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Marie Heurtin – Marie’s Story – A Linguagem do Coração


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Todos merecem uma oportunidade, inclusive de ver a luz. Em outras palavras, todos deveriam ter a chance do conhecimento que, inevitavelmente, passa pela comunicação. Marie Heurtin fala de um caso em que esta luz trazida pelo conhecimento parecia impossível de ser vista. Voltamos para o século XIX para conhecer a história de uma freira que fica comovida por uma garota cega, surda e muda e que acaba se dedicando para trazê-la à luz. Uma história linda, em diversos momentos difícil, mas fundamental.

A HISTÓRIA: Começa dizendo que o filme está inspirado em uma história real que aconteceu na França no final do século XIX. Marie Heurtin (Ariana Rivoire) levanta a mão na carroça para sentir o calor do sol. Quem guia o cavalo ao lado da menina é o pai dela, o Sr. Heurtin (Gilles Treton). A menina está bem amarrada com cordas para não cair. Ele se dirige para o convento em que freiras abnegadas ensinam meninas surdas e mudas a se comunicar. Mexendo na horta com diversos tomates está uma destas freiras, a irmã Marguerite (Isabelle Carré). Ela é a primeira a ver a chegada do Sr. Heurtin e da filha. O contato entre as duas será decisivo para Marie Heurtin.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso só recomendo que continue a ler quem já assistiu a Marie Heurtin): Até hoje não é simples a educação de uma pessoa que é cega, surda e muda. Como fazer a criança aprender as palavras se ela não tem a audição ou a visão para auxiliá-la nessa tarefa. Agora, se hoje ainda existem dificuldades neste sentido, imagine há 120 anos, mais ou menos.

O primeiro fascínio deste filme é justamente mostrar como a educação de cegos, surdos e mudos era tratada há tanto tempo atrás. Na verdade, muitos consideravam que as crianças e adultos com estas deficiências “não tinham jeito”. Não dava para fazer nada para ajuda-las. Mas aí entra em cena a freira Marguerite que, ao ver a Marie Heurtin, sente uma grande compaixão pela menina.

Afinal, paramos pouco para pensar nisso, mas qualquer um de nós poderia ter nascido cego(a), surdo(a) e mudo(a). E que tipo de oportunidade teríamos tido se isso tivesse acontecido? Marguerite tem uma série de sentimentos em relação a Marie Heurtin logo no início. Primeiro, ela fica surpresa, depois fascinada, curiosa, desafiada e com compaixão da menina. E faz aquilo que todo católico deveria se dispor a fazer: levar o conhecimento de Deus e de Jesus para todas as pessoas, independente das condições em que elas se encontrem.

Contrariando a todas as pessoas daquela época, Marguerite insistiu com a madre superiora para buscar Marie Heurtin e tentar ensinar-lhe a língua dos sinais. A tarefa é duríssima e vemos isso em detalhes neste filme. Aliás, este é um dos aspectos desafiadores e ao mesmo tempo um diferencial desta produção: ela não alivia em contar a história. Há diversos momentos de angústia porque vemos Marguerite batalhando para fazer Marie Heurtin sair de seu casulo e começar a entender o mundo ao seu redor e, principalmente, interagir com os outros.

Normalmente não paramos para pensar, mas o que seria de nós sem a comunicação? Mesmo a mais básica, aquela estabelecida entre as pessoas antes da criação do alfabeto. Como jornalista, justamente estudei a história da comunicação, a sua evolução e importância, e existe um autor que trata de forma diferenciada esta questão de como a comunicação foi – e é – fundamental para a história da Humanidade: Manuel Martín Serrano.

Eu tive a sorte de ter uma aula com ele como ouvinte na Universidad Complutense de Madrid. Ele é ótimo, magistral, e quem tiver a oportunidade de ler a algum de seus livros, terá uma noção ainda melhor sobre a importância da comunicação. Mas voltemos para Marie Heurtin. Até que a freira Marguerite se interessa pela garota, ela vive na escuridão. Não apenas da cegueira, mas principalmente da comunicação e, quase que por consequência, do conhecimento.

Como outros filmes já trataram do tema, sem conhecimento, é como se o indivíduo fosse um bicho. Marie Heurtin vivia isolada e se comportava como quase um animal. Por instinto, ela reagia ao que ela não entendia com tapas, socos, esperneando. O que você faria se estivesse exatamente no lugar dela? Uma parte considerável do roteiro do diretor Jean-Pierre Améris e de Philippe Blasband mostra este isolamento e resistência de Marie Heurtin em sair de sua própria escuridão. De fato, não é algo simples. Mas Marguerite não desiste.

