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Qu’est-ce Qu’on a Fait au Bon Dieu? – Que Mal eu Fiz a Deus?


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Apenas o humor é capaz de vencer algumas barreiras, situações e preconceitos. Ou, se não é capaz de vencer, pelo menos de diminuir distâncias e de fazer pensar. Qu’est-ce Qu’on a Fait au Bon Dieu? pode ser um destes filmes que vai te deixar indignado(a) e revoltado(a), mas pode ser também uma forma de vencer barreiras, fazer pensar e analisar de uma forma diferente uma situação plausível na vida real. Claro que, como uma boa comédia, esta produção é exagerada. Mas ela não deixa de ter um pé bem fincado na realidade – da França e de tantas famílias “tradicionais” daquele e de outros países.

A HISTÓRIA: Prefeitura de Chinon, Indre-et-Loire, França. Uma cerimônia oficializa a união de Rachid Abdul Mohamed Benassem (Medi Sadoun) e Isabelle Suzanne Marie Verneuil (Frédérique Bel). Do lado de Rachid, uma grande família. Do lado de Isabelle, os pais Claude (Christian Clavier) e Marie Verneuil (Chantal Lauby) e a as irmãs Odile (Julia Piaton), Ségolène (Emilie Caen) e Laure (Elodie Fontan).

Um ano depois, Odile Huguette Marie Verneuil casa com David Maurice Isaac Benichou (Ary Abittan). E um ano depois, Ségolène Chantal Marie Verneuil se casa com Chao Pierre Paul Ling (Frédéric Chau). Para os pais, que são católicos, é um verdadeiro desafio ver três de suas filhas casando com homens de outras origens e religiões. A última esperança deles é que Laure case com um católico.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Qu’est-ce Qu’on a Fait au Bon Dieu?): Este filme deixa claro a que veio logo no início. De forma divertida e propositalmente exagerada, os roteiristas Philippe de Chauveron (que também dirige o filme) e Guy Laurent mostram três das quatro filhas de um casal católico e tradicional francês casando com três homens de origens diferentes. Fica evidente que os pais das meninas não estão, exatamente, felizes.

Esta impressão é confirmada pouco tempo depois, em uma refeição familiar aonde sobram estranhezas, pré-conceitos e provocações. Temperamental, o pai das meninas, Claude, não deixa barato e sai ofendido. No caminho, ele e a mulher Marie falam de cada um dos genros, debatendo sobre qual é o pior. Como normalmente é típico das mulheres, contudo, Marie começa a procurar explicações para os seus sentimentos.

Primeiro, ela se queixa com o padre local (Loïc Legendre) que, só de ouvir a voz da fiel, já fica arrepiado. Ele sabe por aonde vai o andor da conversa entre eles e da confissão que se segue. O sonho de Marie e de Claude era ter um casamento tradicional, com uma das filhas se casando com um católico. Depois da queixa, ela procura as respostas que comentei antes e, ao falar com o marido, comenta que eles também tem uma parcela de culpa na falta de união familiar, já que demonstraram ter preconceitos com as origens muçulmana, judaica e oriental dos genros. Daí surge a ideia de unir a todos no Natal.

Muito bacana como, mesmo cheio de estereótipos – e que comédia não os têm? – o filme vai avançando na solução para aquele problemão de convivência que passa pelas “maledetas” das expectativas e pela frustração delas. Como a maioria das mulheres, Marie ama a família e, para que eles melhorem a convivência, ela se esforça para preparar uma Ceia de Natal que agrade a todos os paladares. Muito fofa!

Como acontece em diversas situações e com diferentes famílias, todos se esforçaram e cederam um pouco em suas posições e, adivinhem? A sintonia começou a acontecer. Esta é uma das grandes lições de Qu’est-ce Qu’on a Fait au Bon Dieu?: o preconceito e a distância que separa as pessoas só existe porque cada um defende o seu lado e dá mais valor para o que lhe diferencia dos demais, ao invés de procurar o que há de comum e buscar entender a outra ótica. Quando todos cedem um pouco, o diálogo acontece e as pessoas começam a entender e a respeitar umas às outras.

Dá tudo certo no Natal, mas há um detalhe que começa a fugir do controle: os pais de Laure tentam arranjar um pretende católico para ela. Mal eles sabem que ela já está namorando sério e que está pensando em casar. (SPOILER – não leia se você não viu o filme). Sem abrir o jogo totalmente para os pais, Laure diz que está namorando e que quer apresentar o pretendente para eles. Pequeno detalhe: Charles Koffi, com quem ela pretende se casar, é negro.

