As crianças têm muito a nos ensinar. Da sua forma singela, meiga e diferente da nossa. Amanda nos conta uma destas histórias de aprendizado. Um filme simples, bastante franco e que nos faz pensar sobre a crueza, a brutalidade, a beleza e a simplicidade da vida. Estas questões que nos passam desapercebidas, muitas vezes, porque estamos correndo mais de um lado para o outro do que observando o que realmente se passa ao nosso redor.
A HISTÓRIA: Algumas árvores, locais vazios e o sinal de uma escola. Os estudantes saem, conversam e se despedem. Aos poucos, todos vão embora, menos Amanda (Isaure Multrier), que fica esperando sozinha alguém. Em outro lugar, David (Vicente Lacoste) comenta que as pessoas que ele estava esperando estão atrasadas. A família acaba chegando, e David os recepciona, levando o grupo até o apartamento onde ficarão hospedados. Na escola, Amanda diz que está esperando que David a busque, e uma das responsáveis pelo local pede para ela entrar. David corre para buscá-la e, mais tarde, receberá uma bronca da irmã, Sandrine (Ophélia Kolb).
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Amanda): O cinema francês é sempre delicioso. Franco, humano, sensível. Amanda é mais um filme no melhor estilo francês. Por isso, vale assisti-lo com atenção e com tempo. Com o cuidado que a própria história oferece.
De forma tranquila, sem “fogos de artifício” ou momentos planejados para fisgar o espectador pela surpresa, Amanda nos apresenta uma história cheia de elementos do nosso tempo. (SPOILER – não continue lendo se você não assistiu ao filme ainda). Para começar, a constituição da família que temos no centro da história e a vida de seus personagens. Amanda é filha de uma mãe solteira. A relação dela com a mãe é maravilhosa, mas Sandrine, ainda jovem, não deixa de “curtir a vida” e de buscar o amor.
Apesar disso, não existe a presença masculina de forma visível na vida da mãe ou da filha. A presença masculina na vida de Amanda é do tio, que ela não chama de tio, mas de irmão da mãe. Aliás, eles tem uma relação interessante a esse respeito. Quando os irmãos falam dos pais, geralmente citam eles como referência da outra pessoa também. Um exemplo: quando David fala da mãe dele, cita Alison (Greta Stacchi) como a mãe de Sandrine. Volta e meia os próprios irmãos se chamam pelo nome, assim como Amanda os chama pelo nome. Interessante.
Ainda que esta forma de se referirem uns aos outros pareça um tanto impessoal, David, Sandrine e Amanda tem uma relação muito próxima e afetuosa. Os irmãos claramente cresceram juntos e se mantém unidos apesar das diferenças de gênio ou de vida que possam ter. Acompanhamos eles pela cidade, especialmente David – que é o narrador desta história. Os irmãos circulam por Paris de bicicleta, então temos muitas chances de ver a bela cidade durante esta produção – aliás, esta é uma das qualidades do filme.
Outra qualidade é a forma honesta e simples de conduzir esta história do diretor Mikhaël Hers. Ele é também o roteirista do filme, juntamente com Maud Ameline. Ambos conduzem o roteiro de forma franca, honesta e simples. Assim, nem parece que estamos vendo a uma ficção na nossa frente, e sim quase um documentário. Tudo é contado sob a ótica de David, que é surpreendido pelos fatos como se nós mesmos estivéssemos envolvidos por aquelas situações.
O personagem de David também nos fornece alguns elementos interessantes da vida típica dos nossos dias. Aos 24 anos, o jovem não tem exatamente uma vida segura. Como tantos outros jovens europeus – e de outras partes do mundo – ele não tem um emprego fixo. David vive em um apartamento que não é seu em troca de seu trabalho de administrar um prédio para o seu proprietário. Assim, ele tem que se desdobrar para receber hóspedes e inquilinos e, em troca deste trabalho, ele tem um local para morar.
Algumas vezes, quando é necessário, ele também trabalha para a prefeitura podando árvores. Mas esse trabalho não é regular, então não é algo com o que ele possa contar no seu dia a dia. Além disso, ele vive o seu cotidiano próximo da irmã e da sobrinha e saindo com os amigos. Uma vida bastante normal, por assim dizer, até que um fato chocante acontece e muda as suas perspectivas.
(SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Em um dia de folga, Sandrine marca de fazer um encontro com amigos em um parque da cidade e, justamente naquele local e naquele dia, ocorre um ataque terrorista. Ela e várias outras pessoas são mortas, e isso muda a vida de Amanda, de David e de vários outros. Eis outro tema bastante contemporâneo. A partir deste momento, vemos como um ato terrorista tem um efeito devastador e marcante na vida de pessoas comuns.
Muito interessante e potente a forma com que este filme nos mostra o “day after” da tragédia. A cidade está bastante vazia, alguns locais estão fechados para visitação turística mas, no demais, tudo parece seguir “normal”. E isso é o que Amanda nos mostra com muita franqueza. Enquanto a vida de algumas pessoas muda radicalmente, como a da própria Amanda, que nunca mais terá a mãe por perto e não sabe bem com quem ela seguirá vivendo, para a cidade e seus habitantes a vida continua praticamente igual.
Isso nos mostra a particularidade dos acontecimentos. No nosso microcosmo particular, tudo pode mudar, enquanto no resto do mundo, do país, da cidade e até da sua rua tudo pode continuar praticamente igual. Chama a atenção, nesse filme, como muitas vezes os locais estão vazios. Seria uma reflexão sobre a vida normal na cidade extremamente turística de Paris ou uma forma do diretor simbolizar para o vazio das cidades e como a vida realmente acontece no interior das famílias?
Independente da resposta que esta produção desperte em você, algo é fato: Amanda nos mostra como a vida continua e como é sempre possível sorrir e ser grato à vida como a menina que dá nome a este filme nos ensina. Na sua inocência, delicadeza e franqueza, Amanda acaba não falando da mãe que perdeu e de tudo que mudou na sua vida, mas sempre tem um sorriso para dar ao cumprimentar uma pessoa. Ela está aberta ao que lhe acontece e segue adiante, mesmo sem saber todas as respostas. Inspirador, não é mesmo?
Quem dera que a gente preservasse esse olhar de Amanda por grande parte da nossa vida. Quando viramos adultos, temos muitas responsabilidades, contas para pagar, tarefas que fazer… e nos esquecemos de algumas das emoções e dos olhares mais importantes. Esse filme nos ensina que sim, é importante amadurecer (vide David e suas escolhas), mas que é fundamental também preservar o olhar e os sentimentos de quando éramos crianças (vide Amanda).
A vida acontece enquanto fazemos planos… quanto antes nos damos conta disso, menos acreditaremos na ilusão de que temos tudo sob o nosso controle. Importante sim fazer planos, sonhar, buscar realizar esses planos e sonhos, mas é preciso saber que muito pode acontecer no caminho e que precisamos nos adaptar às mudanças. Como Darwin já nos ensinou há muito tempo, sobrevivem os que conseguem se adaptar. Amanda nos conta muito bem sobre isso, de forma franca, sincera e direta. Um belo filme.
NOTA: 8,3.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Um filme com poucos personagens no centro da trama e atores muito competentes em cena. A produção dirigida com delicadeza e atenção aos detalhes por Mikhaël Hers nos mostra, mais uma vez, que não é preciso pirotecnia ou muitos personagens para contar uma bela história. Se você quer se aproximar das pessoas, dos seus sentimentos e de sua vida, não pode olhar para muitos lados ao mesmo tempo, mas manter o foco em uma ou duas pessoas por vez. Esse olhar atento e próximo faz parte do DNA de Amanda.
Gostei da direção de Mikhaël Hers e do roteiro que ele escreveu junto com Maud Ameline. Eles conseguiram um texto e uma condução muito verdadeiros, como se estivessem acompanhando uma história real e capturando os seus fatos. Um trabalho como este não pode ser feito “sob encomenda” ou de forma paralela a vários outros roteiros. Certamente eles se debruçaram nesta história e a lapidaram até que ela tivesse o tom verdadeiro que vemos em cena. Um presente para quem gosta de uma boa história e simpatiza com o cinema francês.
