Na história das artes sempre existiu a figura do mecenas, aquela pessoa com alto poder econômico e que financiava artistas e suas variadas expressões. Antes era assim e hoje continua sendo. Não são poucas vezes, contudo, em que estes mecenas resolvem também manifestar os seus próprios “dotes” artísticos. O problema é que nem sempre eles carregam o dote que eles gostariam de ter. Marguerite conta a história de uma destas pessoas “endinheiradas” que ajuda outros artistas e que gostaria de ser, ela também, uma grande artista, mas lhe falta talento.
A HISTÓRIA: Começa com música clássica e dizendo que foi inspirada em uma história real. A soprano Nedda (Petra Nesvacilová) canta acompanhada de uma orquestra em um lindo salão. Corta. Capítulo 1 – A Grande Marguerite Dumont. Crianças brincam do lado de fora e muita gente ainda está chegando à propriedade. Estamos em setembro de 1920. Hazel (Christa Théret) apresenta uma carta e diz que é cantora e veio substituir alguém. Ela está atrasada, mas é recebida no portão pelo mordomo Madelbos (Denis Mpunga).
Quase ao mesmo tempo, o jornalista Lucien Beaumont (Sylvain Dieuaide) e o poeta Kyrill Von Priest (Aubert Fenoy) pulam o muro para conferir a grande ocasião do recital feito para arrecadar fundos para os órfãos da guerra. O local está cheio de pessoas ricas e importantes, e Kyrill aproveita para mostrar as suas poesias. Depois de belas apresentações, parte da plateia se sacrifica para ouvir Marguerite Dumont, enquanto parte sai de fininho para que seus ouvidos não sofram. Esta é a história de Marguerite Dumont, uma rica baronesa que cantava muito mal, mas que ninguém tinha coragem de lhe dizer a verdade.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Marguerite): Os franceses sabem fazer filmes complexos com muita sutileza. Marguerite, inicialmente, parece ser apenas uma comédia. Mas sempre há mais de uma camada de leitura em um filme francês. Verdade que há comédia nesta produção, mas também há crítica social, um bocado de melancolia e, porque não dizer, de tragédia.
Pessoalmente, não achei tanta graça assim em Marguerite. Desde o início eu achei aquela situação ridícula da protagonista mais triste do que engraçada. Acho que acabei me colocando no lugar do mordomo Madelbos, com aquele olhar atento, detalhista e ao mesmo tempo de compaixão. Ou mesmo no lugar de Hazel, quando ela percebe como Marguerite canta mal e como todos se divertem desta ilusão que ela nutre de ser uma cantora talentosa.
Vou falar da história antes de falar dos aspectos técnicos da produção. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). No fim das contas, achei a história de Marguerite bem triste e até trágica, e desde o princípio. Logo no início o roteiro do diretor Xavier Giannoli, que teve a colaboração de Marcia Romano, nos apresenta uma senhora de alta classe com muito dinheiro para satisfazer todos os seus desejos materiais, mas em um casamento de fachada, sem afeto ou consideração, e cercada de mentiras.
Marguerite só não é miseravelmente infeliz porque acredita em uma ilusão: de que ela canta muito bem, algo que ela gostaria de fazer desde a infância. Mas o que seria melhor: ela ter uma vida feliz que ela construiria sobre a verdade e por sua própria conta ou ter uma vida “feliz” (entre aspas mesmo) baseada em um castelo de mentiras? Seria melhora ela saber a verdade e ter que enfrentar a sua própria realidade ou viver na ilusão?
Cada um tem o direito de pensar como quiser e de ter a vida que escolher. Mas eu não tenho dúvida sobre as respostas para as perguntas acima. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Marguerite não precisava morrer de desgosto no final desta produção se tivesse, ao invés de acreditado em uma mentira por tanto tempo, ter descoberto a verdade antes, muito antes, e ter tido a liberdade e a coragem de tomar as rédeas de sua própria vida nas mãos.
Eu sempre fui e serei da opinião que a verdade é fundamental. Eternamente eu vou preferir ouvir uma verdade dura e até cruel do que ser iludida por algo falso ou mentiroso. Só sabendo a verdade alguém poderá fazer a avaliação correta dos cenários e buscar escolher o melhor para si e para os demais. A protagonista desta história não teve esta chance por várias razões. Primeiro, pela covardia do marido, Georges Dumont (André Marcon), que nunca foi capaz de dizer para Marguerite que ela não tinha talento.
