momento. E ela não entende como a mãe não reage e se revolta.
Chocada com o que viu acontecer com Sadaf, preocupada com as filhas e pressionada por elas, Najmeh acaba fazendo um gesto corajoso de pedir ajuda para uma amiga que atua no local para o qual as pessoas detidas pela “polícia da moralidade” são levadas. O problema é que essa amiga da família, Fatemeh (Amineh Mazrouie Arani), é esposa de Alireza (Mohammad Kamal Alavi), uma referência em interrogar pessoas e torturá-las para conseguir as respostas que o “regime” precisa.
Essa “ousadia” de Najmeh poderia não ter maiores consequências, caso o segundo fato desestabilizador não ocorresse. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Quando a arma de Iman desaparece, ele é pressionado, especialmente por seu chefe imediato, Ghaderi (Reza Akhlaghirad), a achar a culpada – coloco no feminino porque ele e Iman acabam concluindo que apenas a esposa ou uma das filhas de Iman podem ter sido responsáveis pelo furto. Ghaderi vai pouco a pouco estimulando Iman a descobrir a verdade, custe o que custar.
(SPOILER – não leia… bem, você já sabe). E é desta forma que primeiro Iman concorda com a esposa e as duas filhas serem submetidas a interrogatórios angustiantes na mão de Alireza e, depois, nele próprio buscar a verdade através da tortura psicológica das pessoas de sua família. Aterrorizante. Revoltante. Primeiro, os interrogatórios que Iman faz com a esposa e as filhas, revelando sua verdadeira face de homem violento e repressor, são angustiantes. Mas, depois, ele leva a tensão a um outro nível quando prende Najmeh e Rezvan em celas dentro da casa isolada para a qual ele leva a família após ter seus dados pessoais, inclusive seu endereço, divulgados na internet.
Esse vazamento de informações é a desculpa que Iman precisava para levar a pressão contra a própria família ao limite. Para ele o que interessa é “descobrir a verdade” e, ao encontrar uma culpada, preservar seu status e sua carreira. Bem típico dos homens que assumem posições de poder em regimes que se alimentam desse perfil de gente. A reta final do filme, especialmente quando a família faz essa viagem para a casa isolada na qual algumas verdades vão vir à tona, é o momento alto da produção. A dinâmica da trama acaba sendo mais interessante naquele ponto. Ainda assim, o final deixa um pouco a desejar.
Vejamos o porquê. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Depois que Rezvan, sabendo a verdade sobre o sumiço da arma do pai, resolve assumir a culpa, mesmo sendo inocente, para proteger a irmã, é levada à força para a parte de fora da casa pelo pai para mostrar onde a arma tinha sido deixada e Sana aproveita aquele momento para escapar, Iman radicaliza levando a esposa e a filha mais velha para as celas. Ok. Quando Sana tem sucesso na armadilha que faz para o pai e consegue libertar as outras mulheres da família, elas resolvem fugir à pé.
Convenhamos que seria bem improvável elas terem sucesso nessa tentativa. Porque elas estão em um local isolado… mas, aparentemente, a região onde elas estão tem diversas possibilidades de esconderijo. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Apesar disso, o diretor e roteirista nos apresenta um final fácil, no qual rapidamente Iman consegue localizar a esposa e as duas filhas… até parece que ele colocou um rastreador nelas para ir justamente no local em que elas se escondem. Achei um pouco forçado, mas essa não é a pior parte.
Ficamos um bom tempo na reta final da produção literalmente assistindo a uma perseguição quase pueril. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Literalmente a corrida de Iman atrás das mulheres da família parece uma caçada no estilo gato e rato. Elas correm pra cá, ele corre pra lá, e ficamos nesse jogo idiota por um bom tempo. Claro que aquela perseguição é simbólica… três mulheres desesperadas – e que inicialmente tem a infeliz ideia de se separarem – correndo de um homem. Aquela sequência longa demais pode ter sido a forma do diretor e roteirista nos mostrar o desconforto das mulheres iranianas perseguidas por um regime autoritário e machista, na essência. Contrário a qualquer ideia de liberdade para as mulheres.
Ok, até entendo esse propósito do diretor. Mas ainda assim a intenção não torna o final melhor. Ficamos um bom tempo naquela perseguição cansativa e um tanto pueril. E mesmo quando o final parece nos dizer que “se as mulheres se unirem elas conseguem acabar com a opressão”, não é exatamente isso que vemos em cena. Ok, Najmeh e as filhas estão juntas na sequência final, mas a esposa de Iman está subjugada por ele – chega a arrepiar e ser revoltante a sequência em que ele puxa ela pelos cabelos, algo bem típico dos homens violentos que sentem prazer em violentar as mulheres – e Rezvan faz pouco mais do que gritar e ficar ao lado da mãe pouco antes de Sana atirar.
