A vida é complicada ou é a gente que complica a vida? A pergunta que vale um milhão é um dos pontos centrais do filme Casse-tête Chinois. Uma produção que surpreende pela excelente trilha sonora, por uma edição de primeira grandeza e por várias boas sacadas, mas que não consegue manter o bom ritmo e a criatividade todo o tempo. E nem precisa. Afinal, o que seria do cinema se não tivéssemos vários filmes esforçados mas que deixam um gostinho de “poderia ter sido melhor”? A tentativa é o que importa. E dar a oportunidade para esta história vale a pena.
A HISTÓRIA: Xavier Rousseau (Romain Duris) olha para a tela do monitor. O cursor está piscando, mas não há nenhuma letra na tela. Corta. Xavier aparece correndo com uma mala por uma calçada. Atrás dele, os dois filhos do escritor, Tom (Pablo Mugnier-Jacob) e Mia (Margaux Mansart). Aos poucos ele começa a escrever sobre a própria vida e a filosofar. Comenta, por exemplo, como a vida para a maioria das pessoas consiste em ir do ponto A para o ponto B. Mas com ele isso não acontece porque Xavier, conforme sua própria leitura, tem problemas para ir para o ponto B. Ele troca de roupa no banheiro, e orienta os filhos a fazer o mesmo. Em seguida, casa. E confidencia que adoraria conseguir traçar uma linha reta até o plano B. Pouco a pouco, conhecemos a confusa história de Xavier e as mudanças pelas quais ele passou em pouco tempo.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Casse-tête Chinois): O primeiro elemento arrebatador de Casse-tête Chinois é, sem dúvida alguma, a ótima trilha sonora do filme. Há tempos eu não via uma seleção tão bem feita, com cada canção sendo pensada como uma peça que cabe milimetricamente em determinado minuto da história. Mérito de Christophe Minck. Junto com a trilha sonora, fica evidente a “sacada” da edição cheia de estilo de Anne-Sophie Bion.
A exemplo de outras produções que brincam com recortes e ângulos diferenciados – vide os filmes de Steven Soderbergh, apenas para citar um diretor acostumado a este recurso -, Casse-tête Chinois ganha pontos com estas “sacadas” narrativas. Afinal, especialmente quando a história permite, as audiências agradecem um pouco de invenção no lugar da forma tradicional de contar uma história. Esta produção acerta quando investe nestes recursos.
O problema deste filme não está nestes recursos, mas no recheio da história. O diretor Cédric Klapisch não consegue segurar o interesse das primeiras cenas e das primeiras linhas de seu roteiro por muito tempo. Antes mesmo da primeira meia hora do filme o espectador já começa a mergulhar na parte “chata” da vida do protagonista. Antes, quando ele está explicando como a vida dele virou de pernas para o ar, a história se revela dinâmica e interessante. Mas depois…
Não é que durante todo o tempo o roteiro de Klapisch caia na mesmice. Mas há muito de “vida comum” em uma história que prometia ser diferenciada e mais criativa. O filme perde o ritmo e, por mais que os atores sejam ótimos e tenham carisma, a vida comum ocupa tempo demais da produção.
Certo, alguém pode argumentar que Casse-tête Chinois tem essa proposta mesmo. Mostrar como preenchemos grande parte da nossa vida com a resolução de problemas e, consequentemente, com pouco planejamento da própria vida. Por esse lado, o roteiro de Klapisch é bastante convincente. De fato boa parte da história de Xavier Rousseau mostra “nosso herói” correndo atrás de colocar ordem na própria vida.
Mas será mesmo que passamos grande parte da nossa vida apenas resolvendo problemas e sem decidir para que caminho estamos direcionando os nossos passos? E será que é isso mesmo o que acontece com Xavier? E eis o ponto interessante desta história. Segundo o protagonista de Casse-tête Chinois ele tem dificuldades em traçar uma linha entre o ponto A e o ponto B, sendo o primeiro o início de uma caminhada e, o último, uma linha de chegada que signifique sucesso em uma determinada trajetória.
Seguindo a linha de raciocínio de Xavier, ele é do tipo que “deixa a vida o levar”. Ou seja, não tem muito “jeito” de determinar os próprios passos porque está apenas respondendo às circunstâncias e ao que vai sendo decidido por outras pessoas e que lhe afetam. Verdade que algumas pessoas acreditam que são assim. Mas de fato este é o caso de Xavier? Não vejo desta forma.
