Em meio ao atual conflito entre israelenses e palestinos na faixa de Gaza, assisti ao representante escolhido pelo Líbano para representar o país na disputa pelo próximo Oscar. Sempre acho interessante assistir ao que cada país apresenta para o “mundial do cinema” porque, claro está, as escolhas podem falar muito sobre o que as nações querem valorizar enquanto discursos para o mundo. Sous Les Bombes (Under the Bombs) procura mostrar o “lado dos inocentes” mortos em ataques como o que Israel está promovendo agora, neste minuto, nos últimos dias de um conturbado 2008. O filme é comovente e impressionante em muitos pontos – especialmente para pessoas que, como eu, nunca pisaram no Líbano ou em algum daqueles países em permanente risco de guerras e ataques com bombas. Ainda assim, ele perde em força para outros títulos já comentados aqui – especialmente porque seu roteiro acaba sendo “simples” demais. Ainda que eu, admito, percebi os motivos para isto ao buscar mais informações sobre o filme.
A HISTÓRIA: Zeina (Nada Abou Farhat) literalmente caminha contra a corrente. Depois de 33 dias de ataques ininterruptos por parte dos israelitas nos territórios do Líbano, as pessoas que sobreviveram querem sair do país – especialmente das zonas mais atacadas, como o Sul libanês. Mas ela quer ir justamente para lá, atrás de uma irmã e do filho, Tarim. Depois de procurar entre vários taxistas algum que aceitasse viajar para o Sul do país, ela encontra a Tony (Georges Khabbaz), um taxista que nasceu no Sul e que conhece todos os caminhos para que Zeina chegue ao seu destino. Nesta “road trip” eles vão conhecendo histórias dramáticas pelo caminho ao mesmo tempo em que revelam, cada um a seu tempo, seus próprios dramas e histórias de vida.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Sous Les Bombes): Como qualquer filme que busca um tom de documentário ou o bom e velho estilo “baseado em uma história real”, Sous Les Bombes deixa claro, logo nos primeiros segundos, o local e o tempo narrativo, além de tornar evidente o que ele deseja. Não existe espaço para a dúvida, do início ao fim da história, de que ela é uma crítica aos ataques israelenses na região. E para ser franca, eles têm razão. Israel, há muito tempo já, abusa do poder e da força militar que possui – e grande culpa disto é dos Estados Unidos, país que mais apoiou e continua apoiando a causa israelense e o seu armamento.
Sem entrar contudo em muitas discussões de mérito, vamos falar do filme… Ele é claramente partidário. Ainda que, no final, algumas linhas comentem que Sous Les Bombes é dedicado a todos os inocentes mortos em conflitos como aquele, em nenhum momento existe espaço para vermos os inocentes que morrem na outra fronteira, no outro lado da guerra. Sim, porque por mais que Israel erre na dose – e continua errando, agora nos ataques à faixa de Gaza -, muitos civis israelenses sem culpa e isentos de responsabilidade nos conflitos também morrem. Mas Sous Les Bombes não tem espaço para este tipo de questionamento ou reflexão.
O filme realmente mostra um drama humano e, com ele, o de milhares de pessoas. A busca de Zeina por seu filho, percorrendo boa parte do país – especialmente o Sul do Líbano – reflete a procura de tantas mães, pais e filhos por seus entes queridos desaparecidos. Utilizando um bocado de tom “documental”, o diretor Philippe Aractingi foca com sua lente mulheres de diferentes idades que contam seus dramas, suas dores. Aractingi escreveu o roteiro do filme ao lado de Michel Léviant – ambos “meio” franceses. O interessante é que o tom de documentário aparece claramente durante todo o filme, ainda que ele seja um pouco “falso”. Explico: a história principal é toda fictícia, mas tudo o demais que aparece em cena é verdadeiro. Aquelas pessoas comuns realmente “interpretam” a si mesmas – algo que fui descobrir só depois, ao ler as notas de produção.
As imagens de destruição do país são, realmente, impressionantes. E, eu diria, um dos dois pontos fortes do filme. Sous Les Bombes teve algumas cenas filmadas durante os ataques israelenses ao Líbano, em 2006 – ainda que a maior parte do filme foi gravado depois – o que garantiu o registro de imagens tão incríveis e garantiram o impacto que apenas um documentário poderia provocar. A direção de fotografia é de responsabilidade de Nidal Abdel Khalek. O outro ponto forte do filme são as interpretações dos atores principais – e digo isso sem desmerecer todos os demais que aparecem contando “suas histórias”. Realmente Nada Abou Farhat e Georges Khabbaz estão afinadíssimos e convencem, ao mesmo tempo que emocionam sem exageros, em seus papéis.
