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Rampart


Um policial fora de controle. Que se enrola cada vez mais em seus próprios erros. Rampart revela os bastidores da polícia de Los Angeles no final dos anos 1990. Como estrela da produção, Woody Harrelson faz um de seus melhores trabalhos. Além de honesto, este filme se destaca por algumas sequências inventivas do diretor. Entretenimento com levada autoral e alguma inovação.

A HISTÓRIA: O policial David Douglas Brown (Woody Harrelson) faz várias rondas na Los Angeles de 1999. Em um certo dia, ele aparece ao lado da estagiária Jane (Stella Schnabel) e do policial Dan Morone (Jon Bernthal). Jane escuta os conselhos dos dois policiais, especialmente de Dan, que afirma que ela deve aprender logo a diferença entre os diferentes tipos de latinos que vivem na jurisdição deles. Afinal, quanto antes ela aprender a identificar suas diferentes origens, mais rapidamente ela perceberá quem odeia quem. Segundo David, todos traficam, todo o tempo, e estão armados para atacar a polícia. Ela pergunta sobre o escândalo, e os dois policiais desprezam este tema. David diz que dois policiais fizeram besteira e mancharam o restante da corporação. Mas logo mais veremos que esta não é toda a história.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso só recomendo que continue a ler quem já assistiu a Rampart): O roteiro de James Ellroy e do diretor Oren Moverman acerta no começo do filme. O texto planta dúvidas na cabeça dos espectadores, que não sabem até que ponto David Brown é apenas um policial um pouco exagerado, cansado da rotina de rondas e problemas, mas que tem uma preocupação ética e de conduta, ou se ele é um louco fardado.

Aquela conversa dele com colegas no início do filme mostra as duas facetas do protagonista: por um lado, ele acredita que todos os latinos são traficantes e estão preparados para ferrar a ele e seus colegas quando tiverem a primeira oportunidade e, por outro, ele revela ter um grande respeito pela disciplina e de que é capaz de voltar atrás em um gesto exagerado.

Em seguida, ele quer mostrar força para a colega iniciante, e tem outro gesto idiota, que não parece ser próprio de alguém que está há muito tempo nas ruas. Na delegacia de polícia, mais uma vez, ele exagera com um preso que havia batido em um colega. Não parece que o escândalo envolvendo a Rampart, divisão da polícia de Los Angeles que atende a bairros como Echo Park, Pico-Union e Westlake, foi realmente um equívoco de dois policiais.

O protagonista desta produção serve de exemplo de uma polícia contaminada pela brutalidade. (SPOILER – não leia se você ainda não assistiu ao filme). Das ruas, passamos rapidamente para a intimidade dele. Para complicar o enredo daquela vida conturbada, ele tem duas ex-mulheres, que são irmãs, e duas filhas com as quais ele não sabe lidar. Aliás, ele tem dificuldade em lidar com mulheres em geral. Não parece ter muito respeito por elas. Bom de cama, ele pula de uma relação para a outra. Parece não gostar de dormir sozinho – como tantos e tantos outros. Mas algo de positivo (e é preciso dizer, diante de tantos defeitos desse personagem): ele não bate em mulher. Pode insultá-las, desprezá-las, mas não levanta a mão para elas.

Evidente, mesmo sem sabermos quase nada sobre o passado de David, que ele respeita muito a “superioridade” dos homens. Mesmo que de uma maneira torta, ele tenta também preservar o valor da “família”. Claro que nenhum destes conceitos estão limpos, sem contaminação. Nada na vida de David, e isso vamos percebendo aos poucos, parece não estar manchado pela violência ou pela corrupção.

Ainda assim, é interessante como Ellroy e o diretor Oren Moverman conseguem adentrar de forma sutil na vida do personagem, mostrando várias de suas facetas. Há o homem de família, que não consegue conciliar ninguém em casa – não resgata o romance com nenhuma das ex e nem consegue muito afeto das filhas. Há o policial, que está cansado de ver o mesmo e perde a cabeça facilmente, seja com um imigrante ou com um superior – nestas horas, a hierarquia parece importar pouco. Existe também o David garanhão e festeiro, que bebe em serviço, fuma sem parar, frequenta bares e boates em busca de sexo sem compromissos. E há ainda o homem corrupto, com contatos suspeitos com Hartshorn (Ned Beatty), o homem que conhece o submundo da jogatina.

