Quando alguém escreve, mergulha em todos os aspectos de sua vida e daquilo que quer contar. Nossa bagagem sempre está presente, mesmo quando não nos damos conta dela. El Ciudadano Ilustre, a exemplo do recentemente comentado por aqui Paterson, trata de literatura e da vivência do artista. Mas diferente do filme de Jim Jarmusch, El Ciudadano Ilustre tem mais pimenta e humor, além de uma certo “realismo fantástico” que lembra bem parte da literatura latino-americana.
A HISTÓRIA: O mestre de cerimônias apresenta as credenciais e uma rápida biografia do escritor Daniel Mantovani (Oscar Martínez). Apesar de ter vivido grande parte de sua vida na Europa, o argentino Mantovani espera na ante-sala para receber o Prêmio Nobel da Literatura. Quando ele é chamado ao palco, faz um discurso comentando como, ao receber o prêmio, ele percebe que a sua carreira terminou. Afinal, ele está sendo o artista mais “cômodo” para jurados, especialistas, acadêmicos e reis, e esta, na opinião de Montovani, não deve ser o papel de um escritor.
Cinco anos depois, o escritor argentino segue recebendo prêmios e com uma agenda cheia de eventos. Em alguns ele comparece, outros eventos ele simplesmente recusa. Um destes convites é feito pela prefeitura de Salas, cidade em que ele nasceu e que lhe serve de inspiração para as suas obras. No primeiro capítulo deste filme, Montovani recebe o convite para voltar para Salas. Inicialmente ele recusa, mas depois volta atrás e decide retornar para a cidade natal para receber o título de “cidadão ilustre” da cidade.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso só recomendo que continue a ler quem já assistiu a El Ciudadano Ilustre): Como é bom voltar para o bom e velho cinema argentino! Porque sim, é muito difícil ver a um filme do país vizinho e não gostar do que assistimos. El Ciudadano Ilustre segue esta linha de satisfação quase sempre garantida, apresentando um filme inteligente, interessante, literário e bastante humano.
Esta produção foi a indicação deste ano da Argentina para o Oscar. Uma bela escolha, ainda que o filme fuja do padrão hollywoodiano. O roteiro de Andrés Duprat mergulha no fazer literário tendo como protagonista um escritor que lembra muito a outros nomes da literatura latino-americana, especialmente aqueles da escola do “realismo mágico”. Como assistir a El Ciudadano Ilustre e não lembrar de “Cien Años de Soledad” do grande Gabriel García Márquez?
Claro que há muitas outras referências, como os argentinos Julio Cortázar e Jorge Luis Borges, entre outros. Também me lembrei muito de José Saramago, o português que ganhou um Nobel da Literatura, a exemplo do protagonista deste filme, e que não achou, exatamente, que este foi um grande “presente”. E aí está uma das principais qualidades do roteiro de Duprat, a sua fina ironia.
Logo nos primeiros minutos do filme percebemos que Duprat nos mostra, através de seu Daniel Mantovani, que a noção de sucesso é bastante relativa. Para o protagonista de El Ciudadano Ilustre, os títulos que ele recebe, inclusive o Nobel, não querem dizer nada – ou querem dizer muito pouco. Ele continua “solitário”, incomodado com o que vê ao seu redor e, principalmente, com questões mal resolvidas com a sua cidade natal Salas e algumas pessoas que ele deixou por lá.
Como acontece na vida real, o escritor deste filme também se inspira muito na realidade, nas memórias que tem e preserva de sua cidade natal e a sua gente e, principalmente, na releitura que ele faz desta mesma realidade. Como ele escreve ficção, utiliza alguns elementos da realidade para dar asas para a própria criatividade e deixar fluir a literatura que lhe torna famoso. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). De forma muito inteligente, Duprat nos faz acreditar que Mantovani decide aceitar o convite da prefeitura de Salas para ir para a cidade receber o título de cidadão ilustre do município.
Desde que ele decide aceitar o convite, mergulhamos junto com ele em uma cidade do interior cheia de particularidades. Como tantas e tantas cidades do interior do Brasil, da Argentina e, tenho quase certeza, de qualquer parte do mundo. Quem nunca foi para o “interiorzão” e não viu vários detalhes que Mantovani vai encontrando pelo caminho, desde o ar-condicionado do hotel que só poderá ser usado após um pedido “expresso” do hóspede para a recepção até uma certa falta de oportunidades e do que fazer para uma parte considerável da população.
Personagens curiosos vão aparecendo conforme Mantovani vai se deslocando pela cidade. Muitos deles fascinados por um “cidadão ilustre” que colocou o pequeno “pueblo” no mapa mundial. Mas claro que há sempre o outro lado da moeda, como o prefeito que quer aparecer bem na foto com o escritor que ganhou o Nobel e o artista da cidade que não é premiado em um concurso e que empreende uma guerra particular contra o mais novo “desafeto”. Também há a jovem inteligente que vê no famoso escritor a desculpa perfeita para sair da pequena cidade e buscar uma vida longe dali.
