Há lugares no mundo onde o risco de uma pessoa ser morta ou de ter a vida modificada de forma radical por praticamente razão alguma é muito maior que em outras partes. O México é um destes lugares. Mas há periferias de vários outros países latinos, africanos, do leste europeu, e de praticamente quase todas as latitudes do mundo onde o risco de tragédias acontecerem também é grande. Em Heli somos apresentados a um cenário complicado em diferentes sentidos no México, onde a vida de um jovem e de sua família muda radicalmente. Um filme humano, que dá espaço para vários silêncios, mas que sofre com um bocado de previsibilidade.
A HISTÓRIA: Dois pés, sangue e uma cabeça encostada no chão com uma bota pressionando-a contra a lataria. O rapaz que está com o rosto pressionado pisca, tem uma fita na boca e algumas vezes tenta se livrar daquela bota. A câmera percorre a carroceria da caminhonete mostrando os dois corpos, passa pelo motorista e pelo caroneiro e se fixa no cenário que vai surgindo à frente do veículo. Os homens que estão nele chegam até uma passarela para pedestres que passa sobre a rodovia, carregam os dois corpos e largam um deles lá do alto enforcado. Depois, deixam o local. Corta. Heli (Armando Espitia) tenta namorar com a mulher, Sabrina (Linda González), mas é contido por ela. Batem à porta. Uma garota que está fazendo o censo (Berenice Arnold Hernández) registra os dados da família de Heli. Em pouco tempo eles terão a rotina interrompida de forma trágica.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Heli): Vários filmes gostam de usar a técnica de mostrar uma cena importante, próxima do final, logo no início para, só depois, retomar no tempo para explicar como os protagonistas chegaram naquele ponto. Algumas vezes essa técnica funciona, porque estimula o espectador a ficar atento a cada detalhe do que virá para saber como os personagens chegaram naquele extremo. Mas outras vezes, como em Heli, esse recurso vai contra a história.
Logo nos primeiros minutos do filme a câmera comandada pelo diretor Amat Escalante, responsável pelo roteiro ao lado de Gabriel Reyes – a dupla ainda contou com a colaboração de Zümrüt Çavusoglu e Ayhan Ergürsel -, revelam dois corpos que sofreram com a violência. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Depois que um dos corpos é jogado da passarela para pedestres, não é difícil desconfiar que o rosto que estava com uma bota sobre ele era o de Heli – afinal, o rapaz aparece na sequência com a mulher. E mesmo de costas, não é difícil desconfiarmos (e não me admira se alguém teve certeza) que a outra vítima era Beto (Juan Eduardo Palacios).
Conforme a história vai se desenvolvendo, achei ruim sabermos logo no início que os dois serão vítimas de um grupo de bandidos. A surpresa, ainda mais em um filme que conta a história de gente simples e marginalizada em diversos sentidos, acaba sendo vital. Heli abre mão deste recurso para tentar despertar a curiosidade do espectador. Uma escolha que vai contra a própria história, não apenas por ser um recurso batido, mas principalmente porque a surpresa da reviravolta sem aquelas cenas teria sido mais impactante.
Se a história de Heli perde impacto ao mostrar parte do desfecho do protagonista e de Beto, o mesmo não pode ser dito do momento em que o filme entra no “castigo” sofrido pelos dois. As cenas são fortes e muito realistas. Especialmente a tortura e a surra sofrida por Beto gela a espinha de qualquer pessoa. Cenas que não podem ser vistas por qualquer pessoa – especialmente pelos jovens, ainda que naquele cenário menores de 18 anos estavam presentes para serem “moldados” por aquela violência.
Como eu disse lá no início, em alguns lugares do mundo a vida é dura e pode ficar radicalmente pior de uma hora para a outra. O ambiente ao redor do personagem Heli é marginalizante. Não apenas porque há perspectiva praticamente nula de melhora de vida, mas também porque o perigo de confrontos entre cartéis de narcotraficantes e de policiais/militares corruptos é constante.