Rampart é complexo por isso, por focar todas estas facetas de um homem que ganhou os noticiários por um momento de violência. Mas a condução do filme inova pouco. Se o roteiro é bem amarrado e interessante, a direção segue o caminho tradicional. Exceto por duas sequências que valem quase pelo restante da produção: aquela do “confronto” entre David e os superiores Joan Confrey (Sigourney Weaver) e Bill Blago (Steve Buscemi), uma roleta russa de pressões e egos; e a que foca uma das noites mais alucinantes do protagonista, em uma boate onde rolam sexo e drogas e onde predomina a cor vermelha. A visão distorcida que o personagem naquela noite pode sintetizar toda a perda de foco que ele está vivenciando naquela momento da vida.

Os atores e atrizes que embarcam nesta produção é algo que impressiona. Além dos já citados, vale destacar a atuação de Ben Foster como o general Terry, preso à uma cadeira-de-rodas; Cynthia Nixon como Barbara, irmã de Catherine, interpretada por Anne Heche, ambas ex-mulheres de David; Brie Larson como Helen, filha mais velha do protagonista, e Sammy Boyarsky como Margaret, a caçula da família; Robert Wisdom como o capitão da divisão Rampart; Robin Wright como Linda Fentress, uma advogada que acaba se relacionando com David em seu pior momento; e Ice Cube como Kyle Timkins, investigador do Ministério Público que não sai da cola do protagonista. Baita elenco, não? E todos estão bem, ninguém destoando muito do ótimo trabalho de Harrelson.

Rampart tem dois momentos de explosão do protagonista que marcam erros importantes e difíceis de serem contornados. Fora estes “rompantes”, nenhum dos dois muito surpreendentes – afinal, o espectador já está “armado” para aquelas sequências -, o restante do filme é bastante cerebral, e tenta mostrar as diferentes facetas do protagonista. Essa busca é interessante, e torna esta produção densa.

Mas por outro lado, deixa pouco espaço para surpresas. E em um filme policial, elas são importantes. Com tantas linhas e histórias para contar, Rampart perde um pouco de ritmo para abrir espaço para uma leitura mais completa daquela realidade. É um filme louvável, ainda que pouco provocador. Faz refletir, mas inova em poucas cenas. Está bem acima da média, mas não chega a ser excepcional.

NOTA: 8,8.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: O estilo de direção de Oren Moverman segue a lógica dos documentários. Câmera na mão, estilo de interpretação dos atores cheia de improvisos, Rampart vende a ideia de que o espectador está acompanhando uma história real, enquanto ela acontece. Uma escolha acertada, para este tipo de história. Fora aquelas duas sequências que eu comentei antes, o restante da produção segue uma lógica limpa, linear, sem inovações.

A direção de fotografia de Bobby Bukowski explora, evidencia e potencializa a luminosidade de Los Angeles. Uma decisão acertada, e que muitas vezes deixa o filme um pouco “over” na luz. A impressão é que o sol queima, e que não é possível para ninguém conseguir proteção suficiente contra ele. Assim como os personagens, que não conseguem ficar incólumes em meio àquele cenário de insegurança e violência crescente.

De todos os atores citados, os que apresentaram o melhor trabalho foram, claro, o protagonista Woody Harrelson, Jon Foster – em uma ponta -, Brie Larson (ainda que ela irrite, alguma vezes) e Robin Wright. Outros atores, talentosos, aparecem tão pouco que não conseguem se destacar. Da equipe técnica, vale citar o bom trabalho do editor Jay Rabinowitz.

Gostei de ter visto o ator Jon Bernthal, que faz um trabalho excelente na série The Walking Dead, em um filme. Mas senti falta de vê-lo nesta produção mais do que em uma ponta.

Fiquei curiosa por saber mais sobre a divisão Rampart. Neste link da Wikipédia (em inglês), é possível saber que ela integra a polícia de Los Angeles e atende as regiões oeste e noroeste do Centro da cidade. Como eu disse antes, faz parte desta região bairros como Echo Park, Pico-Union e Westlake, conhecidos por abrigar muitos latinos. O nome da divisão surgiu a partir do Boulevard Rampart, uma das principais ruas da área de patrulha dos policiais que a integram. A população de Rampart chega a 300 mil pessoas, e é considerada a área mais populosa da cidade.

No mesmo texto da Wikipédia é possível saber um pouco mais sobre o escândalo que envolveu a divisão Rampart. No final dos anos 1970, foi criado ali um programa anti-gangues. Ele teria funcionado bem nos primeiros anos, mas entre 1998 e o ano 2000, vários policiais e detetives do esquadrão foram acusados de má conduta. Um deles, Rafael Perez, foi acusado de participar de um assalto à banco e por roubar seis quilos de cocaína de um armário de provas policiais.