Vejamos. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Xavier vive um casamento feliz de 10 anos junto com Wendy (Kelly Reilly). Com ela o escritor teve dois filhos, os simpáticos Tom e Mia. Aparentemente o casal era feliz, até que Xavier resolve aceitar a proposta de uma de suas melhores amigas, a lésbica Isabelle (Cécile De France), para que ele seja o doador do esperma que possa permitir que ela tenha um filho. E daí a vida de Xavier começa a mudar radicalmente já que Wendy encara a decisão como o pretexto para a separação e para ela se mudar para Nova York.
Agora, meu caro leitor/a, me responda algo importante: Xavier decidiu aceitar o convite de Isabelle ou foi obrigado a tomar aquela atitude? Acredito que você vai concordar comigo que ele teve o poder da escolha nesta situação. Como toda ação provoca reações e tem as suas consequências, aconteceu com o casamento dele o que era meio que inevitável. Afinal, Xavier tornar-se pai de uma criança fora do casamento não é algo tão simples de encarar – ainda mais se ele e Wendy tinham outros assuntos pendentes como o filme sugere.
Depois, Xavier não é apenas “levado pela vida”, mas toma as rédeas de seu presente e futuro com algumas decisões importantes. Para começar, mudando-se para Nova York para conseguir ter uma convivência maior com os filhos. Aqui ele revê o próprio passado, evitando de seguir os passos que o pai dele (interpretado por Benoît Jacquot) tomou. Vale um parênteses aqui. Notaram como muitas vezes tomamos atitudes sem na verdade percebermos as “razões de fundo”?
Xavier não precisa pensar muito para resolver abandonar o bom momento que vivia em Paris para mudar-se para Nova York. Isso porque, no fundo, foi marcante para ele a ausência do pai, algo que ele não quer repetir para os filhos. Com a decisão de mudar-se, mais uma vez, o protagonista da história gira a roda da própria vida em outra direção. Mas ele não foi levado pela vida, ficou inerte, e sim agiu para alcançar o que gostaria.
A diferença em relação a uma linha reta entre dois pontos é que, nem sempre, e isso acontece na vida real, chegamos ao ponto B da forma que tínhamos imaginado. O que Xavier queria, afinal de contas? Além de ter sucesso como escritor, aparentemente ele queria ser feliz, ter uma família bacana, amor e os filhos por perto. Pois bem, se esse era o ponto B do jovem escritor, ele conseguiu o que queria, ainda que não fosse com a mulher que ele tinha imaginado inicialmente – Wendy – e sim com um velho amor do passado. Amor esse que ele achou que o fogo já tinha apagado, mas que, na verdade, estava apenas adormecendo.
O que acontece muitas vezes, e isso é verdade na vida fora da tela do cinema, é que as pessoas só conseguem tomar decisões aparentemente equivocadas. Destas como a de Xavier em doar o esperma para Isabelle. Ele fez errado? Dá para entender a atitude dele, generosa, em prol de uma amiga a quem ele ama, mas ao fazer essa doação ele abriu mão da felicidade que ele tinha no “casamento perfeito”. Alguns podem argumentar que Wendy não merecia ficar com ele por não aceitar a doação, mas a vida não é assim tão simples, afinal.
Então o que parece, muitas vezes, é que as pessoas sabem tomar as rédeas da própria vida, mas parece que sempre levando a trajetória do cavalo-vida para o lugar errado, para a lama. Xavier teria agido muito pior se tivesse ficado em Paris. Acertou em querer ficar perto dos filhos, mas daí foi perceber, logo que chegou em Nova York, que não conseguiria ter Wendy de volta – ela já estava em outra, com John (o interessantíssimo Peter Hermann).
A alternativa imaginada por Xavier, mesmo que não verbalizada, tinha ido ladeira abaixo. Mas ele segue escrevendo, trabalhando, e no final do filme terá conseguido o que mais queria: sucesso na carreira e no amor. E como ele conseguiu o segundo elemento, muitas vezes o mais difícil porque significa dar certo com outra pessoa com suas próprias particularidades? Sozinho o protagonista provavelmente não teria conseguido enxergar a felicidade. Precisou de um empurrão do filho.
E aí está um dos pontos interessantes da reflexão de Casse-tête Chinois. Depende da gente ampliar a nossa capacidade de decidir. Não basta fazer a roda girar em momentos de crise e tomar atitudes que fazem a vida ficar mais complicada – como no caso da doação que Xavier fez para Isabelle. Mas também está nas nossas mãos a capacidade de escolher o caminho para sermos felizes, abrindo mão de outros traços entre os pontos A e B para conseguir construir uma história feliz com alguém.