E daí temos um final simples… a ameaça que desaparece e que deixa fora da terra dois símbolos do regime autoritário que ele simboliza: o anel que revela seu status social e a arma que representa a violência e a ameaça constante contra as mulheres e quem mais resista sobre algo que o governo determine. Honestamente, eu esperava um pouco mais do final dessa produção. Achei que o diretor e roteirista poderia ter desenvolvido o final com um pouco mais de cuidado, especialmente porque ele gastou momentos preciosos da produção com sequências menos necessárias e/ou quase repetitivas.
Um filme com um propósito muito claro, de nos explicar como um sistema opressivo é construído e buscando “humanizar” o que as críticas ao governo do Irã, especialmente das culturas ocidentais, buscam fazer. Mas, enquanto narrativa e filme, deixa um pouco a desejar. Poderia ser melhor.
NOTA
7,8.
OBS DE PÁGINA
Cheguei até Dane-ye Anjir-e Ma’abed porque o filme foi indicado ao Oscar 2025 na categoria Melhor Filme Internacional. Se não fosse por isso, acho que dificilmente eu chegaria até essa produção. Francamente, dos filmes que eu assisti até aqui e que concorreram na mesma categoria, achei esse o pior. Entendo as boas intenções do realizador desse filme e acho que a produção tem qualidades – especialmente o elenco achei muito bom -, mas o roteiro, em especial, deixa a desejar. Especialmente no final.
A escolha do diretor e roteirista Mohammad de nos contar uma história linear a partir da perspectiva de uma família iraniana é confortável. Muitos filmes já fizeram isso. A “sacada” de mostrar um regime totalitário a partir da perspectiva de uma família que tinha uma relação próxima à “máquina do Estado” não é exatamente nova – o filme The Zone of Interest (com crítica neste link) fez isso anteriormente e com uma qualidade muito superior.
Também não é uma novidade uma produção que aborda fatos reais trazer vídeos que ajudam a nos remeter a esses fatos. Diversas produções já fizeram isso antes. Então, nesse sentido, Dane-ye Anjir-e Ma’abed não nos apresenta ideias muito novas… talvez a maior “novidade” da produção esteja no fato do realizador trazer esses elementos de crítica e de análise da realidade iraniana. Um regime fechado, nada aberto a críticas, com uma certa limitação narrativa, acaba tendo aqui uma produção com certa coragem para debruçar-se em uma das estruturas do poder do Irã. Essa é a novidade da produção.
Mas, descontada esta questão, que é estritamente polícia, refletindo sobre Dane-ye Anjir-e Ma’abed apenas enquanto uma produção cinematográfica, realmente o filme deixa a desejar. Especialmente o roteiro achei previsível demais e com uma narrativa que ganharia muitos pontos se a edição tivesse nos poupado de diversos recursos repetitivos e de um desenvolvimento mais lento que o desejado – e sem que isso ajude a história, diferente do que acontece em outras produções. Porque não ter uma narrativa dinâmica não é um problema, desde que essa escolha faça sentido e ajude o filme. Não é o caso.
Então, a meu ver, o roteiro de Mohammad Rasoulof é o ponto fraco de Dane-ye Anjir-e Ma’abed. O segundo defeito do filme, pelas razões que acabo de comentar, é a edição de Andrew Bird. Novamente, diversas sequências poderiam ter sido resumidas e algumas cenas de protestos poderiam ter sido suprimidas, evitando repetições, o que poderia ajudar o filme a ser mais dinâmico e sem comprometer a história.
Fora estes dois fatores, acho que Mohammad Rasoulof faz um bom trabalho na direção, especialmente pela forma como ele valoriza o trabalho dos atores. Eles sim, são os grandes responsáveis pela potência dessa produção. Como a história gira, essencialmente, ao redor de um núcleo familiar, são os quatro atores que dão vida para os personagens centrais da trama que merecem nosso aplauso.