Até aí, não haveria nenhum problema. Afinal, aparentemente, a lamentação dos pais de Laure é que nenhuma das outras filhas tinham casado com um católico e um francês “clássico”. Há franceses negros e que são católicos. Nesta parte, fica evidente que o preconceito não tem só a ver com religião, ou com raça, mas com cor da pele também. O roteiro brinca com isso, de que agora os pais de Laure terão todas as cores do arco-íris na família.

Interessante como os pais nunca se posicionaram contra nenhum dos casamentos. Eles respeitaram as escolhas das filhas, ainda que, entre eles, lamentassem as suas decisões. As irmãs e os cunhados de Laure, contudo, pressionam a garota de que ela deveria escolher outro rapaz que fosse do agrado dos pais. Ora, que direito eles tinham de fazer isso? Nenhum. Mas não é raro ver o caçula da família tendo que satisfazer os sonhos dos pais que os outros não conseguiram propiciar. Laure e Charles não se fazem de rogados, mas nem tudo será tranquilo até o casamento.

No Natal, enquanto Laure passava a festa com a família, Charles vai visitar a família dele na África e descobre que há preconceito do lado deles também. Mais especificamente o pai dele, André Koffi (o ótimo Pascal N’Zonzi), faz o contraponto para Claude. Ele gostaria que o filho casasse com uma negra e não uma “branquela” de uma família de “brancos exploradores”. Os noivos seguem o plano, mas perto do casamento os desentendimentos entre Claude e Marie e a possibilidade de confronto entre os patriarcas Verneuil e Koffi ameaça o planejado.

O final acaba sendo perfeito. Ao externalizarem as suas próprias opiniões e preconceitos, André e Claude percebem, mais uma vez, como antes tinha acontecido com os Verneuil e os seus genros, que eles tem mais coisas em comum do que poderiam inicialmente admitir. E voilà! Os dois se tornam amigos e tudo acaba fluindo bem, apesar deles terem quase colocado tudo a perder.

Descontados os exageros aqui e ali, este é um filme divertido e que nos faz pensar sobre as nossas próprias convicções e atitudes. Afinal, por que algumas vezes não gostamos de certas pessoas? Ou, visto de outra forma, antipatizamos com colegas de trabalho ou temos dificuldade de lidar com quem age diferente do que consideramos “normal”? Será que também percebemos os nossos problemas e mancadas, ou achamos sempre que o “inferno são os outros”?

No fim das contas, quando paramos para pensar um pouco melhor, percebemos que é possível encontrar pontos em comum com todas as pessoas. Mesmo com aquelas que parecem tão diferentes da gente. Este filme nos faz pensar sobre isso e, apenas por esta razão, ele merece ser visto. Claro que a mesma reflexão poderia ser feita em um filme mais reflexivo, sem tanto preconceito transvestido de comédia.

Mas, talvez, se fosse assim, ele não chegaria tão facilmente nas pessoas nas quais essa história precisa chegar e que preferem rir do que “pensar”. Sim, estou sendo um pouco preconceituosa com este comentário, mas quantas pessoas você conhece que preferem ver filmes “leves” e “engraçados” e ter conversas deste gênero do que pensar sobre os seus próprios sentimentos e atos? Eu conheci várias pessoas assim, e acho que uma comédia, talvez, e só talvez, para elas possa fazer alguma diferença.

NOTA: 8,5.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: A narrativa desta produção é linear e sem reviravoltas, mas com aquelas surpresinhas básicas que toda comédia nos pede. Por exemplo, os diferentes perfis dos personagens. Especialmente os homens que casaram com as filhas do casal Claude e Marie tem as suas histórias mais exploradas. As mulheres deles aparecem pouco e, com exceção da artista da família, sabemos pouco sobre os gostos e perfis das demais. Desta forma, dá para dizer que o roteiro da dupla Laurent e de Chauveron é bem construído e condizente com a proposta deles.

Além de roteirista, como comentei anteriormente, Philippe de Chauveron é também o diretor do filme. Ele faz um bom trabalho, que valoriza o desempenho dos atores e, em certos momentos, também o cenário e as paisagens aonde eles estão inseridos. Gostoso de ver a França urbana, mais comum no cinema, e principalmente o país do interior. Neste quesito, vale destacar também a direção de fotografia de Vincent Mathias, que nos apresenta imagens bem iluminadas e que garantem qualidade na proposta de equilibrar a dinâmica entre os atores e os ambientes.

