É comum que ainda muito cedo nos ensinem a amar, perseguir, desejar e cuidar para que a verdade esteja sempre presente. O problema é que quando a vida avança e diversas situações complicadas acontecem, nem sempre a verdade é assim tão desejada. Com o tempo, em realidade, percebemos que algumas vezes a verdade pode ser fatal – e nem sempre por uma escolha racional ou mesmo nossa. The Daughter é um filme contundente que, no fim das contas, questiona justamente a necessidade de todos contarem a verdade e de persegui-la com tanto desejo.
A HISTÓRIA: Começa com uma floresta encoberta de névoa e o som de dois tiros. No chão, um pato olha para o seu algoz. Henry (Geoffrey Rush) mira no animal, deitado e ferido, e acaba decidindo não dar o tiro final. Retornando para o carro, Henry pede para Peterson (Nicholas Hope) terminar com o sofrimento do animal. Acompanhamos o pato, que é levado por Peterson dentro de uma gaiola. Corta.
Em uma fábrica, troncos de árvores são transformados em tábuas de madeira. É lá que trabalha Oliver (Ewen Leslie), um de tantos empregados de Henry que ficarão sem emprego com o fechamento da empresa. Em breve Oliver vai reencontrar o antigo amigo de infância, Christian (Paul Schneider), filho de Henry e que retorna para a cidade para o casamento do pai.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso só recomendo que continue a ler quem já assistiu a The Daughter): Eis um filme que não é nada simples. Especialmente por causa de seu final, mas também graças a uma boa parte do desenvolvimento da história. The Daughter não é simples por ser tão carregado de verdade. E sim, justamente a noção de verdade é o que o diretor e roteirista Simon Stone coloca à prova, rejuvenescendo uma história criada por Henrik Ibsen há mais de um século.
Não deixa de ser revelador que The Daughter comece com dois disparos e com um pato ferido. Esta é a história de diversas pessoas feridas, na verdade. Uma delas, um personagem central para que tudo aconteça como de fato acaba acontecendo, está ferido e sabe disso. A exemplo do pato, que sabe que está ferido e que deve lutar para se recuperar e tentar voltar a voar e sobreviver. Outros estão ou serão feridos e ainda nem sonham com isso.
Como comentei lá no início, este é um filme contundente sobre como a defesa sob todas as circunstâncias da verdade pode causar muitos estragos na vida de uma ou de mais de uma pessoa. Christian aparece em cena como uma bomba que está próxima a explodir. Aos poucos vamos percebendo isso, assim como vamos sabendo detalhes sobre o passado dele e de sua família. Uma conversa com pontas soltas ao redor de uma fogueira entre Christian e o seu amigo de infância Oliver deixa o perigo mais iminente.
Christian é o animal ferido que sabe que foi atingido de forma mortal. O suicídio da mãe e todo o contexto que o envolveu, algo que ele nunca resolveu realmente, acabou afetando o resto da vida dele. Alcoólatra, ele está jogando as últimas fichas para manter o casamento com Grace (Ivy Mak) quando viaja para acompanhar o próprio casamento do pai – algo que parece incrível, já que ele não tem nenhum afeto/apreço em relação ao pai e muito menos qualquer interesse em ver ele se casando novamente.
Ainda assim, ele vai até a cidade onde cresceu e para a casa onde ele encontrou a mãe morta após se matar para ver Henry correr com os preparativos finais para se casar com Anna (Anna Torv). Ela, a exemplo de Charlotte (Miranda Otto), foi empregada de Henry antes dele começar a ter um caso com elas. E esta é a verdade incômoda que começa a aparecer naquela conversa ao redor da fogueira entre Christian e a família de Oliver.
Não existe amor e sim uma carga pesada de ressentimento e de rancor entre Christian e Henry. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Quando Grace finalmente oficializa o fim do relacionamento com Christian, ele realmente perde o controle e acaba falando para o grande amigo Oliver a verdade que ele desconhecia: Charlotte era amante do pai dele quando a mãe se matou na banheira de casa. Ou seja, ela teria sido a “culpada” pela desgraça familiar – ou ao menos é isso que Christian acredita que aconteceu.
É preciso admitir que Christian dá oportunidade para Charlotte contar a verdade, mas ela não faz isso. Como em quase todas as situações de “vida real”, no qual as pessoas evitam de contar verdades que podem abalar ou acabar com o relacionamento que elas prezam tanto. Mas Christian, aparentemente intoxicado pela sua própria frustração, por não ter conseguido ser feliz no casamento como o amigo Oliver, resolve destroçar a felicidade que ele vê perto de si.