Muito bom o trabalho dos atores Missagh Zareh como Iman – ele tem um desenvolvimento muito interessante do personagem, nos fazendo odiá-lo no momento certo, escondendo algumas das suas facetas muito bem pelo tempo necessário, em um trabalho muito maduro desse ator experiente; Soheila Golestani como Najmeh – ela tem uma interpretação bastante dinâmica, mostrando diversas facetas de uma mulher iraniana adulta que se acostumou com determinadas regras e com um estilo de vida bem específico até que se vê jogada em uma realidade até então impensável para ela; Mahsa Rostami como Rezvan, a filha mais velha do casal Iman e Najmeh e que está muito assustada com tudo que está acontecendo, especialmente com a forma como a violência causada pela repressão em seu país está se aproximando dela, de sua família e de outras pessoas muito próximas; e Setareh Maleki como Sana, a filha mais jovem do casal e que revela em pequenos gestos e questionamentos como ela faz parte de uma geração que contesta muito mais e que não pretende se calar mesmo frente à repressão.
Esses quatro atores valem o filme – ao menos se você não tiver mais nada de interessante para ver nesse momento e, como eu, você acha importante assistir à lista completa de produções que foram indicadas ao Oscar de Melhor Filme Internacional. Claro, sempre é bacana conhecer o trabalho de ótimos atores, e os quatro nomes que eu citei no parágrafo anterior merecem o ingresso e o seu tempo. Ainda que a história em si deixe a desejar – apesar das boas intenções do seu realizador.
Vi em alguns locais alguns críticos comentando que Dane-ye Anjir-e Ma’abed é extremamente envolvente, que não dá para ficar um minuto sem olhar para a tela, etc… honestamente, não achei isso tudo não. Em vários momentos dá para perder um pouco o foco da história, porque ela realmente não apresenta nada de tão importante assim o tempo todo, e mesmo a narrativa na reta final, quando a tensão aumenta, digamos que não é assim tão, tão surpreendente… o protagonista, que se revela de forma definitiva na reta final do filme, já tinha demonstrado alguns sinais de seu caráter antes… então mesmo que eles se revele muito no final, não é algo que realmente não tivesse um lastro antes.
Além dos atores citados, alguns coadjuvantes fazem um bom trabalho quando aparecem em cena. Nesse sentido, entre os coadjuvantes, o destaque vai para Niousha Akhshi, que interpreta Sadaf, a única amiga de Rezvan na faculdade e uma das vítimas do sistema repressivo do governo. O que acontece com ela muda bastante a dinâmica da família que é o núcleo central da trama – e ela simboliza diversas outras vítimas que acabaram provocando mudanças em muitas famílias do Irã, de fato.
Além dela, vale citar outros coadjuvantes. Eles não tem interpretações que perdurem muito tempo na nossa memória, porque fazem um trabalho apenas correto, nada de muito destaque, mas eles tem personagens que tem relevância na narrativa. São eles: Reza Akhlaghirad como Ghaderi, o chefe de Iman e uma pessoa importante que fica lembrando o protagonista sobre que papel a estrutura do Estado espera que ele desempenhe; Shiva Ordooie como Fatemeh, uma amiga da família que é procurada por Najmeh quando ela procura saber sobre como está Sadaf; e Mohammad Kamal Alavi como Alireza, um dos homens responsáveis por interrogatórios que são verdadeiras sessões de tortura no regime iraniano.
Entre os aspectos técnicos da produção, vale citar a direção de fotografia de Pooyan Aghababaei; a trilha sonora bem pontual e pouco presente de Karzan Mahmood; os figurinos de Nazanin Tavassoli e a maquiagem de Mahmoud Dehghani e Bahare Minaei.
Tive que fazer um bocado de buscas para entender um pouco mais sobre o regime político no Islã e sua complicadinha organização social. Para quem sentiu falta de entender um pouco mais sobre o assunto, tenho algumas recomendações de leituras. Para começar, esse texto da Wikipédia que explica um pouco sobre o Tribunal Revolucionário Islâmico. Sobre o regime político no Irã e como o país se organiza entre suas diferentes esferas de decisão e de poder, recomendo esse texto da Agência Brasil, assim como esse conteúdo produzido pela Deutsche Welle e publicado pelo G1. Como leitura complementar sobre o governo do Irã, recomendo esse conteúdo da Revista Exame.
Fiquei curiosa para saber um pouco mais sobre o Líder Supremo do Irã, Ali Khamenei, uma figura central na organização política e na forma como o país funciona desde o final dos anos 1970. Achei esse conteúdo da Britannica, com tradução do Google, muito interessante e esclarecedor.