Em diversos momentos o filme reforça a ideia de que a França é um país miscigenado, com grande mistura de raças, credos e cores. De fato, isso é verdade. Mas também é verdade que parte do país sofre com isso ou tem problemas decorrentes desta mistura. Uma busca por notícias no Google rapidamente vai trazer diversas reportagens sobre conflitos raciais ou de cultura na França. Mas isso quer dizer que o povo francês é mais preconceituoso que outros? Não acho que seja assim.

Acredito que todo país que tem uma grande mistura de raças, de etnias e de credos terá maior probabilidade de conflito do que um país em que isso não acontece. Conta para os problemas também quando há algum tipo de “disputa” em jogo – por território, bens ou serviços. No caso do Brasil, que tem também bastante miscigenação, nos “favorece” quando ela foi feita: há alguns séculos ou décadas.

Agora, quando há uma “invasão” em um espaço curto de tempo e quando o país tem uma desigualdade maior entre regiões e distribuição de renda, daí os conflitos podem aparecer mais. Para mim, isso é o que acontece na França e em tantos outros países da Europa. A forma de enfrentar isso é baixar a guarda – tanto as pessoas nativas quanto aquelas que estão indo morar lá – e tentar encontrar os pontos em comum e a convivência. A França discute muito este tema. Nós por aqui fazemos isso o suficiente?

Todos os atores envolvidos nesta produção fazem um bom trabalho. Mas gostei, especialmente, do desempenho de Chantal Lauby como Marie, uma das personagens mais sensíveis da produção; e do trabalho dos grandes Christian Clavier e Pascal N’Zonzi. Eles parecem ter sido forjados para a comédia, esbanjando em expressões e em trejeitos. Muito bons!

As filhas do casal Claude e Marie são muito bonitas, mas impossível não admirar, em especial, Elodie Fontan. Belíssima atriz. Depois dela, Julie Piaton se destaca. Entre os homens, não achei nenhum muito bonito, mas gostei, em especial, do trabalho de Frédéric Chau. Acho que ele tem uma pegada maior para a comédia.

Da parte técnica do filme, além da direção de fotografia bem iluminada e já comentada, vale destacar o bom trabalho de edição de Sandro Lavezzi e a trilha sonora divertida e “pra cima” de Marc Chouarain. Cécilia Blom também faz um bom trabalho na decoração de set, assim como a equipe envolvida no departamento de som.

Qu’est-ce Qu’on a Fait au Bon Dieu? foi lançado no dia 16 de abril de 2014 na Suíça e na França. No Brasil ele estreou no dia 6 de agosto de 2015. A produção que teria custado US$ 13 milhões faturou, apenas na França, pouco mais de US$ 12,2 milhões. Na Alemanha, ele fez mais US$ 3,8 milhões. Na Espanha, outros US$ 1,16 milhão. Ou seja, se somar todos os países, o filme conseguiu empatar o investimento – com a produção e a distribuição – com o resultado nas bilheterias.

Esta produção ganhou dois prêmios e foi indicado para um terceiro até o momento. Entre os que recebeu está o The Bernhard Wicki Award, entregue no Festival Internacional de Cinema Emden, para Philippe de Chauveron; e o de Melhor Roteiro no Prêmio Lumiere, da França.

Os usuários do site IMDb deram a nota 7 para esta produção. Uma boa avaliação, levando em conta o padrão do site. No site Rotten Tomatoes só há uma crítica para o filme, e ela é negativa. Ou seja, este filme não repercutiu praticamente nada e, possivelmente, não será muito apreciado pelo grande público – ele não tem a característica de “bombar” depois de um tempo.

CONCLUSÃO: Este filme não vai revolucionar a sua vida. E nem te mostrar nada muito inovador. Qu’est-ce Qu’on a Fait Au Bon Dieu? é apenas uma comédia que fala sobre assuntos polêmicos e em alta na Europa – e em outras partes. Trata com amor o preconceito e, desta forma, quem sabe, consegue avançar na compreensão de algumas cabeças “fechadas” de que excluir pessoas simplesmente pelo fato delas não serem o que você gostaria é absurdo. Em uma França e em uma Europa com alta dose de miscigenação, com um bocado de conflito cultural e de preconceito, este filme tenta fazer refletir sobre tudo isso com humor. É uma forma de fazer isso. Normalmente, gosto de filmes mais “sérios”, realistas, mas às vezes é bom também “atacar” com outros instrumentos. Esta produção acerta em muitos momentos, inclusive com situações clássicas de casais e seus pais. Vale conferir.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 20 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing e, atualmente, atuo como professora do curso de Jornalismo da FURB (Universidade Regional de Blumenau).

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