O que é cinema e o que é sonho? O cinema, em última análise, não passa de sonho? O quanto das nossas memórias realmente aconteceram e o quanto do que achamos que aconteceu não passa de ilusão, de “armadilhas” ou de “sonhos” que a nossa mesma mente criou? Todas as questões parecem embalar Long Day’s Journey Into Night, filme chinês que mistura muito bem a questão do sonho, das memórias e do cinema. O filme é alternativo, importante você saber. Ele tem um ritmo bastante lento e, claramente, muitas vezes, ele nos desafia a entender se o que está acontecendo é realidade ou não. Um filme “diferentão” mas que tem uma proposta visual e de estilo bem interessante.
A HISTÓRIA: Um microfone e uma bateria ao fundo. Luo Hongwu (Jue Huang) diz que sempre que a via, ele sabia que estava em um sonho novamente. Ele então comenta que quando você sabe que está sonhando, é uma experiência extracorpórea. Ele também se perguntava, quando estava nesses sonhos, se seu corpo era feito de oxigênio e questionava as próprias memórias. Então ele acorda. Ele está em um quarto de bordel.
A mulher que sai do banho comenta que ele estava falando enquanto dormia, e pergunta com quem ele estava sonhando. Ele diz que com alguém que desapareceu. Ele diz que sempre que está prestes a esquecê-la, ele sonha com ela novamente. A garota pergunta se ela é a sua amante. Ele diz que acha que sim, mas que nunca soube a sua idade ou nome verdadeiro, muito menos o seu passado. Ela diz que parece uma história do livro de capa verde que ele sempre carrega. Ele vai embora enquanto ela segue secando o cabelo. Em breve veremos Luo Hongwu em uma jornada própria que mistura passado, presente, sonho e realidade.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Long Day’s Journey Into Night): Eis um filme com uma proposta interessante. Como a essência mesmo do cinema, que parece ser um pouco sonho, fantasia e um pouco realidade, Long Day’s Journey Into Night também mistura tudo isso em uma história que, no fundo, conta a busca de um homem pela mulher dos seus sonhos, pelo amor, o que, na verdade, marca a busca dele pela própria mãe.
Parece algo freudiano, não é mesmo? E não deixa de ser. Mas afinal, o que é realidade e o que é sonho em Long Day’s Journey Into Night? (SPOILER – não leia se você não assistiu a esse filme). Para mim, grande parte da produção é sonho, imaginação e delírio do protagonista, Luo Hongwu. A direção de fotografia de David Chizallet, Jingsong Dong e Hung-i Yao é algo incrível, um dos pontos altos da produção. Ela mostra o protagonista em seu sofrimento em busca de respostas. Para mim, apenas o início da produção e o encontro dele com a amiga da mãe que o abandonou podem estar mais próximos da realidade. O restante mescla desejos e sonhos dele.
Interessante como o filme dirigido e com roteiro de Gan Bi acompanha o protagonista em suas desventuras atrás de respostas e do amor. No caso, aquele amor originário, que ele teve da mãe que o abandonou e de quem ele nunca soube quase nada – exceto o livro de capa verde que conta histórias que acabam embalando parte da narrativa. O momento que nos leva a acompanhar Luo Hongwu em sua aventura é quando ele volta para a cidade natal, Kaili, para o velório do pai, de quem ele herda uma antiga van.
Com esse veículo ele transita para cá e para lá procurando suas respostas. O quanto do que vemos em cena é realidade ou fantasia, me parece, vai depender do gosto de cada espectador. Para mim, a realidade acompanha o personagem até a cena em que ele encontra a fotografia da mãe escondida no relógio que era do pai. Outro momento de realidade é o encontro dele na prisão com a antiga amiga da mãe (amiga interpretada por Yanmin Bi).
Mas ele realmente se encontra com a ex-namorada do amigo morto Wildcat (Hong-Chi Lee)? Até pode parecer que sim, que ele teve algum encontro com ela. Mas em qual momento realmente ele encontrou e se apaixonou pela namorada do homem que o matou, Wan Qiwen (Wei Tang)? Quando vemos estas cenas, a meu ver, elas estão no passado e fazem parte das reminiscências do protagonista. Assim como quando ele lembra da mãe, quando ainda era jovem.
Ainda que parte do que vemos pode ter “bebido” na realidade, acho que maioria das memórias dele sobre a mulher amada também eram carregadas de fantasia. Na narrativa inicial do filme, Luo Hongwu nos diz que ele nunca imaginou que voltaria para Kaili. Que algo marcante em sua vida ali foi quando o amigo, Wildcat, foi morto.
