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Tanna


Algumas questões básicas de uma sociedade moderna podem ser encontradas também em uma sociedade primitiva. Se alguém duvida disso, basta assistir a Tanna. O filme, mais um da leva “baseado em uma história real”, mostra como a disputa entre a tradição e as novas práticas, entre a vingança e a busca pela paz, entre a preservação dos valores de uma comunidade e um amor que quebra promessas são elementos presentes em uma comunidade australiana original e também nas sociedades modernas ocidentais.

A HISTÓRIA: Em uma comunidade encravada na floresta, vemos ao início de mais um dia. O filme avisa que é baseado em uma história real e que é estrelado pelo povo de Yakel. As pessoas começam a sair de suas casas e um senhor varre o chão cantando uma música que fala de como os líderes escolhiam os casamentos “desde o início dos tempos”. Todos os casamentos eram arranjados, até que dois apaixonados resolveram mudar esta tradição e insistir no amor que eles tinham. Esta é a história deles.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Tanna): Logo que a história central de Tanna se apresenta, impossível não pensar que o enredo trata de um “Romeu e Julieta” tribal. Verdade que os protagonistas não são de famílias rivais, mas você tira o conceito familiar de cena e coloca o conceito “familiar” de comunidade tribal e temos o mesmo conceito do clássico de Shakespeare por aqui.

Dito isso, é preciso ponderar que este é um filme muito diferente do que o que estamos acostumados a assistir. Tanna bebe de um tipo de cinema que é de uma história filmada mas que, ao mesmo tempo, é quase documentário. Isso ocorre porque o filme utiliza uma tribo original como “matéria-prima” para as interpretações. Uma bela sacada, sem dúvida, dos diretores Martin Butler e Bentley Dean.

Tanna não teria nem um pouco da mesma graça se fosse um filme interpretado por atores profissionais. O espectador tem outra experiência ao ver os costumes, o brilho nos olhos e a falta de vícios de interpretação das pessoas da tribo Yakel que aparecem em cena.

Esta produção mergulha na realidade e na rotina de uma tribo australiana. Nos faz pensar nas nossas próprias tribos, que ainda sobrevivem a duras penas e “apesar” dos colonizadores/ocupantes atuais da nação. É bonito como os Yakel procuram preservar as suas tradições e sobreviver através justamente desta prática. Afinal, se eles não preservarem o que aprenderam dos antepassados, os seus conhecimentos e forma de viver, o que eles terão de diferente dos demais?

E é justamente frente a esta preocupação de sobrevivência que assistimos a uma ameaça para aquela população. Primeiro, temos uma questão fundamental daquela cultura e de qualquer outra: ensinar para os jovens os valores de seus antepassados. A primeira figura a ganhar relevância na produção é a jovem Selin (Marceline Rofit). Ela é a irmã mais nova de Wawa (Marie Wawa), uma jovem na época para se casar.

Enquanto Selin afronta as ordens dos mais velhos sendo uma “criança rebelde”, Wawa é preparada pelas mulheres da tribo para logo ter o seu casamento arranjado. O que a maior parte da tribo não sabe – Selin é uma das poucas a perceber primeiro isso – é que Wawa está apaixonada por Dain (Mungau Dain), neto do chefe da tribo, Charlie (Charlie Kahla).

Esse grupo vive bem, mas sempre sob a ameaça da tribo vizinha dos Imedin. Eles tem uma antiga rixa, apesar de terem a mesma origem. A exemplo do que vemos em Abril Despedaçado, as duas comunidades estão ameaçadas por um constante revide de parte a parte. Os Imedin matam integrantes dos Yakel e algumas pessoas desta tribo, a exemplo de Dain, que teve os pais mortos pelos adversários, querem vingança.

Como a história de tantas outras civilizações e épocas já nos mostraram, esta ideia de “olho por olho, dente por dente”, nunca funciona. A busca por vingança ad eternum não leva a lugar nenhum, apenas à destruição, mortes e sofrimento. Sabendo disso, depois que o xamã e avó de Selin (Albi Nagia) é atacado por pessoas da tribo rival quando leva Selin para ela ver de perto a “mãe de todos”, Yahul – um vulcão fantástico e muito poderoso, o chefe da tribo Charlie decide dar um basta nas matanças.