O desenvolvimento da história é linear e bastante lógico, além de saboroso. Duprat tem um texto saboroso, que explora muito bem o contraste entre o escritor famoso e que tem uma grande vivência internacional e reflexiva e o povo simples da cidade em que ele nasceu. Mantovani não tem nada a ver com aquelas pessoas, aparentemente e olhando de forma geral, assim como quase nenhum de nós tem realmente a ver com o nosso lugar de origem – ainda que não podemos, ao mesmo tempo, ser explicados sem esta informação.
Ainda que o filme seja focado no protagonista, acabamos sabendo menos dele do que de Salas. Sim. Os diretores Gastón Duprat e Mariano Cohn sabem conduzir a história de Andrés Duprat com maestria, destacando os locais e personagens de Salas mais do que o escritor ilustre que nos leva por aqueles caminhos. Enquanto a história se desenvolve, acabamos sabendo um pouco sobre ele. Por exemplo, que ele não retorna para Salas há 40 anos – como a mãe dele morreu naquele período, calculamos que a última vez que ele esteve lá foi para o enterro dela.
No vídeo de homenagem que fazem para ele na cidade, acabamos sabendo que o pai dele morreu 10 anos depois da mãe, mas Mantovani não foi para lá naquela ocasião. Ainda que ele frequenta a cidade há tanto tempo, ele deixou lá pessoas que lembram bem dele, como o antigo amigo Antonio (Dady Brieva) e a ex-namorada Irene (Andrea Frigerio) que, agora, está casada com Antonio. Na Espanha, onde mora, Mantovani vive de forma confortável, mas mora sozinho. Em uma conversa com Antonio ficamos sabendo que ele não se casou e que não teve filhos.
Mas se não conhecemos em detalhes a vida pessoas de Mantovani, sabemos sobre os seus valores e formas de pensar e agir, acabamos aprendendo conforme a história se desenvolve. Ele é um sujeito que respeita a todos, mas que não se deixa corromper e nem levar por favores ou promessas bobas. Ele também acha a fama e os prêmios uma bobagem, ou efeitos de um trabalho bem feito. Nada mais, nada menos. Ele não tem muita paciência com pessoas “sem noção” e não tem muitas “papas na língua”. Fala o que pensa e gosta de ter a liberdade para isso.
Para mim, o genial mesmo do filme foi o seu final. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme ainda). No início, como eu comentei, Mantovani não aceita diversos convites, inclusive o feito pelo município de Salas. Depois, a história parece dar uma “virada” e ele vai para lá. No final, aparentemente, ele é morto por Roque (Nicolás de Tracy), e nos últimos minutos da produção parece que vamos ver ele ser velado. E aí vem a grande e inteligente reviravolta: Mantovani está lançando o seu último livro, justamente a história que acabamos de ver.
Um dos jornalistas da coletiva de imprensa pergunta se o livro, que tem Mantovani como protagonista pela primeira vez em suas obras, é baseado em fatos reais. O escritor diz que isso pouco importa e mostra uma marca no peito, brincando que ela pode ter diversas origens. Achei brilhante! Belo final e que deixa a “moral da história” a gosto do espectador.
Da minha parte, acho sim que tudo o que vimos foi uma criação de Mantovani e que ele, de fato, não foi até Salas. Se observarmos bem quando ele “recebe o tiro”, o projétil teria acertado o escritor pelas costas e do lado direito dele. Pois bem, quando ele mostra a “marca” na coletiva de imprensa, ela está do lado esquerdo e na frente do corpo. Ou seja, mesmo que a bala tivesse atravessado da parte de trás para a parte da frente, não estaria deste lado, correto? Um elemento que acho que ajuda a mostrar que o que vimos foi o último livro dele “filmado”. Boa sacada.
Mas como acontece com tantas outras obras, saber o que realmente o escritor quis dizer ou o que tem a ver com a realidade e o que não tem a ver pouco importa. A experiência de deliciar-se com a obra, com a criatividade e com a narrativa do artista é o que interessa. Neste sentido, El Ciudadano Ilustre nos apresenta um filme interessante, bem equilibrado entre o drama e a comédia um tanto ácida.
Uma produção bem escrita e que tem algumas críticas interessantes sobre as pessoas que são consideradas “ilustres” em certa comunidade. Afinal, quem é admirado e quem tem o poder? Às vezes os talentos reconhecidos são os que caem no gosto de grupos, realmente, e outras vezes estas pessoas também sabem provocar e desempenhar o papel esperado de um artista. Por outro lado, quem “manda” é quem tem dinheiro e, muitas vezes, quem aterroriza os demais pela violência. Como bem explora a última obra do protagonista deste filme. Em resumo, um filme que faz pensar e que diverte.