Curioso que o filme bate na tecla de que a religião e a política não interessam. Pelo menos é esse o discurso de Zeina, que saiu de Dubai para encontrar o filho e a irmã e que não tem espaço em sua mente ou coração para outro desejo que não o de encontrá-los. Neste ponto o filme realmente busca o caminho humanitário, mostrando que a perda de pessoas tão próximas e queridas não tem paralelo, não podem ser comparados ou medidos com nada mais – nem religião, nem política, nem poder. Ainda assim, não escapa do filme um ou outro discurso neste sentido, seja de religião ou de política. Esses discursos estão presentes no “consolo” que outras mulheres dão a Zeina – com forte carga religiosa – e na conversa dos amigos de Tony com ele antes que o casal de “cúmplices” da “road trip” saiam rumo ao monastério e o fim da busca daquela mãe.
Aparentemente o diretor e roteirista quer deixar claro a sua postura de “nem todos os palestinos são do Hizbollah“, terroristas ou seguidores convictos da religião muçulmana. Certo que muitos que moram por ali são católicos ou seguem outras crenças, mas e os que seguem a religião de Maomé e acreditam que o que Israel fez contra eles foi injusto? Eles merecem ser alvos de ataques absurdos que podem matar qualquer pessoa, seja criança ou velho? Não, acho que não. Serei franca: não conheço a realidade mostrada pelo filme, mas a impressão que eu tenho é que a maioria das pessoas que seguem aqueles preceitos que movem o Hizbollah, por exemplo, apenas acreditam piamente naquilo, mas jamais empunhariam um fuzil para matar um israelense inocente. Talvez eu esteja sendo “inocente” neste julgamento, mas duvido que a maior parte das populações de um lado ou outro da guerra realmente desejam matar uns aos outros. Para mim, seja o exército de Israel ou os extremistas palestinos, qualquer lado que provoca o conflito na prática é uma minoria. O problema é que justamente esta minoria define a vida – e a morte – do restante da população. E o ódio apenas cresce com tudo isso.
Independente do quanto o filme pode mostrar apenas um lado da história, não deixa de ser uma produção corajosa. Especialmente porque mostra cenas de uma destruição pouco vista – ou divulgada – mundo afora. Apenas por isto, por tornar público retratos de uma realidade e de uma cultura pouco difundida – ou pior, difundida de maneira equivocada – o filme merece ser visto. Só não espere uma história cheia de “reviravoltas”… Sous Les Bombes está mais para um documentário sobre os absurdos da guerra do que para uma história bem escrita sobre pessoas que passam por ela. Ainda assim, (SPOILER – não leia se você ainda não assistiu ao filme), gostei do fato de Sous Les Bombes evitar o “final feliz”. Afinal, é muito mais comum naquela realidade uma história trágica do que uma que poderia figurar em uma novela da Globo.
NOTA: 8,8.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Algo curioso que o filme trata é sobre a interferência da imprensa mundial em conflitos como este. Ainda que nenhum tema secundário seja tratado por muito tempo – ou força – nesta produção, este tópico da imprensa “afetando” a vida das pessoas comuns ganha um certo destaque. Para ser franca, não sei até que ponto os jornalistas que se “intrometem” estão errados ou certos. Vejamos: se eles encontram um órfão que se diz sozinho no mundo, por que eles não podem levá-lo para uma parte mais segura? O problema é que nem sempre estes meninos e meninas estão realmente sozinhos no mundo… e é pior ainda quando os jornalistas (e astros do cinema) não apenas levam estas crianças para outra parte dentro do próprio país, mas tiram eles de lá para levá-los para a “civilização”. Aí sim eu vejo um problema grave. Afinal, eles acabam não apenas perdendo familiares mas, também, suas raízes, tradições. Ninguém pergunta – e acho que eles, na verdade, nem tem a maturidade para escolher – para onde eles querem ir. Realmente é um assunto difícil de trabalhar. E achei bacana que o filme coloca ele na roda.
Procurando detalhes do filme, descobri que a vila onde a irmã e o filho de Zeina estavam se chama Kherbet Selem e fica realmente no Sul do Líbano. Achei curioso também que o filme mostra como as pessoas aparentemente impossibilitadas de entrar no país conseguem dar um “jeitinho” – como a mãe em busca de seu filho, que entra no Líbano via Turquia. As pessoas que estão desesperadas acabam encontrando os “furos” na fronteira necessários. Não fica claro no filme, mas Zeina chega no porto de Beirute justamente no dia do cessar-fogo israelense (que não dura muito tempo, diga-se).