Sobre o que aconteceu no Irã após a morte de Mahsa Amini e dos protestos que vemos em Dane-ye Anjir-e Ma’abed, encontrei dois conteúdos que considero bem relevantes como introdução ao tema. Primeiro, recomendo esse texto da BBC News Brasil de 2022 – mesmo ano em que os fatos ocorreram. Depois, achei muito bons esse conteúdo da Deutsche Welle, que fala sobre como está o Irã um ano após a morte de Mahsa Amini; e esse texto da BBC News Brasil de 2024 que apresenta a história de algumas mulheres que seguem resistindo às regras de vestimenta e comportamento do regime totalitário.
Quero destacar uma informação trazida pela reportagem da Deutsche Welle de 2023: “de acordo com organizações independentes de direitos humanos, entre 16 de setembro (de 2022) e o fim de janeiro de 2023, as forças de segurança no Irã mataram pelo menos 527 manifestantes durante os protestos, incluindo 17 menores”. Ou seja, o que vemos em Dane-ye Anjir-e Ma’abed ainda é leve perto do que foi (e possivelmente ainda é) a realidade do Irã. E, infelizmente, a “solução mágica” que temos para o terror no fim do filme não resolveria nada, de fato, por lá.
Esse é o primeiro filme que eu vejo de Mohammad Rasoulof. Fiquei curiosa sobre ele. Aos 52 anos de idade, o realizador iraniano apresenta 10 filmes no currículo como diretor e 12 produções como roteirista. Na direção, ele estreou em 2002 com o longa Gagooman. Até hoje, segundo o site IMDb, ele só dirigiu a longas – primeiro diretor que eu vejo que nunca fez um curta ou uma série de TV. Antes de fazer Dane-ye Anjir-e Ma’abed, ele ficou conhecido pelos filmes Jazireh Ahani (ou Iron Island, de 2005) e, principalmente, por Sheytan Vojood Nadarad (ou There Is no Evil, de 2020), esse último vencedor de três prêmios no Festival Internacional de Cinema de Berlim, incluindo o Urso de Ouro.
Fiquei intrigada em ver um diretor iraniano com um filme que foca totalmente na realidade do Irã concorrendo com sua produção pela Alemanha. Mas então eu fui atrás das notas de produção de Dane-ye Anjir-e Ma’abed e entendi um pouco mais sobre os bastidores desse filme – e, ao saber disso, para mim fica ainda mais evidente que essa produção chegou aonde ela chegou, especialmente em relação ao Oscar, por causa desse contexto e nem tanto por causa do filme em si.
Vejam que interessante. O diretor e roteirista Mohammad Rasoulof tinha se programado para participar como jurado no Festival de Cinema de Cannes de 2023 mas, antes disso, em julho de 2022, ele foi preso por ter criticado a repressão que o governo do Irã fez contra manifestantes da cidade de Abadan. Eles estavam revoltados contra o desabamento de um prédio na cidade, que fica no sudoeste do Irã, e Rasoulof se posicionou contra as ações do governo que reprimiram as pessoas.
No dia 8 de maio de 2024, o advogado de Rasoulof divulgou que o diretor e roteirista havia sido condenado a 8 anos de prisão, assim como a açoites, multa e confisco de seus bens. Quatro dias depois, Rasoulof divulgou que conseguiu fugir do Irã e que estava refugiado em um local não divulgado da Europa. No dia 24 de maio de 2024 ele compareceu à estreia de Dane-ye Anjir-e Ma’abed em Cannes. Ou seja, ele escreveu esse filme e o produziu enquanto aguardava por seu julgamento no Irã.
Segundo as notas de produção, a escolha do elenco de Dane-ye Anjir-e Ma’abed foi um desafio à parte, porque Rasoulof deveria trabalhar com um número reduzido de profissionais, para não despertar suspeitas do regime iraniano, já que o filme foi feito todo em segredo. Por isso, além do talento artístico do elenco, Rasoulof se preocupou com a posição política dos atores. Ainda segundo as notas de produção, Dane-ye Anjir-e Ma’abed foi filmado quase inteiramente em segredo e contou com recursos financeiros de diversas empresas da França e da Alemanha.
Quase ninguém sabia da existência de Dane-ye Anjir-e Ma’abed até que o filme fosse anunciado como parte da programação do Festival de Cannes. Logo após a produção ser divulgada, o regime iraniano interrogou todos os membros do elenco e da equipe envolvida na produção, proibindo-os de sair do Irã e pressionando o Festival de Cannes para que o filme fosse retirado da programação. As atrizes Mahsa Rostami e Setareh Maleki conseguiram escapar para participar do tapete vermelho em Cannes, mas Soheila Golestani e Missagh Zareh não conseguiram – por isso o diretor Rasoulof mostrou uma foto deles no tapete vermelho do festival.
