Tem histórias que são muito pesadas. Frente a elas, como fazer um filme? La Voz Dormida trata de uma das maiores chagas na história da Espanha de forma dura, parcial e dramática. Por tudo isso, precisa. Certamente há quem dirá que o filme é injusto, porque só conta uma parte da história. A questão é que, justamente, o que o filme aborda foi pouco contado. Quase esquecido. Suprimido, sem dúvida. Mas pouco a pouco, especialmente nos últimos anos, relembrado. Ainda bem.
A HISTÓRIA: Começa no final de abril de 1939, focando a Espanha logo após o final da Guerra Civil Espanhola e o início da ditadura do general Francisco Franco e seu regime nacionalista-católico. O texto de abertura do filme dá o tom do que o espectador verá a seguir: “Foram três longos anos de horror e morte. Mas com o fim da guerra, não chegou a paz ou a reconciliação”. A história das irmãs Hortensia (Inma Cuesta) e Pepita (María León), a primeira presa em Madrid, começa em novembro de 1940, no “segundo ano da vitória”. O clima na prisão é da espera constante pela morte, enquanto fora, pessoas como Pepita lutam pela liberdade de seus familiares.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso só recomendo que continue a ler quem já assistiu a La Voz Dormida): Este é um dramalhão. Sim senhores e senhoras. Mas o que faz essa produção ser boa, apesar de ser intensa em drama e de, obviamente, ignorar os argumentos “do outro lado” – leia-se da Igreja e do regime que matou e reprimiu em nome de “manter a ordem”?
Basicamente, dois elementos: a dedicação do roteiro para mostrar o drama por uma ótica diferenciada, das mulheres, e por não economizar na dureza de algumas cenas; e pelo talento das atrizes principais, especialmente daquelas que vivem as irmãs, tão diferentes uma da outra, mas muito amorosas e apegadas.
Também admito, antes que alguém diga que sou incoerente, que este filme me afetou em especial por causa das minhas origens. Sou neta de espanhóis. Meus avós nasceram na Espanha, e meus bisavós viveram lá até imigrar para o Brasil com os seus filhos. Morei em Madrid, onde esse filme se passa, por três anos. Conheci o espírito “aguerrido” e teimoso dos espanhóis. Tive a sorte de fazer amizade com pessoas guerreiras, batalhadoras e que pensavam primeiro em seu país e em sua gente antes de pensar em ganhar dinheiro ou ter sucesso – bem ao estilo de Hortensia e os demais “rojos” deste filme.
Por isso, compreendo muito bem a atitude de Hortensia e dos demais. Até hoje ecoa, nas ruas de Madrid, aquele espírito de punhos erguidos, de olhar fulminante contra a repressão. A resistência segue, mesmo tanto tempo depois, e após tanto esforço da ditadura e da maioria dos governos democráticos que vieram depois, direitistas, de que enterrar a repressão, as torturas e as mortes daqueles anos duros.
O filme é claro em suas intenções desde o princípio, com aquele texto de abertura da produção. Vale citar um trecho: “Este filme quer homenagear todas as mulheres que choraram em silêncio nas portas e nas lápides dos cemitérios. Para as mulheres que se sacrificaram pelos presos e pelos perseguidos. Para todas as mulheres que morreram nas delegacias, nas prisões ou na frente dos pelotões de execução”.
La Voz Dormida não tem nenhuma sombra de dúvida sobre que lado tomar como seu para argumentar. O roteiro do diretor Benito Zambrano, escrito junto com Ignacio del Moral e baseado no livro de Dulce Chacón quer falar daquelas mulheres valentes que se uniam nos presídios e fora deles para resistir. Bate forte na Igreja, que ficou ao lado de Franco e de seus absurdos. Algumas das cenas mais fortes do filme, aliás, mostra representantes da Igreja Católica fazendo qualquer fiel coerente sentir vergonha.
A Espanha, nos últimos anos, tem feito um esforço para resgatar os esquecidos e as vítimas da ditadura de Franco. Inclusive esse gesto, do socialista Zapatero, foi bastante combatido pela oposição dele, agora no poder, dos direitistas comandados pelo Rajoy. E assim a vida segue… alguns governos entram, resgatam parte da história que “os vitoriosos” gostam que fiquem bem enterradas, até que os “vitoriosos” e/ou seus herdeiros voltam ao comando e cuidam para voltar a esquecer ou, pelo menos, continuar tornando desimportantes estes temas.
Mas falemos de La Voz Dormida. O foco principal do roteiro é o drama das irmãs e, por meio delas, as relações de suspense, conflito, perseguições políticas e ideológicas que cercavam aquele tempo. Há espaço para romance também, claro, afinal, os rebeldes lutam e também amam.
Um ponto positivo do filme é que ele é bem contundente. Logo no início, assistimos ao desespero de presas que vem suas companheiras sendo selecionadas e levadas para o fuzilamento. Assim, a produção entra dando rasteira. Não segue com esta força todo o tempo, mas nos apresenta alguns outros momentos muito duros. Bela e necessária aposta do diretor que, para passar a mensagem que gostaria, acerta ao explorar algumas sequencias de brutalidade.
Mas claro, La Voz Dormida não é apenas isso. Além dos momentos de violência e tensão, há romance, como dito antes, suspense (sobre o que vai acontecer na próxima tentativa de Pepita em ajudar a irmã ainda que, desde o princípio, já desconfiamos sobre o que acontecerá com Hortensia) e drama, muito drama. E esse excesso de drama só não faz o filme ficar ruim por causa das atrizes, que levam os seus respectivos papéis com seriedade, sem forçar a dose e com bastante convicção.