Não dei muita bola para estas informações enquanto assistia ao filme, mas a verdade é que Tony tem uma história curiosa: católico, ele vive em Beirute e tem um irmão preso em Israel. Claro que conforme o tempo passa fica claro, no filme, que a viagem dele para o Sul também é motivada por razões pessoais – ele não está dando apenas uma de bom samaritano. Além do interesse na bela mulher que lhe está pagando a corrida de táxi, ele busca retomar alguns contatos que tem em suas origens. Como em qualquer “road movie”, os dois personagens viajam ao encontro de seus passados e na busca pelo que querem de suas vidas no futuro. Também não tinha reparado – só percebi isso ao ler as notas de produção do filme – que Zeina é uma xiita. Achei que esta “rivalidade” entre a xiita e o católico não fica muito clara – e nem é explorada – no filme. Mas o desejo do diretor em unir estes universos tão opostos na história de uma maneira que funciona com o tempo, ou seja, mostrando que realidades tão diferentes podem conviver com respeito e afeto através do conhecimento um do outro, é muito interessante. Ponto para ele.
O diretor Philippe Aractingi é de origem franco-libanesa. Nascido em Beirute em 1964, ele carrega na bagagem mais de 40 filmes – um diretor experiente, especialmente por filmar reportagens e documentários. Antes de Sous Les Bombes ele filmou para o cinema Bosta, em 2005, um filme que marcou a sua volta ao Líbano (mais precisamente Beirute) depois de morar por 12 anos na França. Interessante que Bosta foi selecionado pelo Líbano para representar o país na corrida pelo Oscar de 2006 – mas o filme não chegou muito longe.
Outro tema que o fime trata, ainda que de maneira “an passant”, é a atração e ao mesmo tempo a repulsa das pessoas em saírem de sua terra. Tony gostaria de ir para a Alemanha e, volta e meia, escuta uma velha fita-cassete com lições no idioma. Só que ele sabe, no fundo, que jamais poderá ir para lá. Enquanto isso, Zeina se arrepende de ter deixado o país, o Líbano, e lamenta que tanta gente se vê obrigada a deixar o seu próprio país. São duas realidades opostas retratadas em Sous Les Bombes – ambas devem refletir o sentimento do próprio diretor em relação ao seu país e à França.
Michel Léviant, que escreve o roteiro ao lado de Aractingi, é norte-americano. Ele nasceu nos Estados Unidos em 1947, mas se sente meio francês. Durante a fase em que escrevia uma tese para a UCLA ele foi o responsável por vários curtas-metragens. Passada aquela fase, ele passou a escrever para o cinema e para a TV – inclusive assumindo a direção de um filme, La Gueule du Loup (1981).
A atriz Nada Abou Farhat é a beleza árabe em pessoa. Com traços muito marcados e um olhar expressivo, ela encarna perfeitamente a mulher forte e ao mesmo tempo frágil da história. A atriz, de origem libanesa, começou a trabalhar como atriz muito jovem, acumulando até agora papéis no teatro e na televisão, essencialmente. Sua estréia no cinema ocorreu no filme anterior de Aractingi, Bosta. Por sua vez, o carismático Georges Khabbaz é uma celebridade em sua Líbano natal. Ali ele atua como músico e roteirista, ainda que seu reconhecimento realmente venha do trabalho como ator. No currículo ele tem registrado vários prêmios por seu trabalho no teatro, na televisão e no cinema.
Lendo as notas de produção é que soube de algo interessante: o diretor realmente esteve no Líbano durante a fase da destruição. A guerra teria começado no dia 12 de julho e ele esteve no local 10 dias depois. Então todas as cenas que se vêem de bombas caindo foram filmadas por ele. Passada a fase do conflito mais pesado, ele saiu rodando pelo país com seus dois atores… todas as outras pessoas que aparecem em cena representam “seus próprios papéis”, dos taxistas até os refugiados, dos jornalistas aos soldados. Bacana. Vou até aumentar um pouco a nota original de 8,5 por causa disso. 🙂
Agora, fica uma dúvida: porque Aractingi não filmou, de uma vez, um documentário? Quase seria mais fácil, não? E aumento a nota também porque agora se justifica uma certa “fraqueza” no roteiro: o filme foi praticamente construído conforme a equipe viajava. Pelo menos houve bastante improvisação no meio.