Ao invés de deixar que Dain e os demais se vinguem do atentado contra o xamã, ele propõe a paz, uma trégua, e oferece para eles um casamento arranjado. Assim que Wawa é prometida justamente para o herdeiro da outra tribo e responsável pelo ataque contra o xamã. A reação de Wawa e de Dain é resistir a esta ideia, não apenas porque eles não concordam com o acerto, mas porque eles querem ficar juntos.

A história clássica, pois, de um amor proibido, com muita gente “metendo o bedelho” na história dos enamorados. A diferença é o ambiente em que esta história é contada e as pessoas que estão envolvidas nela. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Mas fora esta ambientação, a história é super previsível e conhecida. Os enamorados são proibidos de ficar junto e, vendo que serão forçados a se separar, eles preferem morrer junto – por isso falei antes de “Romeu e Julieta tribal”.

No fim das contas a história deles acaba fazendo as duas tribos rivais a reverem os seus conceitos. Eles acabaram mudando uma tradição ancestral – de que os casamentos eram sempre arranjados – para incluir também a possibilidade de casamento por amor. Sem dúvida alguma, uma evolução que outros povos e sociedades já passaram. Mas cada um tem o seu tempo e a sua vivência, o seu aprendizado.

Se a história propriamente de Tanna não é exatamente nova, muito pelo contrário, o que torna o filme interessante é realmente mergulharmos na história real de um povo. O que ela nos ensina nos faz refletir sobre a própria evolução da Humanidade. Afinal, ainda hoje, mesmo em “sociedades modernas”, muitas pessoas casam por meio de arranjos, interesses, e tantos outros vivem de batalhas, mortes, vingança e destruição. Então, o quanto “avançadas” são estas sociedades?

Acredito que Tanna nos questione isso e também nos mostre a beleza e a riqueza de um povo que luta para manter as suas tradições. Eles buscam e atingem a felicidade, como tantas outras pessoas de outras sociedades sobre a Terra. A diferença é que os protagonistas deste filme parecem ter um respeito e uma conexão com a Natureza que az falta para todos nós de “sociedades modernas”. Esta é uma das belezas de Tanna.

Outra reflexão que o filme sucinta é aquela que eu comentei antes: de que cada grupo encontra a sua própria evolução. Quem pode garantir que eles são menos evoluídos do que os habitantes de Nova York ou de Brasília, por exemplo? Qual é a métrica desta medida? Não acredito que seja o uso da tecnologia, ou de ferramentas e instrumentos, e sim os valores básicos e o respeito que uns tens pelo outros e pelo que os rodeia.

Ainda que em diferentes parâmetros eu acredite que os “filhos de Tanna” estão mais evoluídos do que alguns habitantes de cidades modernas, eles próprios tiveram que sofrer perdas para aprender algumas lições. Isso mostra que todos nós, individualmente e como grupos constituídos, temos sempre o que evoluir, melhorar. Este é um filme singelo e honesto sobre isso e sobre como a força do amor e do perdão são transformadoras.

NOTA: 8,5.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Uma qualidade importante deste filme é o visual dele. Um belo trabalho dos diretores Martin Butler e Bentley Dean – este segundo também assina como diretor de fotografia. Eles sabem valorizar muito bem o entorno das tribos, as belas paisagens que fazem parte da rotina daquela comunidade, especialmente o vulcão Yahul, e também os detalhes das interpretações dos “atores” estreantes.

Outros aspectos técnicos importantes desta produção são a trilha sonora marcante e bem pontual de Antony Partos; a edição de Tania Nehme; e os seis profissionais do departamento de som, que fazem um trabalho fundamental.

O roteiro de Martin Butler, John Collee e Bentley Dean procura contar a história que marcou um período de crise das tribos de Tanna e de que forma ela foi resolvida de forma honesta e o mais fiel possível com a história original. Isso é sempre válido, não há dúvida. Ainda assim, é preciso admitir que a história do filme é o seu ponto fraco, até porque ela parece ser uma colcha de retalhos, em muitos momentos, nem sempre bem costurados, e principalmente porque a história não é original. A originalidade está apenas no ambiente e nas pessoas envolvidas na produção.