Como comentei antes, Amanda é focado em poucos personagens. Assim, impossível escapar de um belo trabalho como intérprete. Grande parte do filme está focado em David e Amanda. Assim, sem dúvida alguma, os atores Vincent Lacoste e Isaure Multrier são o destaque da produção. Especialmente a menina, que é realmente encantadora e que garante muita legitimidade para a produção. Lacoste também se sai muito bem nisso.
Além dos dois, merecem destaque, neste comentário, os atores Stacy Martin, que interpreta a Léna, uma inquilina que é recepcionada por David e que acaba se relacionando com ele; Ophélia Kolb como Sandrine Sorel, uma atriz também inspirada e que, infelizmente, por causa da história, acaba aparecendo menos em cena do que gostaríamos; Marianne Basler como Maud Sorel, tia de David; Jonathan Cohen como Axel, amigo de David que também é atingido no parque; Nabiha Akkari como Raja, companheira de Axel; Greta Scacchi como Alison, mãe de David e Sandrine.
Fazem pontas na produção os atores Bakary Sangaré, diretor do orfanato/casa de abrigo que é visitado por David; Claire Tran como Lydia, amiga de David e de Sandrine que volta para Paris sem saber do que aconteceu; Elli Medeiros como Eve, mãe de Léna; Zoé Bruenau como a assistente social que orienta David após a perda da irmã; e Lily Bensliman como a repórter que tenta fazer uma reportagem sobre o perfil das vítimas e encontra David em um café.
A história de Léna e de David tem o seu toque de complicação. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Vejamos. Léna só estava no parque porque conheceu David e porque ele a convidou para estar na confraternização com a irmã. Assim, ela quase morreu por ter conhecido ele, indiretamente. Abalada com o atentado – e como não estar? – ela acaba voltando para a casa da mãe. Percebe-se que ela não sabe lidar muito bem com o que aconteceu e com a relação que tem com David. Mas como o tempo ajuda a curar tudo e como David procura por ela, eles voltam a se reaproximar. Gostei da forma com que a história deles foi conduzida.
Entre os elementos técnicos da produção, destaque para a sensível e bastante presente trilha sonora de Anton Sanko, para a direção de fotografia de Sébastien Buchmann e para a edição de Marion Monnier. Também vale comentar o design de produção de Charlotte de Cadeville e os figurinos de Caroline Spieth.
Amanda estreou em agosto de 2018 no Festival de Cinema de Veneza. Depois, o filme participou de festivais em Bordeaux, Tokyo, no Canadá e na Polônia. Em sua trajetória, Amanda ganhou três prêmios e foi indicado a outros sete. Os prêmios que recebeu foram o de Melhor Filme e Melhor Roteiro no Festival Internacional de Cinema de Tokyo e o Magic Lantern Award no Festival de Cinema de Veneza.
O diretor francês Mikhaël Hers estreou na direção em 2006 com o curta Charell. Depois, ele dirigiu mais dois curtas antes de estrear na direção de longas com Memory Lane, em 2010. Antes de Amanda, ele dirigiu a outro longa, Ce Sentiment de L’Été, lançado em 2015. Pelos outros longas, ele foi indicado a prêmios, mas os primeiros prêmios que recebeu foram dados por seu trabalho com Amanda. Um diretor jovem, de 44 anos, que merece ser acompanhado. Pode render ainda belas produções.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,1 para esta produção, enquanto que os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram oito críticas positivas. Como não há críticas negativas no site, Amanda conseguiu, por enquanto, uma aprovação de 100% no Rotten Tomatoes – e uma nota média de 6,75.
Amanda é um filme 100% francês.
CONCLUSÃO: Um filme que nem parece uma produção de cinema. Amanda lembra mais a um documentário, apesar de ser uma obra de ficção. Mérito, especialmente, dos roteiristas e do diretor Mikhaël Hers, que contam essa história com muita franqueza e com um olhar cuidadoso e sem pressa. A história é forte e faz pensar. Sobre a vida, a morte, a família, a necessidade que todos nós temos de nos adaptarmos e de seguirmos adiantes. Um filme singelo mas muito bacana e sensível. Um trabalho muito bem conduzido por todos, com destaque para os atores principais. Mais um belo exemplar do sempre diferenciado cinema francês. Vale ser visto.