Alguns podem achar que Améris e Blasband poderiam ter encurtado um pouco o processo. Afinal, de fato, há muitas cenas quase repetidas de Marguerite tentando ensinar algo para Marie Heurtin e a garota resistindo a isso. Ela não fazia por mal, evidentemente, mas para se proteger. É verdade que há muita repetição neste período, mas acho que a angústia que esta repetição e até uma certa violência que vemos ali ajuda o filme a ser mais realista.

Certamente o sacrifício de Marguerite foi ainda mais intenso do que vemos no filme – afinal, bem ou mal, a história desta produção não se passa dia após dia, mas encurta o processo entre a freira e a sua potencial discípula. De fato o filme tem um ritmo diferenciado, mais lento, bem ao estilo dos filmes europeus – e diferente da maioria dos filmes de Hollywood. Mas isso tem um propósito e ele é bem justificado. Quem vence aquelas cenas de angústia e sofrimento, chega até a redenção do momento em que Marie Heurtin finalmente sai de seu próprio isolamento e entende o primeiro conceito.

Empregando muita repetição e até um pouco de “violência” física, Marguerite consegue pouco a pouco o que quer. Primeiro ela tira Marie Heurtin de seu isolamento e de seu estado de quase selvageria ao fazer a garota tomar banho e comer sozinha. O passo seguinte e mais difícil é fazer ela pensar além dos instintos e das sensações e transformar o que ela sente e o que ela quer em gestos com significado. Uma criança surda e muda, mas que enxerga, faz isso por repetição. O mesmo acontece com uma criança normal ou apenas cega, mas que escuta. Por repetição ela aprende a se comunicar e a saber o que falar ou gesticular para ser entendida pelos adultos.

Mas uma criança que não vê, não ouve e não fala tem uma dificuldade muito, mas muito maior. Afinal, ela não consegue imitar por causa de seu isolamento criado pelas limitações físicas. Por isso é mágico e especialmente belo quando este filme mostra Marie Heurtin entendendo pela primeira vez que algum gesto que ela faça possa significar algo para outra pessoa. A partir daí a garota tem um avanço rápido intelectual e uma sede enorme por aprender o máximo de palavras que ela pode.

Quando a protagonista aprende a se comunicar, um mundo de possibilidades se abre para ela. Marie Heurtin não está mais isolada e sozinha, ela pode usar o raciocínio para construir frases, conceitos, verbalizar o que sente, o que pensa e o que deseja. Da sua parte, Marguerite já era uma mulher doente quando iniciou o processo de tentar ensinar Marie a falar por meio da língua de sinais. Claro que o processo lhe desgasta ainda mais – mas ele também lhe dá um novo sentido de vida.

Marguerite leva à sério a missão que todo cristão tem – especialmente os dedicados integralmente a Deus, como são as freiras – de evangelizar. Para ela não existe limitação física que possa impedir uma pessoa como Marie Heurtin de ser apresentada para Deus. Este é o objetivo dela e ela se dedica de corpo e alma para esta missão. Este é um outro aspecto do filme, junto com o já comentado da comunicação, que torna esta produção especial. Independente do teu credo ou da falta dele, algo é preciso ser dito: como é bonito e poderoso quando alguém batalha para colocar em prática a missão em que ela acredita. E é especialmente bonito quando esta missão significa ajudar outra pessoa.

Achei tocante o fato de Marguerite querer levar Deus para uma pessoa que inicialmente ninguém acreditava que pudesse sair do isolamento. Mas como a freira comenta para Marguerite em certo momento, Deus está em todos os lugares, inclusive dentro de Marie Heurtin. Pensando nisso, Marguerite tinha a fé de conseguir se comunicar com o Deus que estava no interior daquela jovem que tinha, como os demais, o direito de não apenas saber deste Deus, conhecê-lo, mas também de ter as ferramentas para se desenvolver e crescer.

Este filme pode não ser perfeito – achei ele um pouco repetido e demorado em alguns trechos -, mas achei ele extremamente original e tocante. Também acho que ele tem uma mensagem muito bonita, que não apenas nos faz refletir sobre a importância e o poder da comunicação, mas também da beleza da inclusão de todas as pessoas na sociedade. Todos devem ter uma oportunidade, como eu comentei lá no início.

Além disso, esse filme nos revela a beleza de uma vida dedicada para os outros. Apenas mensagens bonitas e que nos fazem pensar em como nós também poderíamos estar fazendo a diferença para o bem. Tecnicamente, Marie Heurtin pode não ser um filme perfeito, mas pela história que ele propaga, certamente ele é.