(SPOILER – não leia se você não viu o filme ainda). Vale citar uma outra curiosidade sobre a produção. Quando os protestos relacionados com a morte de Mahsa Amini começaram, no final de 2022, Mohammad Rasoulof estava preso. Então ele acompanhou parte do movimento da prisão, juntamente com outros presos políticos. Naquele momento, o diretor e roteirista ficou impressionado com os comentários de um guarda da prisão, que disse que odiava o seu trabalho e que não o aguentava mais.
Quando a sentença de Rasoulof foi confirmada pelo tribunal de apelação, o diretor teve duas horas para decidir se permaneceria no país ou se fugiria do Irã. Ele preferiu fugir, deixando o filme para trás. Depois, as filmagens de Dane-ye Anjir-e Ma’abed foram contrabandeadas do Irã para Hamburgo, na Alemanha, onde o filme foi editado por Andrew Bird, com quem Rasoulof já havia trabalhado.
Dane-ye Anjir-e Ma’abed é uma coprodução da Alemanha com a França e o Irã. O idioma falado durante a produção é o persa. Dane-ye Anjir-e Ma’abed foi totalmente rodado em Teerã.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,6 para Dane-ye Anjir-e Ma’abed, enquanto que os críticos que tem seus textos linkados no site Rotten Tomatoes dedicaram 153 críticas positivas e apenas cinco negativas para o filme, o que garante para Dane-ye Anjir-e Ma’abed um nível de aprovação de 97%. O site Metacritic apresenta um “metascore” de 84 para esta produção, fruto de 28 críticas positivas e de duas medianas, além do selo “Metacritic must-see”.
De acordo com o site Box Office Mojo, Dane-ye Anjir-e Ma’abed arrecadou US$ 860,1 mil nas bilheterias dos Estados Unidos. Nos mercados em que o filme estreou, em diversos países do mundo, ele acumulou US$ 6,6 milhões – sendo que os cinemas na França foram os grandes responsáveis por esse sucesso, já que naquele mercado o filme conseguiu US$ 4 milhões nas bilheterias.
Opa, eu já ia me esquecendo de comentar isso, mas além de ter sido indicado ao Oscar 2025 na categoria Melhor Filme Internacional, Dane-ye Anjir-e Ma’abed concorreu ao Globo de Ouro 2025 na categoria Melhor Filme – Língua Não-Inglesa e ganhou 36 prêmios, além de ter sido indicado a outros 69 prêmios em diversos festivais e eventos de cinema. Entre os prêmios que recebeu, destaque para cinco prêmios no Festival de Cinema de Cannes, incluindo um Prêmio Especial do Júri para Mohammad Rasoulof, e para o Prêmio da Audiência de Melhor Filme Internacional no Festival de Cinema de Sydney.
CONCLUSÃO
Uma produção bem-intencionada e com diversos acertos, mas que também se revela um bocado falha em outros aspectos. Para começar, Dane-ye Anjir-e Ma’abed é um pouco longo demais, nem tanto pela duração do filme em si, mas pela narrativa que acaba sendo um pouco arrastada e redundante em alguns momentos. A mesma ideia e as mesmas sensações no espectador poderiam ser repassadas com um pouco mais de agilidade e menos “enrolação”. Além disso, o filme parece um pouco pueril ao nos vender a ideia de que uma “solução” isolada, para uma família, seria o suficiente para resolver um contexto bem mais complexo.
O ponto alto desta produção é ela tentar nos apresentar uma história particular para nos desvelar um pouco do todo de um país teocrático e com uma estrutura tão diferente do que estamos acostumados. Pena que a solução não é tão simples e, infelizmente, a máquina daquele Estado se mostra muito mais pesada e mais arraigada do que os sonhadores gostariam. Para mim, até o momento, o filme mais “fraco” da temporada do Oscar 2025 – me surpreende até ele ter ficado entre os cinco finalistas na categoria Melhor Filme Internacional. Talvez ele chegou lá por sua “mensagem libertária” e política. Porque, enquanto peça de cinema, ele deixa a desejar.
2 replies on “Dane-ye Anjir-e Ma’abed – The Seed of the Sacred Fig – A Semente do Fruto Sagrado”
[…] The Seed of the Sacred Fig (Alemanha) […]
CurtirCurtir
[…] – o que é possível fazer em produções como Dane-ye Anjir-e Ma’abed (com crítica neste link), recentemente comentado aqui no blog -, ou ela teria que abrir mão de contextualizar melhor cada […]
CurtirCurtir