Interessante como o diretor e roteirista Amat Escalante narra esta história. A câmera dele está sempre próxima dos personagens, mas não fica alheia ao ambiente. Pelo contrário. A escassez de oportunidades de trabalho e de estudo, a violência do treinamento militar e dos traficantes, tudo é explorado através das ações das pessoas e do ambiente inóspito e de escassez de recursos – da estrada de terra e dos quilômetros que devem ser percorridos para ir da casa até o trabalho, até os locais “de lazer” sem nada para fazer procurados por Beto e Estela (Andrea Vergara).
Neste sentido, este filme mostra como uma família e uma cidade podem ser moldados pelo ambiente social. Heli e sua família não conseguem se libertar daquele cenário e acabam, por causa da tentativa mal planejada de Beto em quebrar com aquela rotina, tendo a violência que sempre ficou do lado de fora da porta de entrada entrando com força e mudando a vida de todos.
Sacaneado pelos colegas militares, muitas vezes porque não conseguia acompanhar o ritmo de treinamentos, Beto enxerga no furto de pacotes de cocaína desviados de uma operação que deveria significar a destruição de toda a droga uma oportunidade de fazer dinheiro fácil, rápido e, assim, de buscar uma vida diferente ao lado de Estela, com quem queria casar.
O problema destas “ideias de liberdade” é que elas dão errado em 99,999999% dos casos. E é isso o que acontece com Beto. Imaturo, ele esconde a droga roubada na propriedade da namorada. E é aí que a família de Heli se vê envolvida em algo que eles jamais chegariam perto. A violência surge destruidora, invade a residência e faz quase todos de vítima – apenas Sabrina escapa porque foi se consultar com uma espécie de vidente local.
Escalante acerta ao continuar a história após a cena do enforcamento. Um terço do filme, mais ou menos, revela os desdobramentos daqueles fatos. A vida continuou dura após a morte do patriarca dos Silva, especialmente porque Heli não tem notícias da irmã, acaba sendo visto com reticências pela polícia e ainda perde o emprego. Não há generosidade naquele ambiente. Apenas desconfiança, penalização no primeiro erro e ressentimento.
Criado em um ambiente de extrema simplicidade, Heli não tem muita paciência com a mulher que após dar a luz ao primeiro filho do casal, está se preservando porque não quer abortar. Para ela, é difícil ter abandonado a própria família para viver com o jovem naquele local agreste. Levando em conta o que acontece com Beto e Estela, o romance neste filme é visto com desconfiança – afinal, que frutos o amor pode dar? Apenas a continuidade da pobreza e da vida cheia de explorações?
A dúvida que fica no ar, quando Sabrina diz que não quer abortar, é se aquela comunidade está habituada a resolver a gravidez com abortos ou tendo filhos sem refletir nas condições para dar-lhes uma boa vida, com oportunidades de crescimento satisfatórias. Ou seja, planejamento familiar nulo, como acontece em tantos outros lugares. E aí a pobreza apenas segue de geração em geração.
O que Heli nos ensina, como tantos outros filmes com histórias complicadas, é que a vida segue após a tragédia. Nesta produção, de forma dura, com outros problemas, como a vida real. Ainda assim, há esperança e pequenas surpresas. Como o retorno de Estela, que aparentemente foge do cativeiro e consegue voltar para a casa da família caminhando. E o próprio Heli, mesmo demitido, pouco a pouco parece retomar a própria vida. Tanto ele quanto a irmã conseguiram sobreviver. E mesmo sob condições complicadas, não existe presente maior que este. Esta produção vale por esse tipo de reflexão que surge após os créditos finais.
NOTA: 8.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Algo interessante no trabalho de Escalante neste filme é como o diretor varia entre extremos. De cenas em que ele se aproxima dos atores e valoriza as suas interpretações até aqueles planos abertos em que a paisagem praticamente oprime os personagens. Na questão da fotografia, com direção de Lorenzo Hagerman, os tons são naturalistas, valorizando a claridade e a escuridão quando é o momento de cada uma delas aparecer. Também vale destacar a ótima edição de Natalia López.
Sobre o roteiro, outro acerto de Escalante e de seus parceiros é dar bastante espaço para o silêncio. Nestes momentos não importam as palavras ou as intenções, e sim as atitudes dos personagens e a expressão dos atores – o que, em teoria, demonstraria muito mais a vontade de cada um deles. O cinema dos Estados Unidos não está muito acostumado a estes recursos, mas eles funcionam bem na cinematografia latina e na europeia. Para a nossa sorte.
