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Les Garçons et Guillaume, à table! – Eu, Mamãe e os Meninos


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Um dos filmes mais interessantes sobre o autoconhecimento e a definição da própria identidade. Essa tarefa não é fácil, mas Les Garçons et Guillaume, à table! consegue executá-la com perfeição. Há tempos não via uma produção que consegue equilibrar tão bem o humor e a sensibilidade em um roteiro em que não há uma linha sobrando. Mérito não apenas do realizador, Guillaume Gallienne, responsável não apenas pela direção, mas também pelo roteiro e por protagonizar a produção, mas também da equipe que ele escolheu à dedo para ajudá-lo neste filme.

A HISTÓRIA: Uma voz afirma que o espetáculo vai começar em cinco minutos e pede para que Guillaume (Guillaume Gallienne) entre em cena. Ele olha para a própria imagem, no espelho. Ao redor dele, mensagens de incentivo e fotos inspiradoras. Guillaume limpa o rosto e vai para o palco. Lá ele começa a contar a própria história. Primeiro, chama a mãe (interpretada também por Gallienne). Fica evidente a admiração do filho por ela, a ponto de idolatrá-la. Mas esta admiração fará com que ele confunda a própria identidade, até que comece a perseguir o senso realista sobre si mesmo. Acompanhamos esse processo.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Les Garçons et Guillaume, à table!): Gosto quando os filmes desconstroem a expectativa do público. Conforme a história desta produção vai se desenvolvendo, o que seria o mais previsível de acontecer? Que o protagonista seguisse lutando contra o preconceito por ser homossexual e que, em certo ponto, finalmente tivesse a oportunidade de ser quem ele desejava ser em plenitude, correto?

Por isso que é tão interessante o roteiro de Les Garçons et Guillaume, à table!. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Afinal de contas, qual é a história mais comum sobre a definição da sexualidade desde que as sociedades ficaram modernas? Sem dúvida alguma a repressão em casa e fora de casa daqueles que se mostram “diferentes” do padrão. Ou seja: a repressão do rapaz que parece uma moça e da moça que age como um rapaz. Isso acontece neste filme, mas não é tudo. E é aí que esta produção se mostra diferente.

A definição da própria identidade não é uma tarefa fácil. Até porque as pessoas vão mudando com o tempo, moldando o próprio caráter e a própria identidade conforme vão se relacionando umas com as outras e conforme os acontecimentos de suas vidas vão se desenvolvendo. Para facilitar nosso processo mental, normalmente classificamos os eventos, nossos sentimentos, relações e as pessoas com quem convivemos.

Se alguém não se encaixa no “padrão” mais comum, recebe outro rótulo e, muitas vezes, sofre preconceito. Afinal, a maioria das pessoas tem dificuldade de aceitar o que é diferente. Falta maturidade para estas pessoas – e ela é feita, entre outras qualidades, pela capacidade de colocar-se no lugar do outro. Quem consegue fazer isso, dificilmente fará piadas ou será violento com aquele que é diferente.

O interessante de Les Garçons et Guillaume, à table! é que o filme mostra a história mais comum sobre a definição da própria sexualidade para, só depois, inverter a história e surpreender o espectador. Fascinado pela própria mãe, Guillaume é visto por cada um dos familiares como um “ser estranho” no ninho. Apesar de ser homem, ele age e é tratado como uma menina. Isso fica evidente não apenas pelo título original do filme, que é a forma com que a mãe de Guillaume chama os familiares para comer, mas em cada interação do protagonista com seus familiares.

Mas além das reações dentro de casa, Guillaume é identificado como um sujeito afeminado fora da residência familiar. Ele descobre isso de forma mais evidente quando começa a sair da França e ir para outros países estudar e conhecer outras culturas. Primeiro acompanhamos ele pela Espanha e, depois, na Inglaterra. Na primeira situação, ele percebe como as mulheres lhe identificam como “uma igual”. Na segunda, entende o que é o respeito pela privacidade do outro e começa a flertar com rapazes.

Interessante a forma com que o roteirista, diretor e protagonista nos apresenta, de uma forma muito natural, as diferenças de costumes e de comportamento de pelo menos três sociedades europeias. De fato, cada país lida com a sexualidade e com as diferenças de uma forma muito específica. A intimidade ganha maior ou menor importância conforme o estilo de cada sociedade.

É especialmente forte o momento em que Guillaume percebe como é visto pelo pai (André Marcon). Diferente do que muitos pensavam até ali, o protagonista não tinha se identificado como homossexual. Na verdade, ele não tinha tido nenhuma experiência sexual e, para sua própria definição, enxergava-se como uma menina. Não existia atração ou repulsa sexual em relação a mulheres ou homens. Pelo contrário. Ele admirava ambos, mas tinha uma “queda” maior na admiração pela mãe – e, depois, vamos descobrir, pelas mulheres em geral.