Para resumir, nosso poder de escolha não está apenas nas decisões aparentemente equivocadas, mas também e especialmente nas acertadas. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). No fim das contas, um otimista pode olhar para Xavier e achar que ele foi do plano A para o B fazendo algumas voltas, mas acertando em todas as escolhas – da doação para Isabelle até a mudança para Nova York, o casamento arranjado com Nancy (a simpática e carismática Li Jun Li) e o acerto de contas com Martine (Audrey Tautou). Um pessimista pode afirmar que ele conseguiu se dar bem apesar das escolhas erradas.
Da minha parte, acho que a vida é meio complicada sim, mas que a tendência é de tornarmos ela ainda mais difícil do que ela precisa ser em muitos momentos. Klapisch acerta ao nos contar a história de um sujeito que pode nos inspirar pela maneira leve com que ele encara cada desafio. Dá para enxergar nos olhos de Xavier a esperança constante de ter tudo resolvido da melhor forma. Essa postura é fundamental. Assim como alguma organização sentimental e mental da própria vida para enxergar qual é o ponto B para cada um de nós. Xavier acaba acertando nisso também. E com leveza. Uma boa lição pra gente.
NOTA: 8,8.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Interessante como alguns realizadores gostam de certos intérpretes. Como Pedro Almodóvar teve o seu Antonio Banderas, investiu em Victoria Abril e Penélope Cruz, o diretor de Casse-tête Chinois estabeleceu uma parceria duradoura com Romain Duris. Klapisch trabalha com Duris desde 1994, quando o ator protagonizou a comédia Le Péril Jeune. Foi a estreia do ator no cinema e o segundo longa-metragem dirigido por Klapisch. O diretor seria responsável por aqueles que são, provavelmente, os dois maiores sucessos de Duris: L’auberge Espagnole e Les Poupées Russes. Dois filmes interessantes e recomendados.
Por falar nestas duas produções da dupla Klapisch/Duris, puxando pela memória me lembrei que neles já fica evidente esta característica do diretor/roteirista por histórias “fragmentadas” – se não na narrativa, no estilo da direção e/ou edição. Mesmo sem ter assistido a todos os filmes de Klapisch, posso dizer que esta parece ser o estilo do realizador.
Interessante, para quem assistiu a esses filmes anteriores da dupla Klapisch/Duris, ver como o ator amadureceu. Ele não é mais aquele jovem bonitão e apaixonante de L’auberge Espagnole. Amadurecido, contudo, ele continua interessante. Convence no papel de Xavier ao mesmo tempo em que mostra carisma – especialmente quando sorri.
Interessante a escolha do elenco deste filme. Ann Goulder, Gayle Keller e Jeanne Millet fizeram um bom trabalho com o casting ao escolher os nomes envolvidos na produção. Só vi acertos. A surpresa é que nomes conhecidos como Audrey Tautou e Kelly Reilly acabam um pouco eclipsados por surpresas como Sandrine Holt (que interpreta a Ju, esposa de Isabelle) e Li Jun Li. Além de talentosas, elas estão lindas e roubam a cena cada vez que aparecem convencendo o espectador de seus papéis. Mas no quesito beleza, ainda acho que Reilly se destaca – há cenas de uma certa despedida onírica da ex-mulher por parte de Xavier, o que ajuda a tornar a atriz um destaque neste quesito.
Há alguns momentos bem interessantes no filme. Um dos que destaco é aquele em que Xavier encontra a esquina que eterniza o amor entre os pais dele. De fato, infelizmente muitas vezes não acompanhamos os momentos mais importantes de nossos pais. Xavier encontrou o registro de algo que ele desconheceu: a paixão e os momentos alegres de seus velhos. É marcante quando percebemos que algo importante pra gente pode estar totalmente fora do nosso alcance. Como um sentimento ou fato antigo de nossos pais quando ainda não fazíamos parte da vida deles. Mas é assim mesmo… destas descobertas que a vida é feita.
Além das atrizes citadas, vale bater palma para o trabalho do garoto Pablo Mugnier-Jacob como Tom, o filho mais velho de Xavier. O garoto tem uma interpretação contida, quase intimista, e por isso mesmo muito sensível e convincente. Afinal, que criança lida bem com a separação dos pais e com uma mudança de cidade na sequência? Mas Tom lida com tudo isso de uma forma bacana, realista, e com uma postura que vai ajudar muito ao pai – que é quase uma criança também.