O ato mais notório de Perez foi ele ter sido gravado espancando o membro de uma gangue que estava desarmado – história parecida com a do protagonista de Rampart, não? Ele teria confessado o roubo da cocaína e trocou esta possível condenação pelo gesto de delatar colegas corruptos – Perez teria apontado 70 deles por má conduta.

Rampart estreou no Festival de Toronto em setembro de 2011. No mesmo mês, ele participou do festival de cinema de San Sebastian, na Espanha. Até agora, o filme foi indicado a dois prêmios, ambos para o ator Woody Harrelson, mas não ganhou nenhum deles.

Há poucas informações sobre o resultado desta produção nas bilheterias. Segundo o site IMDb, nos Estados Unidos, o filme teria arrecadado pouco mais de US$ 663,3 mil até o dia 11 de março. Sim, mil, não milhões. Uma bilheteria minúscula, para os padrões do cinema norte-americano. Em sua melhor época, o filme foi exibido em 106 cinemas, nos Estados Unidos. Em um cenário muito restrito, o que ajuda a explicar a baixa bilheteria.

Os usuários do site IMDb deram a nota 6,1 para Rampart. Os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes foram mais generosos, dedicando 92 críticas positivas e 29 negativas para a produção, o que lhe garante uma aprovação de 76% e uma nota média de 6,6.

O crítico Andre Barcinski, da Folha, escreveu aqui que ele considera Rampart o melhor filme americano de 2011. Respeito a opinião dele, é claro. Gostei de Rampart. Mas não achei esta produção a melhor do ano passado. Nem de perto. O filme não é tão surpreendente, nem na forma ou no conteúdo, quanto poderia ser.

Rampart é o segundo filme do diretor e roteirista Oren Moverman. Antes, ele dirigiu a The Messenger, filme bem interessante e que tem no elenco, outra vez, Woody Harrelson, Ben Foster, Steve Buscemi, entre outros. Atualmente, ele está trabalhando na pré-produção de Berlin, I Love You, com previsão para ser lançado em 2013.

Woody Harrelson entrou na minha lista de ótimos atores com Natural Born Killers. Depois daquele filme de Oliver Stone, de 1994, ele fez outros trabalhos excelentes. Vale citar (e assistir) a The People vs. Larry Flynt, de Milos Forman; The Walker, de Paul Schrader; Transsiberian, de Brad Anderson; e o já citado The Messenger.

CONCLUSÃO: Um vilão nunca é apenas um vilão, por mais que tantos filmes de Hollywood tenham tentado simplificar estes personagens repetidas vezes. Um sujeito errado sempre tem uma história pessoal para contar, assim como ele sofre com uma certa contaminação originada na sociedade e identificável em seu comportamento. Rampart mergulha na história de um homem que deveria ser o mocinho de uma determinada realidade – replicável para qualquer parte, mas que aparece como um reflexo mal acabado das falhas deste coletivo. Acreditando ser intocável, o protagonista abusa de sua autoridade e ajuda a disseminar o caos na realidade que deveria contribuir para controlar. O filme acerta ao acompanhar ele de perto pouco antes do trem de sua vida descarrilhar, até para que o espectador possa ver de perto como os problemas sempre podem aumentar e uma pessoa perder o controle da própria vida. Há chance de redenção para o personagem de Rampart? Dificilmente. E essa crueza talvez seja o melhor do filme.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 20 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing e, atualmente, atuo como professora do curso de Jornalismo da FURB (Universidade Regional de Blumenau).

4 respostas em “Rampart”

fascinante como pegaram um tema comum e conseguiram fazer um filme cheio de originalidade. Você já disse tudo. Toneladas de talento nesse elenco e recursos de câmera e fotografia que ajudam e muito a prender a atenção.

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Oi Mangabeira!

Bacana esses filmes que pegam temas batidos e conseguem apresentar algo novo, não é mesmo?
É sempre uma ótima surpresa quando isso acontece.

Obrigada por mais esta visita e comentário.

Abraços e inté!

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Uma das maiores qualidades do filme é que ele não deixa tudo pronto, o fim é vago, pode ter múltiplas interpretações, destaque para atuação de Harrelson como você disse, queria destacar a cena da praia com o Hartshorn.

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