Naquele ocasião, Luo Hongwu deveria ter ajudado Wildcat a carregar algumas maçãs, mas ele havia acabado de se divorciar, na época, e estava um pouco perdido. Quando se deu conta do compromisso com o amigo, ele já havia sido morto e as maçãs estavam apodrecendo. Ao limpar o carrinho, ele encontrou uma arma e diz que, após encontrá-la, ele sempre passou a ser “atraído pelo perigo”. Isso teria acontecido antes da morte do pai, aparentemente, que é o que faz ele voltar para a cidade.
Então o que vemos em cena, dele procurando a ex-namorada e tudo o mais, o que seria? Me parece um retorno do personagem ao passado, um resgate dos fatos que aconteceram mas, claro, com uma boa dose de fantasia no meio. Ele realmente se apaixona por Wan Qiwen, mas acaba tendo que abrir mão dela quando Zuo Hongyuan (Yongzhong Chen) retorna para a cidade. Ele é o bandidão do pedaço, responsável pela morte de Wildcat, e nem o protagonista e nem a sua “donzela indefesa” parecem ter chance contra ele.
Quando retorna para Kaili, parece que Luo Hongwu está cercado de lembranças, memórias, de sentimentos de culpa, frustração e amor não completamente realizado. A busca dele por respostas, que acaba envolvendo o seu “grande amor” e também a busca pela mãe, acaba nos fazendo mergulhar em um grande sonho que ele acaba tendo. Entre uma lembrança e outra, o acompanhamos em sua busca por respostas – quase em uma investigação policial.
Entre aquele início, dele voltando para a cidade natal, e a parte mais onírica da produção, vivemos constantemente entre o presente e o passado do protagonista, com ele buscando as suas respostas ao mesmo tempo em que mergulha em suas lembranças.
Depois sim, ele embarca completamente em um sonho. E talvez essa seja a parte mais interessante do filme, quando ele fantasia com Kaizhen (também Wei Tang) e se reencontra com a figura materna através da Red-hair Woman (Sylvia Chang). Interessante, realmente.
Então o filme é esse grande jogo entre um brevíssimo presente do personagem, suas lembranças passadas com uma certa dose de fantasia e seus sonhos mesclados com desejos do que poderia acontecer. Uma viagem, realmente, que nos convida para sair do cinema focado na realidade para entrar em um cinema de fantasia e “realismo fantástico”. Uma proposta diferenciada que é visualmente muito interessante, mas que acaba cansando um pouco por diversos trechos de pouco significado para a história.
Achei Long Day’s Journey Into Night um tanto longo demais e com uma preocupação muito grande de Gan Bi de torná-lo essencialmente artístico. Ok o filme ter uma proposta diferenciada. Esse não é o problema. Mas quando as imagens e o estilo do filme contam mais pontos do que a história, a produção acaba sendo um pouco vazia, hermética ou longa demais. Acho que este filme sofre um pouco com isso.
Ainda assim, ele não deixa de ser uma experiência interessante. Vale ser conferido, especialmente se você se interessa por estilos de cinema de outras latitudes, como, neste caso, o cinema chinês. Gostei do filme, mas é preciso estar bem desperto para acompanhá-lo sem dormir no processo. 😉
NOTA: 8.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Dois elementos se sobressaem nesta produção: a sua direção de fotografia e trilha sonora. Excelente o trabalho de construção visual realizado pela direção de fotografia de David Chizallet, Jingsong Dong e Hung-i Yao, assim como o design de produção de Qiang Liu e a decoração de set de Yonghua Li, Dong Li Wang e Changhua Wu. Todos esses elementos ajudam o diretor Gan Bi a construir esta história. Bastante pontual, mas muito marcante também a trilha sonora de Chih-Yuan Hsu e Giong Lim. Essa trilha nos embala em muitos momentos, reforçando a ideia de mistério e de sonho da produção. Marcante, realmente.
Interessante que quando o protagonista entra no seu grande sonho, que o leva na tal longa jornada pela noite, ele mistura todos os elementos que tem a ver com os seus sentimentos – incluindo culpa, curiosidade e desejo. Não por acaso essa parte da história começa em um mina, justamente o local em que o seu melhor amigo, Wildcat, foi encontrado morto. Depois, claro, ele mergulha nas lembranças da cidade, seus eventos e encontros.
O ator de destaque da produção é Jue Huang, que vive o protagonista atormentado e um tanto delirante Luo Hongwu. Depois, além dele, o grande destaque vai para Wei Tang, que interpreta as duas “paixões” da sua vida, Wan Qiwen e a garota dos sonhos dele, Kaizhen. Vale também comentar o bom trabalho, ainda que em cenas bastante específicas, de Sylvia Chang como a mãe de Wildcat e como a Red-hair Woman; de Hong-Chi Lee em praticamente uma ponta como Wildcat; de Yongzhong Chen também em um único momento do filme como Zuo Hongyuan; de Feiyang Luo como o jovem Wildcat, em uma troca interessante com o protagonista no fundo do túnel da mina; e de Yanmin Bi como a amiga da mãe do protagonista.