Os usuários do site IMDb conferiram a nota 7,1 para o filme. Vale citar que ele é uma co-produção do Líbano, da França e da Inglaterra.
Até agora, Sous Les Bombes ganhou quatro prêmios: os de melhor atriz e de melhor filme no Festival Internacional de Cinema de Dubai; e os prêmios Alternative Vision e EIUC do Festival de Veneza. Ele chegou ainda a ser indicado ao prêmio de Melhor Filme Drama estrangeiro do Festival de Sundance deste ano, mas acabou perdendo para Ping-pongkingen.
Achei estes textos interessantes sobre o conflito israelo-palestino (texto 1 e texto 2). Para quem quer saber um pouco mais…
CONCLUSÃO: Um filme impressionante sobre a destruição no Líbano pós os ataques israelenses no país em 2006. Apesar de ser uma ficção, Sous Les Bombes retrata o momento do país logo depois do cessar-fogo daquele ano. Com dois atores muito bons e uma direção que valoriza a paisagem de destruição, Sous Les Bombes acaba servindo muito mais como registro de uma época do que como uma obra de ficção bem escrita. O roteiro é um tanto fraco ao não tratar temas importantes daquela realidade. Um verdadeiro “road trip” dramático, o filme vale para quem não tem pressa em saber o que acontece no final e também para os que não se importam de uma história linear e sem surpresas. E a mensagem inevitável do filme é: sim, a guerra é uma merda. E sim, são os inocentes que morrem mais em guerras como estas que continuam rolando mundo afora em pleno “evoluído” século 21.
PALPITE PARA O OSCAR 2009: Pela força de suas imagens e pelo caráter “humanista” de sua história, talvez Sous Les Bombes chegue a ser selecionado para uma das cinco vagas do Oscar. Mas algo joga contra ele nesta disputa: o tom um tanto “anti-israelita” da história. Ok que o filme não faz um discurso contra Israel mas, ao mesmo tempo, toda a destruição mostrada aparece com a assinatura daquele país. E todos nós sabemos que os Estados Unidos – e especialmente Hollywood – está do lado de Israel, não é mesmo? Então se for visto apenas o critério político do Oscar, o filme ficará de fora. Se os responsáveis por escolher as produções finalistas fecharem os “olhos” para a questão de Israel, talvez selecionem o filme pelo trabalho corajoso de seu diretor e equipe técnica. Afinal, eles se arriscaram (até uma certa medida) ao rodar o filme em uma zona de conflito – ainda que em uma época de cessar-fogo. Não assisti ainda aos outros concorrentes, mas já posso me arriscar ao dizer que duvido que este filme ganhe a estatueta dourada. Primeiro porque eu acho que existem outros títulos com uma história melhor trabalhada – ainda que se justifique uma certa “fraqueza” de roteiro devido às condições que o filme foi feito. Depois porque eu acho que realmente não é um tema tão “querido” pela Academia. Mas que o filme merecia estar entre os cinco finalistas, ah, isso merecia. O que vai acontecer, logo veremos…
2 respostas em “Sous Les Bombes – Under The Bombs”
Bom dia.
Meu nome é Aurélio Martins Favarin e sou Relações Públicas pela Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Gerencio o blog TCC Comunicação (www.tcccomunicacao.blogspot.com). O espaço é destinado à publicação de resumos de tccs de graduação e pós-graduação, dissertações e teses na área de comunicação. Em 2008 o espaço contou com a publicação do resumo de: 17 tccs de graduação, 4 tccs de pós-graduação, 4 dissertações e 1 tese.
Mensalmente o espaço oferece um livro de comunicação para o trabalho eleito como mais interessante pelos usuários do espaço.
Escreva o resumo do seu trabalho, com aproximadamente 1.500 caracteres (com espaço), para o e-mail aurelio.favarin@gmail.com.
Atenciosamente,
Aurélio Martins Favarin
CurtirCurtir
Olá Aurélio!!
Seja bem-vindo por aqui. Ainda que eu espere que, em uma próxima vez, você comente sobre algum filme… 😉
Obrigada por divulgar a tua página. Talvez você quis publicá-la por aqui porque vistes que eu estou cursando um doutorado. Se foi por isso, agradeço pela sugestão do teu site, mas ainda estou na fase embrionária da minha tese e acho que não seria o momento de divulgar algo dela publicamente. Mas obrigada. Lembrarei do teu site quando for o momento oportuno.
Volte mais vezes, especialmente para falar de cinema. Um abraço.
CurtirCurtir