Depois, ela foi vítima da vida de aparências da época e, principalmente, da hipocrisia e do jogo de interesses da classe da qual ela fazia parte. O mordomo Madelbos escondia de Marguerite as críticas ruins – certamente ele era pago pelo marido para fazer isso. Até o início do filme, a protagonista vivia apresentando a falta de talento para um circuito fechado de amigos – certamente sob a orientação do marido. Mas eis que Lucien e Kyrill invadem o recital da nobreza e conferem de perto o que era apenas um boato para os dois.
Kyrill, um poeta revolucionário e agitador cultural, encara a falta de talento de Marguerite como uma forma de quebrar o status quo, uma atitude corajosa contra o que é belo e correto em uma época com diversos desafios na sociedade. Lucien, por sua conta, faz uma crítica sutil sobre o concerto, essa exposição na mídia anima Marguerite. Sob o convite de Kyrill, que de fato acredita na postura contra o sistema de Marguerite – nada mais exagerado e contra a realidade – ela acaba saindo da casca e se apresentando em um ato político disfarçado de noite artística e orquestrado por Kyrill.
De quebra, claro, Kyrill encara a generosidade de Marguerite como uma boa oportunidade dele fazer dinheiro – seja vendendo poesia, seja vendendo quadros. Lucien, por sua vez, acaba conhecendo mais de perto Marguerite e vendo que ela não é uma rica desmiolada, mas uma pessoa cheia de boa vontade, que se importa e que acredita nos demais – desde o marido que pula a cerca até qualquer pessoa que lhe peça ajuda para a arte. Consequentemente, os amigos acabam se distanciando por encararem a rica sem talento de formas muito diferentes.
Kyrill a vê como instrumento para a sua própria estratégia de romper paradigmas da época. Lucien a encara como uma pessoa que merece respeito e que tem as suas qualidades, apesar de acreditar em uma mentira. Mas depois de começar a se libertar, Marguerite não pensa em parar. E ela encara o desafio de fazer um grande concerto que, claro, não termina bem. Enquanto Georges não tem coragem de impedir a tragédia pessoal da esposa, Madelbos prevê tudo que vai acontecer.
E daí voltamos para a essência da história. Para mim, Marguerite – que é uma ficção, apesar de levemente baseada em uma história real – é um grande exemplo do efeito destrutivo que a mentira e a ilusão podem ter na vida de uma pessoa. Se a protagonista realmente tivesse amigos, algum deles teria lhe dito a verdade. O problema é que a alta sociedade daquela época e a de hoje, e especialmente esta levada que vivemos de “politicamente correto”, impede que as pessoas escutem boas verdades.
Afinal, o lema é que é preciso “cuidar com o que se fala para não ferir os sentimentos das pessoas”. Mas uma coisa é ter tato, é saber quando e como falar, outra bem diferente é fingir, dissimular, esconder e mentir. Em sociedades que foram e que seguem um bocado hipócritas, muitos dizem que o certo deve ser feito sempre, inclusive falar a verdade “doa a quem doer”, mas poucos de fato tem a coragem de fazer o que pregam e defendem. Enquanto isso, vão se acumulando história de pessoas que vivem grandes ilusões e mentiras.
Claro que a culpa, se podemos dizer assim, não é apenas dos outros. Marguerite talvez acreditasse com tanta força que cantava bem, quando não era nada disso, porque ela tinha medo de encarar a verdade sobre a própria vida. Especialmente o desastre de seu casamento. Curioso que, pelas atitudes de Georges, ele realmente amava a esposa ou, pelo menos, se importava e preocupava com ela, apesar de não conseguir demonstrar e nem viver isso na prática. Um covarde em todos os sentidos.
Marguerite acaba ignorando tudo que não é belo e tudo que não lhe agrada ou se encaixa em seu ideal de vida. No fim das contas, foi uma escolha dela este caminho. Dá mais trabalho encarar sempre a realidade, claro, mas por outro lado se colhe exatamente o que se planta – e não ilusões. Marguerite abre mão disso e acaba seguindo uma trajetória trágica. Antes, claro, ela tem pelo menos uma boa noite acompanhada de Lucien e outra bem divertida com a sua nova trupe de artistas e amigos antes de esbarrar com a dura verdade do marido e sua amante.
Com a realidade batendo à sua porta, Marguerite se agarra ainda mais à ilusão e à vontade de cantar, algo que ela ama fazer, apesar de não ter talento. Para finalmente se apresentar para o grande público ela quer estar preparada e por isso segue sendo acompanhada pelo cantor Atos Pezzini (Michel Fau). Ele percebe que ela “não tem jeito”, mas encara o desafio por causa do dinheiro – ele vai receber bem e conseguir pagar as dívidas e ainda sair no lucro.