Além dos elementos técnicos já comentados, vale comentar a boa edição de Yanan Qin; e os figurinos de Hua Li e Chu-Chen Yeh.
Talvez você se pergunte: “Puxa, mas se o filme tem tantos pontos positivos, por que você deu apenas a nota 8 para ele?”. Long Day’s Journey Into Night é um filme interessante e, principalmente, muito bonito e estiloso. Mas quem me acompanha aqui no blog há tempos sabe que, para mim, não basta um filme ter uma proposta interessante e ser visualmente incrível. A história, o roteiro é o que mais me interessa e, nesse sentido, achei esse filme apenas mediano.
Long Day’s Journey Into Night estreou no dia 15 de maio de 2018 no Festival de Cinema de Cannes. Até abril de 2019, o filme participou, ainda, de outros 22 festivais em diversos países pelo mundo. Nessa trajetória, o filme ganhou cinco prêmios e foi indicado a outros 13. Os prêmios que ele recebeu foram o de Melhor Direção de Fotografia, Melhor Trilha Sonora Original e Melhores Efeitos Sonoros no Festival de Cinema Golden Horse, evento que acontece na cidade de Taipei, em Taiwan; o Special ICS Award conferido pelo International Cinephile Society Awards; e prêmio dado pelo júri estudantil do Tokyo FILMeX.
Agora, vale citar uma curiosidade sobre esta produção. A comercialização de Long Day’s Journey Into Night gerou controvérsia. Isso porque o marketing do filme, lançado no circuito comercial no dia 31 de dezembro de 2018 como “um bom evento para celebrar o Ano-Novo”, foi direcionado para o público em geral, sem deixar claro que esta produção tratava-se de um filme de arte. Isso fez com que muitos internautas criticassem a produção, inclusive chamando ela de “falso artístico”. O filme ganhou US$ 38 milhões no primeiro dia de exibição, mas já no segundo dia a bilheteria da produção caiu em 96%. Sem dúvida alguma que essa produção não é um filme para quem não aprecia outras escolas de cinema. Certamente não vai agradar quem curte apenas Avengers. 😉
Long Day’s Journey Into Night apresenta a nota 7,2 no site IMDb. No Rotten Tomatoes, o filme ganhou 49 críticas positivas e apenas quatro negativas, o que confere para o filme uma aprovação de 92% e uma nota média de 7,92. No site Metacritic, o filme registra um “metascore” 88, fruto de 16 críticas positivas e de uma mediana, além do selo “Metacritic Must-see”.
Essa é apenas a quarta produção lançada pelo diretor Gan Bi. Ele estreou em 2012 com o curta-metragem Jingang Jing e lançou o primeiro longa em 2015, Lu Bian Ye Can – conhecido no mercado internacional como Kaili Blues. Depois, em 2016, ele lançou o curta Mi Mi Jin Yu e, agora, em 2018, esse Long Day’s Journey Into Night. Pelo que eu li sobre Kaili Blues, produção que também misturava passado, presente e futuro, o novo filme do diretor parece ser praticamente uma sequência desse seu primeiro longa. Até o momento, Gan Bi coleciona 16 prêmios no seu currículo – além de outras 24 indicações.
Long Day’s Journey Into Night é uma coprodução da China com a França. Bacana ver a um filme chinês, para variar. Apesar deles não terem um cinema tão tradicional quanto o japonês ou como o francês, mas vale acompanhar o que eles nos trazem daquela latitude. O filme todo é falado em mandarim.
CONCLUSÃO: Um filme muito interessante, especialmente em seu visual e no trabalho dos atores, mas que não apresenta um grande roteiro. Sim, Long Day’s Journey Into Night nos faz pensar sobre as questões que apontei no início dessa crítica, mas a história em si conta a trajetória do protagonista, Luo Hongwu, em busca do próprio passado, do seu amor perdido e da figura da mãe que ele nunca teve. O retorno do protagonista para a cidade na qual ele cresceu abre quase um portal no tempo que o leva a misturar passado e presente, assim como sonhos e desejos.
No final, ele tem o desfecho fantasioso de sua história preferida, mas pouco sabemos sobre o que realmente aconteceu. É um filme bonito, mas um tanto vazio de significado – apesar de nos fazer pensar sobre realidade, sonhos, desejos e como alguém pode viver preso em algo irreal. Apesar de apreciar filmes com pegada artísticas e lentos, achei essa produção um tanto cansativa demais. Vale assistir se você tiver interesse pelo cinema chinês e se estiver com vontade de ver a um filme mais onírico, artístico e que joga bem com a ideia de cinema e sonho.