Os atores principais de Casse-tête Chinois já foram citados. Mas há alguns outros importantes para a história que ainda não foram comentados. Vale citar o bom trabalho de Flore Bonaventura como Isabelle, a babá que acaba encantando a Isabelle amiga de Xavier; Jochen Hägele como Hegel e Schopenhauer (aliás, muito boa a sacada de Klapisch em citar filósofos alemães no filme!); Peter McRobbie como o agente de imigração que fica no pé de Xavier; Jason Kravits como o advogado enrolão de Xavier; Dominique Besnehard como o editor de Xavier – e que acaba sendo um pouco a “consciência” do protagonista ao mesmo tempo que é uma ironia sobre histórias do tipo; e Phil Nee como o taxista chinês que acaba ajudando Xavier em um assunto importante.
Da parte técnica do filme, além das deslumbrantes e impecáveis trilha sonora e edição já comentadas, vale citar a direção segura e bem focada de Klapisch (que, este sim, sabe bem como sair do ponto A e chegar no ponto B) e a competente e muito bonita direção de fotografia de Natasha Braier. Essa dupla consegue destilar ótimas cenas em Paris e, principalmente, em Nova York, colocando as cidades como cenários importantes da história.
Casse-tête Chinois estreou em agosto de 2013 no Festival de Cinema Francês d’Angoulême. Depois, em outubro, o filme participaria do Festival de Cinema de Londres. A produção passaria ainda por outros nove festivais ou semanas de cinema, sendo o último deles o Festival de Cinema Montclair, agendado para começar no próximo dia 3 de maio nos Estados Unidos. Nesta trajetória, a produção foi indicada a apenas um prêmio, o de Melhor Trilha Sonora no Prêmio César. Mas o filme perdeu nesta categoria para a produção Michael Kohlhaas.
Para quem gosta de saber sobre as locações dos filmes, Casse-tête Chinois foi rodado em diversas locações de Nova York e teve cenas gravadas ainda na China e em Paris.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,2 para Casse-tête Chinois. Uma boa avaliação para o filme levando em conta o padrão do site. Os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram sete críticas positivas para a produção, o que lhe garante uma aprovação de 100% e uma nota média 7,2. Resultados impressionantes para o padrão do Rotten Tomatoes.
Não há informações sobre o custo de Casse-tête Chinois. Mas de acordo com o site Box Office Mojo, esta produção conseguiu pouco mais de US$ 7,14 milhões de bilheteria nos mercados em que estreou até agora – exceto os Estados Unidos, onde o filme deve estrear no dia 16 de maio.
Casse-tetê Chinois é uma produção 100% francesa.
CONCLUSÃO: Um filme que trata sobre qual é a forma ideal de levar a vida não pode ser só entretenimento. E Casse-tête Chinois não é apenas isso mesmo. Mas ele também não se apresenta como uma produção profunda ou verdadeiramente existencial. O roteiro deste filme é leve na maior parte do tempo e aposta nas pequenas surpresas cotidianas para embalar o espectador em uma história sobre amores, apostas em diferentes direções e comprometimento. Com bons atores e uma trilha sonora ainda melhor, Casse-tête Chinois é destes entretenimentos com toque filosófico que satisfaz quem busca qualidade sem querer um peso muito grande na história. Vai te divertir, mas provavelmente não vai mudar a sua vida. Exceto se estás justamente pensando em como traçar uma linha reta até o ponto B. 🙂
2 respostas em “Casse-tête Chinois – Chinese Puzzle – O Enigma Chinês”
Assisti o filme ontem e gostei. acredito que isso se deve ao fato de que L’auberge Espagnole ser um dos meus filmes favoritos, ou seja, são os mesmos personagens . Gostei da crítica, mas acredito que ela peca pelo fato de não considerar L’auberge Espagnole, Les Poupées Russes e Casse-Tete Chinois como uma triologia, o que de fato é. A partir dessa consideração toda a história faz muito mais sentido Casse-Tete Chinois, uma vez que existem várias referências aos dois primeiros filmes, principalmente nos diálogos entre Xavier e Isabelle.
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Assisti o filme hoje e, infelizmente, não gostei. Esperava muito dele. Sou fã do Albergue Espanhol e de Bonecas Russas e já os assisti diversas vezes. Esse filme é uma continuação dos outros dois. É complicado falar de um sem citar o outro. Achei que as boas características foram perdidas. Por exemplo, a fotografia dois primeiros eram maravilhosas; as músicas também. Esse não teve isso. Antes era Barcelona, Paris, Londres, São Petersburgo e nesse foi o lado mais feio de Nova Iorque. Achei que se perdeu. Faltaram também os amigos de Barcelona que apareceram no Bonecas Russas no final, mas nesse não foram citados. Além disso, o Xavier com a Wendy ficava melhor.
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