NOTA: 9,4.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: A principal qualidade desta produção é o roteiro de Andrés Duprat, sem dúvida. Ele faz um filme com história linear que apresenta uma bela surpresa e que mistura realidade e ficção de forma estratégica e interessante. Um filme sobre literatura que não apenas mergulha no território de inspiração do escritor como também mostra um pouco de seu processo criativo e uma certa crítica para o “mainstream” da área.
Mesmo sendo o ponto forte do filme, admito que tem partes do roteiro que me pareceram um pouco lugar-comum demais. Em especial a personagem de Julia (Belén Chavanne). Para a “virada” do filme a história dela serve como uma luva, mas dentro do contexto da história e do personagem principal, ela acaba parecendo um tanto forçada. Talvez se a atriz fosse um pouco mais atraente, convenceria mais.
A direção de Gastón Duprat e de Mariano Cohn é boa. Valoriza tanto as particularidades da cidade de Salas quanto o padrão de vida do protagonista e, claro, o trabalho de cada ator. Do elenco, sem dúvida alguma o destaque é Oscar Martínez. Os outros atores se esforçam, mas estão alguns degraus abaixo do protagonista em termos de talento. Alguns são, visivelmente, amadores. Isso acaba prejudicando um pouco o filme porque eles realmente parecem um tanto deslocados em algumas cenas.
Além de Martínez, estão bem na produção Dady Brieva, Andrea Frigerio e, mesmo que aparecendo menos, Nora Navas como Nuria, secretária de Mantovani. Além deles, vale citar o bom trabalho de Manuel Vicente como o prefeito Cacho; Belén Chavanne em um papel muito previsível como Julia; Marcelo D’Andrea como o “inimigo” egocêntrico Florencio Romero, artista local que não “engole” Mantovani; e Julián Larquier Tellarini como o recepcionista do hotel em que o escritor fica hospedado.
Da parte técnica do filme, vale destacar a direção de fotografia de Mariano Cohn e de Gastón Duprat; a trilha sonora de Toni M. Mir; e os figurinos de Laura Donari.
El Ciudadano Ilustre foi rodado nas cidades de Barcelona, na Espanha, e nas cidades argentinas de Buenos Aires (chegada do protagonista no país de origem), Cañuelas e Navarro, estas duas últimas próximas de Buenos Aires e que se passaram pela ficcional Salas.
O filme, que é uma coprodução da Argentina e da Espanha, recebeu 13 prêmios e foi indicado a outros 17. Entre os prêmios que recebeu, destaque para o de Melhor Roteiro Original conferido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas da Argentina; para o de Melhor Filme Iberoamericano conferido pelo Prêmio Goya; para o de Melhor Filme Estrangeiro no Festival Internacional de Cinema de Haifa; para de Melhor Roteiro e para o conferido pela Associação Cubana de Imprensa Cinematográfica no Festival de Cinema de Havana; para dois de Melhor Roteiro e dois de Melhor Filme (Silver Spike e Golden Spike) no Festival Internacional de Cinema de Valladolid; para os de Melhor Filme do Vittorio Veneto Film Festival Award e de Melhor Ator para Oscar Martínez no Festival de Cinema de Veneza; e para o prêmio Open Horizons dado pela audiência do Festival de Cinema de Thessaloniki.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,5 para esta produção, enquanto que os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram oito críticas positivas para o filmes e… só. Ou seja, El Ciudadano Ilustre conquistou uma rara aprovação de 100% no Rotten Tomatoes, somando uma nota média de 7,2 no site. Belo desempenho.
Para quem ficou interessado em saber um pouco mais sobre o realismo mágico na literatura, este texto pode ser uma boa introdução. E conhecer a obra destes e de outros escritores desta escola, claro, vale muito a pena. 😉
Ah, vale falar um pouco sobre os diretores Mariano Cohn e Gastón Duprat. Os dois são argentinos, nascidos em “pueblos” que fazem parte da província de Buenos Aires. O primeiro tem 41 anos e é natural de Villa Ballester, e o segundo tem 47 anos e nasceu em Bahía Blanca. Os dois fazem parceria na direção desde o início da carreira de cada um, no ano 2000, com o documentário Enciclopedia. Antes de El Ciudadano Ilustre eles dirigiram Yo Presidente, em 2006; El Artista, no mesmo ano; e El Hombre de al Lado, em 2009. Fiquei curiosa para ver alguns destes filmes anteriores.
CONCLUSÃO: Um filme inteligente e provocador, que questiona alguns lugares-comum sobre a noção de sucesso e de verdade. El Ciudadano Ilustre é mais um bom exemplar de cinema argentino, com uma história envolvente, interessante, rica em detalhes, muito bem contada e com um grande protagonista. Impossível não lembrar de grandes escritores e o seu ofício, assim como de personagens tão típicos de qualquer parte do mundo e que sempre servem de referência para quem vive de contar histórias. Um filme gostoso e que passa rápido, diferente de Paterson, que também trata de literatura e de inspiração artística. Eis uma boa pedida.