Daí começa a desconstrução da importância e beleza da verdade sob a releitura de Ibsen segundo Stone. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Christian sabe que a verdade que ele vai contar para Oliver tem grande potencial de destruir o casamento do amigo. Mas ele não se importa com isso. O problema é que todos são “contaminados” com essa certa urgência de sinceridade extrema. É desta forma que Oliver não fica apenas sabendo que a esposa dele teve um caso no passado com Henry, mas também que deste caso surgiu a tão “amada” por ele Hedvig (Odessa Young).
A sinceridade extrema não termina por aí. Christian acaba contando a verdade sobre a paternidade da garota para Hedvig que, por sua vez, ao procurar por Oliver, acaba ouvindo algumas “verdades” cheias de amargura dele. E aí o filme acelera e termina da pior maneira possível. Daí surgem as perguntas: por que Charlotte tinha que falar toda a verdade para Oliver? Se ela tivesse contado apenas a “meia verdade”, nada do que viria na sequência teria acontecido.
Claro que se Oliver não estivesse alcoolizado e descontrolado, se tivesse um pouco mais a cabeça no lugar, ele também não teria protagonizado a cena mais cruel da produção. Sequência definitiva para o derradeiro final da trama. Enfim, como acontece muitas vezes na vida real, nós vemos em The Daughter uma sequência de erros que termina em tragédia. E, como sempre, sem qualquer necessidade.
A parte mais frágil e sensível da história acabou sofrendo mais que todos os outros e, ao se desesperar, cometendo o pior ato que poderia ter cometido. Claro que achei o final chocante e que não gostei dele. Por isso mesmo, como comento abaixo, acho que este filme tem sim que ser visto mas com reticências.
The Daughter deve ser acompanhado de debates e de reflexões. Não apenas o drama visto em cena poderia ter sido resolvido de outra forma – com Oliver aceitando a verdade com mais equilíbrio e tendo em mente que a filha era dele de qualquer maneira -, como o final poderia ter sido outro.
Hedvig também poderia ter tido outra atitude, ainda que o contexto dela explica muita coisa – ela perdeu o namorado, Adam (Wilson Moore) e vários amigos da escola porque os pais deles se mudaram de cidade atrás de emprego, ao mesmo tempo que teve a “iniciação amorosa” frustrada de forma repetida. Este cenário prévio de ruptura e de rejeição atinge o auge com a atitude de Oliver. Sabemos que muitos adolescentes hoje estão enfrentando os seus dramas pessoais tirando a própria vida, então é preciso debater o assunto e mostrar que os problemas tem fim, mas que a vida deve sempre continuar.
Enfim, achei este filme muito atual e bem construído. A narrativa é crescente e rejuvenesce os temas levantados por Ibsen com muita sabedoria. Acho que a verdade é sempre bem-vinda, desde que ela seja tratada com o devido cuidado. Se o “culpado” conta a verdade na hora certa e, principalmente, da forma correta, este pode ser o melhor caminho. Mas há também “verdades” que não precisam ser conhecidas, porque não tem maior significado do que apenas o seu potencial destruidor.
Concordo com Ibsen de que a verdade deve ser tratada com muito cuidado. Quando isso não é feito, o resultado pode ser trágico. Aprendi, depois de muito tempo, que entre fazer o que é certo e fazer o que é bom, sempre devemos preferir a segunda fórmula. Nem sempre o que é certo também é bom, e o nosso objetivo deve ser procurar sempre o bem, mesmo que ele não seja exatamente sempre “correto”. Claro que esta fórmula vale quando não fazemos mal para os outros, que este deve ser sempre o nosso limite. Enfim, The Daughter levanta discussões longas e importantes. Apenas por isso, ele vale ser visto.
NOTA: 8,8.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Minha gente, que elenco é esse? Fiquei impressionada com os nomes envolvidos em The Daughter. É um realmente deleite ver a vários nomes conhecidos nesta produção, como Geoffrey Rush, Sam Neill (que interpreta o pai de Oliver, o ex-presidiário Walter), Paul Schneider, Anna Torv (saudade dela de Fringe) e Miranda Otto. Todos estão muito bem no filme. Mas, além deles, vale destacar os excelentes Ewen Leslie e Odessa Young. Eles dão um show em seus respectivos papéis. A discussão final entre pai e filha é de cortar o coração. Um dos grandes momentos deste duro filme.
Nos créditos finais de The Daughter, vi que esta produção era inspirada na peça The Wild Duck (O Pato Selvagem) do famoso Henrik Ibsen. Como o final de The Daughter deixa certa “dúvida” no ar, fui obrigada a procurar o original para tirar esta dúvida. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Depois de dar um tiro em seu próprio peito, Hedvig chega com vida no hospital. A última cena do filme sugere, mas não deixa totalmente claro, que ela morreu. Pois bem, segundo Ibsen não há dúvida alguma sobre isso. Hedvig dá um tiro em seu próprio coração e morre no ato. Então, como sugere a Hedvig do filme, que parece não estar respirando, a garota realmente morreu após aquela “avalanche de verdades”.