Antes mesmo daquela cena em que Guillaume desabafa para o público de que não se via como homossexual, mas como a única filha da família, eu me perguntava se, de fato, ele era gay ou apenas um grande admirador das mulheres. E se fosse o segundo caso, ele teria essa admiração toda originada na mãe e que, posteriormente, poderia ser repassada para uma outra mulher, uma parceira para a vida.

Impressiona nesse filme não apenas o roteiro bem escrito, mas a honestidade de cada linha. Gallienne consegue fazer o público colocar-se na pele dele e, nos momentos mais emotivos, em que ele enfrenta a própria definição de sua identidade, fica impossível não entender pelo que está passando. Essa qualidade do texto pode levar muitas pessoas a reverem os seus próprios valores e preconceitos, repensando a pressa de etiquetar algumas pessoas com quem convivem.

Outro qualidade do roteiro de Les Garçons et Guillaume, à table! é que o filme se debruça nas relações familiares. E daí não fica evidente apenas os jogos de poder, as pequenas generosidade e crueldades do dia a dia, mas também o papel muito bem definido que cada pessoa desempenha no núcleo familiar. Neste sentido, achei especialmente engraçada a forma com que a família de Guillaume trata a avó (a ótima Françoise Fabian). Dei boas gargalhadas quando ela começa a ficar mais confusa que o normal conforme a idade vai chegando. Podemos não trabalhar bem com isso, mas todos chegaremos naquela fase – se tivermos sorte. 🙂

Mas é uma das tias do protagonista (interpretada por Carole Brenner) que dá um conselho que vale ouro: quando Guillaume se apaixonar, seja por uma homem ou uma mulher, é que ele terá certeza sobre a própria sexualidade. Até isso acontecer, o que ele deveria fazer é experimentar. E ele sai em busca desta experimentação, indo atrás, primeiro, de homens. Neste momento é que ele percebe o que precisa fazer para se libertar, e vai atrás desta sensação.

Não é fácil conhecer a si mesmo pra valer, sem abraçar as expectativas de pai, mãe ou quem mais for importante para você. No caso de Guillaume, o pai dele gostaria que o filho agisse como homem. A mãe, contudo, aparentemente dominante na família, enxergava o filho como uma menina ou uma “quase-menina” (o que, para ela, significa ser um homossexual). Neste contexto, não tinha como Guillaume não frustar um ou outro – pai ou mãe.

De qualquer forma, o ótimo roteiro de Gallienne deixa claro um fato incontestável: descobrir quem se é para valer significa um longo processo que, geralmente, abriga um ou vários momentos doloridos e de sofrimento. Enfrentar as expectativas alheias e as próprias para encarar o que se é de verdade não é fácil. Mas quando se vence esse processo, a vida fica muito mais interessante. E daí é possível amar pra valer, como bem demonstra a reta final de Les Garçons et Guillaume, à table! Um filme que faz rir, que não tem nenhuma sobra de recursos e que também emociona. Além de estimular a quebra de preconceitos. Perfeito e raro.

NOTA: 10.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: O roteiro é sempre a galinha do ovo de ouro do cinema. Um filme pode até ter atuações medianas, um diretor que escolhe seguir a cartilha dos grandes mestres e não inova em nada, mas ele não pode ter um roteiro ruim. Para mim um bom texto é fundamental para um filme ganhar a nota máxima aqui no blog. E apesar de ter outras qualidades, Les Garçons et Guillaume, à table! se destaca mesmo é pelas linhas bem desenvolvidas pelo roteirista, diretor e protagonista Guillaume Gallienne.

O realizador deste filme contou a própria história com matizes cômicos e dramáticos primeiro no teatro. A peça que inspirou o filme estreou em 2008 e ganhou um prêmio Molière – um dos mais importantes do gênero no mundo. Segundo esta matéria do El País, o realizador resolveu contar a própria história não porque se considera especial, mas porque achou que ela bonita e merecia ser contada – até porque muitos se identificariam com ele. Ainda de acordo com a matéria, Gallienne descende da aristocracia russa, cresceu no bairro mais rico de Paris e passou parte da adolescência em um internato na Inglaterra – como ele mesmo conta no filme e, antes, na peça de teatro.

Falando em teatro, achei muito acertado o filme trazer a história de Guillaume como uma peça que, ao ser narrada para um público, acaba sendo transportada para cenas “dramatizadas” no cinema. Nada mais legítimo, já que o material original foi feito e lançado primeiro no teatro. Os cortes do “filme” para as cenas no teatro – que também fazem parte do filme de forma inteligente – sempre são bem justificadas e ajudam a tornar a história ainda mais legítima. Segundo a matéria do El País, Gallienne interpreta a 52 personagens quando conta esta história no teatro.