O diretor acerta ao focar no trabalho dos atores, sem ignorar os lugares, mas deixando claro que a interpretação é o que ganharia o jogo. Uma delícia assistí-los emocionados, brigando – aliás, as únicas cenas um pouco cômicas da produção se resumem no inevitável embate amoroso entre Pepita e Paulino (Marc Clotet). Muito engraçado ouvir o sotaque andaluz, especialmente de Pepita. Uma delícia. Aliás, muito bom ver os estilos tão diferentes de falar dos atores/personagens.
Por pouco, não dou a nota 10 para esta produção. Na verdade, estava dando, até que fiz uma análise um pouco menos “passional” e percebi que, realmente, incomoda um pouco o lado dos rebeldes ser mostrado de forma tão amistosa. Não vemos o grupo de Paulino ou Felipe (Daniel Holguín) matando ninguém, mesmo para se defender. Claro que eles provocaram muitos dramas, mas nada disso é revelado pela produção, o que os torna quase mártires perseguidos injustamente – e, assim, quase santos. Claro que a história real não foi essa. Como em outras ocasiões, em que um filme ignorou completamente – e de forma proposital – o outro lado da história, não posso dar a nota máxima para esta produção. Mas pelo demais, ela merece aplausos.
NOTA: 9,7.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: A guerra civil espanhola foi uma desgraça. Até hoje aquele conflito interno assombra e repercute no país. Mesmo que novas gerações estejam mais preocupadas com o futuro, incerto com o desemprego e a crise, e que imigrantes tenham renovado o cotidiano do país, aquelas chagas parecem difíceis demais de cicatrizar.
Como La Voz Dormida faz uma crítica importante para aquele período, nada melhor que relembrar um pouco sobre aquela guerra. Como explica este texto, o conflito começou em 1936 e durou até 1939. A origem dele foi a substituição da monarquia por um regime republicano de levada socialista. Nada mais contrário ao que estava estabelecido, pois. Contra o novo regime, houve um levante de falangistas, como ficaram conhecidos os resistentes à mudança e que eram partidários do nazi-facismo, liderados pelo general Francisco Franco.
Os falangistas, claro, tiveram o apoio dos governos totalitários e fascistas da Alemanha e da Itália. Essa foi a escolha da Europa na época, impedir que as ideias socialistas se consolidassem. Para isso, utilizaram os piores recursos para abafar e eliminar os descontentes – que não eram poucos. A maravilhosa obra Guernica, de Pablo Picasso, é a mais sublime e conhecida produção artística que representa a violência, o absurdo e as mortes daquela guerra.
Esta é uma leitura “ligeira” sobre o que aconteceu. Recomendo também este texto, que dá mais detalhes sobre a Espanha antes da eclosão da guerra e dos fatores que levaram o pais às armas e a uma divisão histórica que perdura. Interessante, em especial, como sempre que um país está atrasado e há uma forte resistência de quem está no poder a mudar, se instalam as condições perfeitas para a catástrofe. Chamo a atenção para a parte em que o texto comenta como as pessoas saíram às ruas para defender as mudanças em Madrid e em Barcelona, antes da repressão com apoio nazi-facista começar a vigorar.
La Voz Dormida é um filme de sucesso. Ele conseguiu, até o momento, cinco prêmios e ser indicado a outros 17. Entre as estatuetas que recebeu, estão três prêmios Goya: melhor atriz revelação para María León; melhor canção original para a música compartilhada pelas irmãs, “Nana de la hierbabuena”, de Carmen Agredano; e melhor atriz coadjuvante para Ana Wagener. Os outros dois prêmios que o filme recebeu foram dados na Espanha: o de melhor atriz para María León no Festival Internacional de San Sabastián; e o de melhor atriz revelação para María León no Prêmio do Círculo de Roteiristas de Cinema. Sem dúvida um dos melhores filmes da última temporada.
O diretor andaluz Benito Zambrano é um vencedor. Ele tem, no currículo, apenas cinco produções, sendo uma delas a série de TV Padre Coraje. Mas acumula respeitáveis 26 prêmios e outras 16 indicações. Antes de La Voz Dormida, ele dirigiu a Habana Blues, comentado aqui no blog, e Solas, de 1999, sua estreia nos longas.
Para quem gosta de saber sobre as locações do filme, como a própria história sugere, La Voz Dormida foi filmado em Madrid e na cidade de Huelva, na Andalucía.
La Voz Dormida estreou em setembro de 2011 no Festival San Sebastián. Em outubro, o filme participou dos festivais de Ourense e de Londres e, em março deste ano, no de Miami.
Não há informações sobre o desempenho do filme nas bilheterias. Mas segundo o IMDb, a produção teria custado cerca de 3,5 milhões de euros.
Os usuários do site IMDb deram a nota 6,6 para La Voz Dormida. Não é uma cotação ruim, levando em conta a tradição do site.
CONCLUSÃO: Resistir, mesmo quando isso parece impossível. Lutar, mesmo quando isso não vá muito além de manter-se convicto. La Voz Dormida trata de um tempo e de uma gente difíceis. Os anos que seguiram o fim da Guerra Civil espanhola foram dos piores já vividos por aquele país. E aquela gente não teria descanso porque, afinal, logo mais a Europa estaria imersa na Segunda Guerra Mundial. La Voz Dormida é um dramalhão, sob a ótica feminina. E apenas essa escolha, de focar nas mulheres que foram presas políticas e o drama de suas famílias, já faz o filme ser diferenciado. Para a sorte dos espectadores, se o roteiro alguma vezes falha ao pesar muito no drama, as atrizes principais cuidam para dar o tom de firmeza necessário para as suas personagens. História forte, necessária, e com atuações que valem o ingresso.