The Wild Duck foi escrita e publicada em 1884 e estreou no teatro no ano seguinte. Para muitos críticos, esta é a obra mais emblemática de Ibsen. Claro que ela já foi encenada e interpretada milhares de vezes depois de 1885, mas achei impressionante como Simon Stone conseguiu fazer uma versão muito atual da história. Muitos elementos que vemos em cena, desde o desemprego causado por Henry, os problemas familiares de Christian, o “machismo” de Oliver e do contexto em que ele vive e a dificuldade de Hedvig e de outros adolescentes de lidarem com os seus medos e frustrações, são muito, muito atuais.
Além do roteiro, muito bem escrito, o grande destaque do filme é o elenco envolvido no projeto. Além destes elementos, Stone faz um bom trabalho ao valorizar o trabalho dos atores e ao mostrar bem o contexto social um tanto “agreste” e sem muitas oportunidades em que eles vivem.
Da parte técnica do filme, gostei da direção de fotografia de Andrew Commis e da trilha de sonora que amplia o teor dramático da produção e que é assinada por Mark Bradshaw. Vale também comentar a edição de Veronika Jenet; o design de produção de Steven Jones-Evans; a direção de arte de Maxine Dennett; a decoração de set de Sara Mathers; e os figurinos de Margot Wilson.
The Daughter foi rodado em 2014 e estreou no Festival de Cinema de Sydney em junho de 2015. Independente, o filme passou por outros festivais naquele ano e em 2016, estreando em alguns mercados, como o do Brasil, apenas agora, em 2017.
Esta produção foi totalmente rodada na cidade australiana de Sydney.
The Daughter marca a estreia do jovem ator Simon Stone na direção de um longa. Antes, ele tinha dirigido um segmento do filme The Turning, de 2013. The Daughter também foi o primeiro filme com roteiro dele. Vale acompanhar Stone para ver se ele segue com esta boa levada.
Antes de escrever o roteiro e filmar The Daughter, Stone dirigiu uma versão para o teatro de The Wild Duck. Nesta produção para o teatro, o ator Ewen Leslie interpreta ao personagem Hjalmar, no qual o personagem Oliver do filme é baseado.
Hedvig é o único personagem entre o grupo principal que tem o mesmo nome em The Daughter e no original que inspirou o filme, The Wild Duck. O nome de Peterson também permanece o mesmo, ainda que ele teve uma pequena mudança ortográfica.
The Daughter é um filme 100% australiano.
Esta produção ganhou seis prêmios e foi indicada a outros 18. Entre os prêmios que recebeu, destaque para os de Melhor Atriz para Odessa Young, Melhor Atriz Coadjuvante para Miranda Otto e de Melhor Roteiro Adaptado para Simon Stone no “Oscar australiano” conferido pela Academia de Artes do Cinema e da Televisão Australiana; e para os de Melhor Atriz para Odessa Young, Melhor Ator Coadjuvante para Sam Neill e de Melhor Roteiro para Simon Stone no prêmio da Associação de Críticos de Cinema Australiano.
Os usuários do site IMDb deram a nota 6,7 para The Daughter, enquanto que os críticos que tem os seus textos publicados no Rotten Tomatoes dedicaram 42 críticas positivas e 13 negativas para a produção, o que lhe garante uma aprovação de 76% e uma nota média de 6,8. Não há informações sobre o resultado nas bilheterias do filme, e nem mesmo sobre o custo de produção dele.
CONCLUSÃO: Um filme que começa com dois tiros e que termina com outro disparo não pode carregar muita paz em seu interior. The Daughter é um filme bem construído, um tanto teatral e que, na reta final, fica um pouco melodramático. Mas a intensidade tem uma propósito, e ele é muito interessante. Claramente esta produção questiona a convicção de quem defende a verdade sobre qualquer outra variável. Ainda que ela seja bem-vinda, é preciso cuidar com ela.
Uma produção com boa narrativa, grandes atores e uma mensagem contundente no final. Só não gostei, para ser franca, do desfecho um tanto “exagerado”, ainda que eu entenda a razão dele existir desta forma. Um bom filme, mas um tanto perigoso. Em muitas situações, é bom vê-lo com um certo apoio, assistência ou discussão, especialmente se ele for apresentado para o público jovem.
Uma resposta em “The Daughter – A Filha”
Achei a crítica maravilhosa. mas só gostaria de saber onde achou “machismo” em Oliver, quero dizer, você ama uma mulher e cria junto com ela uma menina, para qual doa todo seu amor e determinação, na qual deposita toda sua esperança para o futuro. E um belo dia descobre de uma vez que a mulher que tanto amou/ama te traiu com seu ex chefe, e que sua “filha” na verdade é filha desse homem.
podemos mesmo julgar machista a atitude de Oliver?
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