Falando em cinematografia… Heli é uma coprodução do México com a França, a Alemanha e a Holanda. O filme foi rodado em duas cidades mexicanas: Calderones e Guanajuato, ambas no distrito de Guanajuato.
Dos atores presentes neste filme, vale citar o trabalho dos coadjuvantes Reina Torres como a detetive Maribel; Gabriel Reyes como o detetive Omar; e Ramón Álvarez como Evaristo, pai de Heli e de Estela.
Heli é o quarto longa-metragem do diretor espanhol Amat Escalante. Nascido em Barcelona no dia 28 de fevereiro de 1979, Escalante estreou na direção com o curta Amarrados, em 2002, produzido no México, e lançou o primeiro longa três anos depois, Sangre. Heli, sua produção mais recente, foi a escolha do México para representar o país na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira no Oscar 2014. Mas o filme não chegou a ficar entre os cinco finalistas da categoria.
Heli estreou em maio de 2013 no Festival de Cannes. Depois, o filme passaria por outros 21 festivais – um número impressionante! O mais recente foi o Festival de Cinema de Skopje, no dia 26 de abril. Nesta trajetória o filme conquistou 10 prêmios e foi indicado a outros cinco. Entre os que recebeu, destaque para o de Melhor Diretor no Festival de Cannes; Melhor Direção de Fotografia no Festival de Cinema de Estocolmo; Melhor Filme no Prêmio ARRI/OSRAM do Festival de Cinema de Munique; e o Melhor Filme no Elcine First Prize do Festival de Cinema Latino-americano de Lima.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7 para Heli. Os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 13 críticas positivas e sete negativas para a produção, o que lhe garante uma aprovação de 65% e uma nota média de 6,3.
Dos atores envolvidos no filme, achei todos competentes – apesar de, aparentemente, inexperientes. Mas de todos eles, sem dúvida alguma o destaque é a jovem Andrea Vergara. Muito expressiva, ela dá credibilidade para a personagem que é fundamental para a história – afinal, toda a ação se desenvolve a partir desta personagem. Ela simboliza a perda da inocência de uma sociedade agredida pela violência.
Procurei saber um pouco mais sobre Escalante e encontrei esta entrevista interessante dele para o site Butaca Ancha. Logo na primeira pergunta ele comenta porque gosta de trabalhar com atores não-profissionais. De como busca, para um filme como Heli, pessoas do local em que ele vai contar a história. Para começar, Escalante comenta, ele gostaria de fazer documentários.
Depois, afirma que as pessoas precisam acreditar nas histórias e nos personagens e que, por isso, já não é tão fácil pegar uma jovem de um centro urbano e fazer ela se passar por alguém do interior. Ele tem razão, ainda que eu ache que, muitas vezes, um grande ator consegue se fazer passar por qualquer pessoa – e que trabalhar sempre com não-profissionais é uma forma de desvalorizar a categoria. Mas concordo que, algumas vezes, é necessário – como é o caso de Heli.
Outra entrevista interessante com o diretor é esta do TimeOut México. Nela, Escalante comenta como quis mostrar através de imagens a insegurança relacionada ao crime organizado no país – onde não sabe de onde pode vir o perigo. Ele comenta que utilizou fatos reais para se inspirar para a história – como vídeos que vazaram de treinamentos militares em que havia humilhações como a sequência do rapaz tendo que passar sobre o próprio vômito e um sequestro seguido de morte que aconteceu em Guanajuato envolvendo militares. Interessante e recomendada a entrevista.
CONCLUSÃO: A história de pessoas simples normalmente não é contada. Há inúmeros filmes sobre personalidades famosas e histórias incríveis, mas o que acontece com gente comum em lugares complicados geralmente não importa para o cinema. Heli rompe com essa regra não oficial e nos apresenta uma história dura, com pelo menos uma cena de arrepiar, e que faz cada espectador refletir sobre a capacidade das pessoas – e da gente mesmo – em sobreviver independente do que aconteça. Ainda que a produção perca força porque as cenas iniciais “estragam” boa parte da surpresa, após os créditos finais a reflexão sobre o que vimos bate forte. Há esperança no final, por mais difícil que algumas retomadas possam parecer.
Uma resposta em “Heli”
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