Não vejo problema em uma pessoa fazer o que ela ama, mesmo que ela faça isso mal. Desde que esta aposta não seja a razão da vida da pessoa, porque aí não será possível ter um fim que não seja ruim ou trágico. Por outro lado, acredito sim que todas as pessoas nascem com vários talentos, e que quando alguém se dedica ao talento errado, está abrindo mão de dedicar-se ao dom que verdadeiramente aquela pessoa tem. Ou seja, puro desperdício.
Marguerite certamente tinha muitos talentos, mas acabou desperdiçando algum ou alguns deles ao apostar tanto em algo para o qual ela não tinha nascido. Todos deveriam fazer este exercício de procurar o seu verdadeiro talento e desenvolvê-lo. Assim teriam muito mais chances de alcançar a felicidade e de fazer a outros felizes. Para mim, esta foi uma das grandes reflexões deste filme, além da crítica às aparências e à hipocrisia de algumas rodas sociais.
Agora, falando da parte técnica da produção. Por ser um filme de época, um dos pontos forte de Marguerite é a reconstrução da França dos anos 1920. Jogam um papel fundamental, neste sentido, os figurinos em cena, a maquiagem, a direção de arte e a decoração dos sets. Tecnicamente o filme é muito bem feito, mas achei que a história é um tanto mediana. Por isso, inclusive, a nota abaixo.
NOTA: 8.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Meus bons leitores e leitoras deste blog, vocês devem ter notado que eu não tenho conseguido escrever muito por aqui. Pelo menos não tanto quanto eu gostaria. Isso está acontecendo porque nas últimas semanas eu tenho trabalhado demais na minha profissão, inclusive com novos desafios. Mas pretendo, em breve, retomar a frequência de pelo menos duas atualizações por semana aqui no blog. Vejamos se eu consigo. Obrigada pela paciência de vocês e por acompanhar esta página.
O roteiro de Xavier Giannoli, com a colaboração de Marcia Romano, tem um bom ritmo e vários acertos. Por outro lado, achei que ele carregou um tanto as tintas, um pouco além da conta. Certo que a intenção era fazer rir e, se possível, provocar reflexão no público. Mas há um pouco de exagero nas caricaturas. Boa parte dos personagens são um tanto exagerados, o que torna o trabalho de Giannoli mais “fácil”, por um lado – afinal, exageros e caricaturas normalmente fazem rir e “popularizar” as histórias -, mas mais simplista também, por outro lado.
Apesar do exagero, das caricaturas e do roteiro um tanto simplório, Marguerite tem ao menos uma qualidade: um grande trabalho dos atores. Catherine Frot está perfeita como Marguerite, demonstrando diversas camadas da personalidade da personagem; e André Marcon como Georges e Denis Mpunga como Madelbos também tem trabalhos de destaque, muito sensíveis e expressivos inclusive em cenas em que expressam muito apenas com o olhar.
Outros três personagens importantes no filme são vividos com sensibilidade por Sylvain Dieuaide, o jornalista apaixonado por Hazel e que não tem coragem de assumir o que sente; pela própria Christa Théret, em um trabalho realmente interessante e que mostra como a atriz é promissora; e Aubert Fenoy em uma interpretação um tanto exagerada como Kyrill.
Junto com o belo trabalho de Michel Fau como Atos Pezzini estão os seus “fiéis escudeiros” na história e que fazem um bom trabalho também: Sophia Leboutte como Félicité “la barbue”; Théo Cholbi como Diego; e Boris Hybner como Mr. Callot, o pianista que não escuta nada e por isso consegue acompanhar as aulas de Marguerite. Também tem certo destaque o trabalho de Astrid Whettnall como Françoise Bellaire, a amante de Georges, e o ator Vincent Schmitt como o médico que trata Marguerite.
Da parte técnica do filme, sem dúvida alguma merecem aplausos o design de produção de Martin Kurel; os figurinos de Pierre-Jean Larroque; a direção de fotografia muito precisa e atenta aos contrastes que dão mais dramaticidade para a história de Glynn Speeckaert; a trilha sonora de Ronan Maillard; a edição de Cyrill Nakache; a direção de arte de Pavel Tatar; e a decoração de set de Véronique Melery.