E para terminar as citações da matéria do El País, achei interessante reproduzir aqui uma resposta do realizador de Les Garçons et Guillaume, à table!: “A única forma de explicar para mim mesmo (sobre o sucesso da peça de teatro e do filme) é que eu fui muito sincero. Não busquei agradar. E eu acredito que funcionou. Cada um vê as coisas do seu jeito, há gente que vê apenas a parte engraçada, há gente que desde o princípio não entende porque os outros riem tanto”. E é assim o mundo. Perdi as contas das vezes que fui no cinema e não entendi a reação da maioria. E às vezes a “estranha” sou eu. De fato, cada um vê as coisas de seu jeito.

Para quem quiser sabe mais sobre o realizador deste filme, segue aqui uma outra entrevista com Gallienne, desta vez do site La Llave Azul. Bem interessante.

Gallienne adaptou o texto que havia escrito para o teatro para o cinema. E para isso, contou com a ajuda de Claude Mathieu e Nicolas Vassiliev. O trio fez um excelente trabalho. Da parte técnica do filme, vale destacar ainda a bem planejada direção de fotografia de Glynn Speeckaert, a ótima trilha sonora de Marie-Jeanne Serero, o design de produção de Sylvie Olivé e os figurinos de Olivier Bériot. O trabalho dos últimos dois é fundamental para ambientar o espectador na época e nos lugares da história.

Guillaume Gallienne brilha também na atuação. Ele é um excelente ator. E ele acertou na escolha do elenco de apoio. Além das já citadas Françoise Fabian e Carole Brenner, que estão perfeitas, vale citar o trabalho de Brigitte Catillon como a tia de Guillaume que mora na América; Nanou Garcia como Paqui, a espanhola que recebe Guillaume em sua primeira incursão fora da França; Charlie Anson mostra bastante charme como Jeremy, que Guillaume acredita ser a sua primeira paixão na escola inglesa; e em papéis menores, mas com aparições também marcantes, Yvon Back como o professor de equitação e Clémence Thioly como Amandine, esta sim, a verdadeira paixão do protagonista. A conhecida Diane Kruger faz uma pequena ponta como Ingeborg, uma das alemãs duras na queda do spa para onde Guillaume vai em busca de relaxamento – e onde acaba sendo quase torturado.

Les Garçons et Guillaume, à table! estreou no Festival de Cannes em maio de 2013. Depois, o filme passaria por outros 11 festivais, sendo o último deles o Festival Internacional de Cinema de Seattle, que começa no próximo dia 22. Nesta trajetória, o filme recebeu nove prêmios e foi indicado a outros seis. Entre os que levou para casa, destaque para cinco Prêmios César, considerado o Oscar do cinema francês: Melhor Filme, Melhor Primeiro Filme (quando a produção marca a estreia do realizador), Melhor Ator para Guillaume Gallienne, Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Edição para Valérie Deseine. Aliás, esqueci de mencioná-la antes. Deseine faz um trabalho impecável de edição neste filme. Mereceu o César.

Para quem gosta de saber sobre os locais em que os filmes foram rodados, Les Garçons et Guillaume, à table! foi feito essencialmente na França, em Paris e em Essonne, tendo apenas algumas cenas gravadas em Cádiz, na Espanha.

Os usuários do site IMDb deram a nota 6,7 para Les Garçons et Guillaume, à table! Uma boa avaliação, levando em conta o padrão do site, mas que eu acho que poderia ser melhor. No site Rotten Tomatoes o filme tem apenas três críticas linkadas, todas positivas.

Não encontrei informações sobre o desempenho do filme nos cinemas mundo afora.

Les Garçons et Guillaume, à table! é uma coprodução da França com a Bélgica.

CONCLUSÃO: Nos dias de hoje, há temas que são delicados. Sempre que se discute raça, credo e orientação sexual, alguns ânimos ficam exasperados. No fundo, todos parecem sempre perto do limite em algumas discussões, e o politicamente correto predomina após uma época de piadas de mau gosto. Les Garçons et Guillaume, à table! surge neste cenário de forma corajosa e precisa. Ele debate a definição de um homem sobre si mesmo após ele passar por uma grande confusão. Algo bastante comum hoje em dia, quando todos parecem ter que se definir ou serem definidos o quanto antes. Bem escrito, bem dirigido e com ótimas atuações, este filme acerta em cada linha e faz pensar sobre a nossa sociedade. Em como lidamos com o que não entendemos ou com os nossos desejos. Capaz de fazer rir, emocionar e pensar, este filme é uma destas joias raras. Merece ser visto.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 20 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing e, atualmente, atuo como professora do curso de Jornalismo da FURB (Universidade Regional de Blumenau).

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