NOTA: 9,8.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Este é um filme centrado no trabalho de duas atrizes. E que trabalho, minha gente! A tarefa de Isabelle Carré como a freira Marguerite e a de Ariana Rivoire como Marie Heurtin não são nada simples. Muito pelo contrário. Mas as duas atrizes se entregam de corpo e alma em suas interpretações e passam muita verdade nos dois papéis. Enquanto Ariana Rivoire vive uma boa variação de tipo de interpretação por causa da evolução de sua personagem, Isabelle Carré acerta ao mostrar uma freira com espírito destemido mas singelo, cheia de pureza, obstinação e suavidade – além de uma fragilidade justificada pela questão da sua saúde debilitada. Perfeitas.

Da parte técnica do filme, gostei da direção de Jean-Pierre Améris. Ele está sempre muito próximo das atrizes, especialmente das protagonistas, cuidando de mostrar cada detalhe da interação delas e de seus sentimentos. Algo fundamental para uma história como essa. Como o filme se passa em poucos locais, praticamente inteiro no local em que as freiras vivem, a relação entre as personagens é o ponto a ser explorado.

Outros elementos que merecem ser destacados: a direção de fotografia de Virginie Saint-Martin; a trilha sonora de Sonia Wieder-Atherton; o design de produção de Franck Schwarz; a direção de arte de Vincent Dizien; os figurinos de Danièle Colin-Linard e a edição de Anne Souriau.

Como comentei antes, Marie Heurtin é um filme bastante focado nas duas personagens centrais – a que dá o título da produção e aquela que a ajuda a sair do isolamento em que ela se encontrava. Mas o filme também tem outras atrizes com papéis secundários relevantes. Além da já citada Brigitte Catillon como madre superiora, vale comentar o trabalho de Noémie Churlet como a freira Raphaëlle; e de Gilles Treton como o pai e de Laure Duthilleul como a mãe de Marie Heurtin. Esses são os principais coadjuvantes, mas há ainda as freiras Verónique, vivida por Martine Gautier; Joseph, por Patricia Legrand; Elisabeth, por Sonia Laroze; Blandine, por Valérie Leroux; Marthe, por Fany Buy; entre outras.

Marie Heurtin estreou em agosto de 2014 no Festival de Cinema de Locarno. Depois, o filme participaria de outros 12 festivais, sendo o último deles o Festival de Cinema BUFF, no dia 16 de março deste ano. Nesta trajetória o filme conquistou dois prêmios e foi indicado a outros três. Os prêmios que ele recebeu foram o Variety Piazza Grande Award no Festival Internacional de Cinema de Locarno e o de Melhor Narrativa por escolha da Audiência no Festival de Cinema de Wisconsin.

Os usuários do site IMDb deram a nota 7,5 para a produção. Os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 13 textos positivos e seis negativos para a produção, o que lhe garante uma aprovação de 68% e uma nota média de 7. Belas avaliações, ainda que eu acho que o filme merece mais – dei o 10 acima porque acho ótimas as mensagens do filme, mas se for olhar ele sem paixão, talvez ele merecesse um 9,5 ou 9.

O diretor francês Jean-Pierre Améris nasceu em Lyon e Marie Heurtin é o 17º trabalho dele na direção. A estreia de Améris foi em 1988 com o curta Interim. Depois de Marie Heurtin ele lançou Une Famille à Louer, de 2015. Até o momento, ele recebeu 11 prêmios, a maioria por Les Aveux de L’Innocent, de 1996, e por C’est la Vie, de 2001.

A parisiense Isabelle Carré tem uma carreira bem longa. A atriz estreou em 1989, tem nada menos que 75 trabalhos no currículo e cinco prêmios. Ariana Rivoire, por outro lado, tem 21 anos e estreou como atriz com Marie Heurtin – depois do filme ela participou de um episódio da série de TV Cherif.

Esta é uma produção 100% francesa.

CONCLUSÃO: Um filme fundamental, não apenas por nos fazer refletir sobre o muito que não sabemos e sobre como evoluímos na educação nas últimas décadas, mas também por nos fazer repensar sobre os nossos próprios atos. Quantos de nós poderíamos ajudar mais pessoas a “verem” a luz mas não fazemos isso? Quantos de nós pensamos que sabemos muito e ignoramos tudo aquilo que os outros podem nos ensinar?

Um filme grande e singelo ao mesmo tempo, mas que nos dá um belo exemplo de dedicação ao outro, assim como da importância e da força da comunicação para a nossa evolução – individual e coletiva. Lindo, complexo, fascinante. Se tiver a oportunidade, o assista.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 20 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing e, atualmente, atuo como professora do curso de Jornalismo da FURB (Universidade Regional de Blumenau).

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