Além dos “atores” já citados, vale comentar o bom trabalho de Lingai Kowia como o pai de Selin e Wawa; Dadwa Mungau como a avó das meninas; Mikum Tainakou como o chefe da tribo Imedin; e Linette Yowayin como a mãe das meninas. Entre os nomes principais da produção, o destaque vai realmente para a menina que interpreta Selin, Marceline Rofit, que está sempre com os olhos brilhantes e faz um trabalho confiável e que passa verdade para os espectadores.

Tanna estreou no Festival de Cinema de Veneza em setembro de 2015. Depois, o filme passou por outros 12 festivais mundo afora. Nesta trajetória Tanna acumulou oito prêmios e 21 indicações, incluindo aí a indicação na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira do Oscar 2017.

Entre os prêmios que recebeu, destaque para o Sutherland Award, o prêmio especial do júri do Festival de Cinema de Londres; para dois prêmios no Festival de Cinema de Veneza – o de Melhor Fotografia e o International Critic’s Week Award; e para três prêmios dados para Antony Partos como Melhor Trilha Sonora.

Não encontrei informações sobre o custo de Tanna ou sobre a bilheteria que ele conseguiu fazer nos Estados Unidos e nos demais países.

A única linguagem falada na produção é a Nauvhal.

Tanna foi totalmente rodado na cidade que dá nome ao filme e que fica em Vanuatu, na Austrália.

Os usuários do site IMDb deram a nota 7 para Tanna, e os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 19 críticas positivas e três negativas para a produção, o que lhe garante uma aprovação de 86% e uma nota média de 7,3.

Está é uma coprodução da Austrália e de Vanuatu. Sabendo disso, fui procurar saber mais sobre Vanuatu. Ele é um país que é uma ilha e faz parte da Oceania. Hoje República independente, Vanuatu ficou independente da França em 1980. Com cerca de 12,2 mil km2 de território, o país tem aproximadamente 208,7 mil habitantes.

Este é o primeiro longa de Martin Butler. Antes ele tinha dirigido apenas à série de documentários para a TV First Footprints. O diretor Bentley Dean tem um pouco mais de experiência, tendo filmado, antes de Tanna, o vídeo documentário Anatomy of a Coup, codirigiu The President Versus David Hicks, três documentários e, ao lado de Butler, a série de documentários para a TV First Footprints.

CONCLUSÃO: Um filme sensível e diferente, que resgata uma história importante de uma tribo pouco conhecida da Austrália que luta para preservar as suas tradições e costumes. Bem filmado e com uma proposta interessante de colocar os próprios integrantes da tribo para vivenciar uma história que realmente aconteceu, Tanna é um filme inusitado para o Oscar.

Ele nos faz pensar sobre como todos somos mais parecidos que diferentes, independente da latitude ou da “evolução” cultural das nossas sociedades. Também nos faz refletir sobre o quanto evoluímos ou não desde as tribos ancestrais, e sobre algumas motivações elementais que parecem impulsionar a Humanidade. Filme interessante, ainda que tenha uma história bastante simples e um tanto arrastada.

PALPITES PARA O OSCAR 2017: A indicação de Tanna na categoria Melhor Filme em Língua Estrangeira do prêmio máximo da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood foi surpreendente. A produção nunca era citada nas bolsas de apostas e, francamente, apesar dele ter várias qualidades, não acho que ele mereceu chegar tão longe.

Desta temporada do Oscar, falta assistir a muitos filmes para completar a lista de 85 produções indicadas por seus respectivos países para uma vaga na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira. Desta grande lista, nove produções avançaram na disputa antes da escolha dos cinco finalistas da categoria.

Então não dá para apontar todos os filmes melhores que Tanna para a lista final da premiação ainda, mas olhando apenas para as produções que eu assisti, além das finalistas, acho que o francês Elle e o venezuelano Desde Allá poderiam ter avançado. Os críticos sempre apontaram Paradise e My Life as a Zucchini como possíveis finalistas. Mas não, Tanna conquistou a sua vaga.

O filme australiano é bom, por todas as razões que eu citei acima, mas não acho que esta é uma produção que deveria estar na lista de finalistas do Oscar. Consequentemente, acredito que ele é o quinto na disputa pela estatueta deste ano. Não tem chances de levar o Oscar para casa.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 20 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing e, atualmente, atuo como professora do curso de Jornalismo da FURB (Universidade Regional de Blumenau).

2 respostas em “Tanna”

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