Marguerite estreou em setembro de 2015 no Festival de Cinema de Veneza. Depois o filme passaria, ainda, por outros quatro festivais. Nesta trajetória, a produção conquistou seis prêmios e foi indicada a outros 13. Entre os prêmios que recebeu, destaque para os de Melhor Atriz para Catherine Frot, o de Melhor Figurino, o de Melhor Som e o de Melhor Design de Produção no Prêmio César, considerado o Oscar do cinema francês. Catherine Frot também ganhou como Melhor Atriz no Prêmio Lumiere e Xavier Giannoli ganhou o Prêmio Nazareno Taddei no Festival de Cinema de Veneza.
Como comentei antes, este filme é inspirado em uma história real. Apenas inspirado. Porque a verdadeira fonte da inspiração era muito diferente de Marguerite. Florence Foster Jenkins era americana, herdeira de um banqueiro e fez carreira como cantora na Nova York dos anos 1940, apesar de não ter talento para isso. É possível saber um pouco mais sobre a sua vida neste link da Wikipédia. A história dela vai estrear logo mais, no dia 7 de julho, no filme Florence Foster Jenkins, dirigido por Stephen Frears e com Meryl Streep como a protagonista – acompanhada de Hugh Grant, Simon Helberg, Rebecca Ferguson, entre outros.
Marguerite foi totalmente rodado em Praga, na República Tcheca. O filme, aliás, é uma coprodução da França, da República Tcheca e da Bélgica.
Os usuários do site IMDb eram a nota 7,2 para a produção, o que é uma boa avaliação se levarmos em conta o padrão do site. Os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 82 críticas positivas e apenas quatro negativas para a produção, o que lhe garante uma aprovação de 95% e uma nota média de 7,5. Avaliações muito boas, pois. O filme é bom, mas francamente eu não achei tuuuuudo aquilo.
CONCLUSÃO: Este é um filme sobre arte, sobre paixão e amor. Os três elementos fazem parte da história de Marguerite Dumont, protagonista desta produção. Com uma bela reconstituição de época e com uma boa dose de humor e de ironia, este filme resgata uma personagem real que acaba nos fazendo refletir sobre os dias atuais. Afinal, quantas pessoas realmente tem talento e quantos vivem apenas das palmas de quem elas conseguem “comprar”? E quantos artistas com talento jamais serão conhecidos porque não tem uma Marguerite para apoia-los? Além disso, está muito presente nesta história os perigos da ilusão não combatida. Uma vida de ilusões e de mentiras pode nos levar para a loucura e a morte. Um filme curioso, mas nada além disso.
3 respostas em “Marguerite”
Desculpe-me mas faltou mais feeling para criticar o filme. Não sei se você percebeu, mas o mordomo que antes era bom e parecia protegê-la na verdade só estava preocupado consigo mesmo e com as fotos que um dia poderiam torná-lo rico e todos aqueles que eram ruins acabaram se tornando bons. Em suma: quanto há de maldade no bom e quanto há de bondade no mal? A verdade sempre é boa ou pode ser ruim? A mentira sempre é ruim ou pode ser boa? É isso que ele deixa para que o espectador reflita e busque a melhor resposta. Em certo momento Marguerite pergunta ao suposto ajudante: “Você acha que a verdade sempre deve ser dita?” E ele responde: “Depende de quem diz”. Ou seja, na vida temos muitas vezes a oportunidade de “salvar” as pessoas próximas contando verdades antes que elas “morram” por saber a verdade por outros quando já é tarde demais. Marguerite morreu pela maior mentira de todas: aquela que contamos a nós mesmos. “O inferno são os outros.” disse Jean Paul Sartre pois só temos acesso ao nosso inferno pelos olhos (ouvidos no caso do filme) de outros.
“Toda verdade é uma ilusão.” A vida é uma ilusão. Sem ilusão, não há vida.
Um abraço!
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Ah e mais uma. Todos os fatos marcantes acontecem sob a cruz de Cristo. Tudo ali é o que de fato é verdade. Considero-me agnóstico para não parecer que minha crítica é religiosa, mas pra mim o que o diretor quis passar é que aos olhos de Deus tudo é visto como deve ser. As mãos sujas de óleo para mentir. O carro enguiçando quando não poderia enguiçar. Em suma: aqui se faz, aqui se paga!
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E para fechar: o único momento que Marguerite cantou bem foi quando ela sentiu no olhar do marido o Verdadeiro Amor (com letras maiúsculas de maneira proposital). Pois só o Amor é capaz de nos tornamos melhores. Por ter recebido o Verdadeiro Amor Marguerite provou que daria o melhor de si e deu até seu sangue. Lembra de mais alguém que deu seu sangue como prova de amor? A cortina cai e câmera filma a mão de Marguerite aberta e com sangue como quem diz: te daria meu sangue pelo seu amor.
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