Eu gosto de filmes de terror e de suspenses bem feitos. Normalmente, gosto ainda mais quando se trata de “terror psicológico”. Mas o que acontece quando um diretor e um roteirista resolvem fazer um filme “muito sério” e/ou que tem a pretensão de “dissecar” uma história real? Hummmm… para mim, só podem existir dois resultados possíveis: ou a produção será uma grande obra de cinema ou será uma verdadeira bomba. Rohtenburg está mais para o segundo time. Pretensioso demais, óbvio e longo demais, o filme é um verdadeiro tiro no escuro que acaba acertando o próprio pé dos realizadores. Francamente? A história contada no filme poderia ser narrada em um curtametragem, mas não em um longa. Fraco, chato, ele só não é totalmente desaconselhável porque ele acaba abrigando algumas poucas cenas de terror bem feitas e boas atuações do elenco.
A HISTÓRIA: O filme, da grife “baseado em uma história real”, é narrado pela investigadora Katie Armstrong (Keri Russell), que está escrevendo uma tese sobre a história de um canibalismo que chocou a Alemanha. O roteiro muda o nome dos envolvidos, identificando o canibal como Oliver Hartwin (Thomas Kretschmann), um homem que cresceu sob forte pressão psicológica e controle da mãe, Viktoria (Angelika Bartsch). Depois da morte da sua progenitora, Oliver busca na internet um homem para devorar – e encontra no problemático Simon Grombeck (Thomas Huber) a pessoa que lhe diz “sim”. Katie Armstrong se debruça nos transcritos do processo que garantiu a condenação de Oliver e vai atrás de detalhes da vida do algoz e de sua vítima, visitando inclusive os lugares em que eles cresceram e onde Oliver estudou.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Rohtenburg): Vez ou outra aparece na imprensa um caso impressionante de barbárie. Seja um estudante transtornado que invade uma escola ou universidade e sai atirando para todos os lados, ou um homem que foi descoberto por ter cometido uma série de crimes contra mulheres. No ano passado, por exemplo, o alemão Josef Fritzl chocou o mundo ao admitir que tinha mantido presa em casa sua filha por 24 anos e que, neste período, teve sete filhos com ela. Rohtenburg trata, de forma bastante direta – e sem dissimular praticamente em momento algum – outro crime que marcou a história da Alemanha: o canibalismo praticado por Armin Meiwes em 2001. Como bem define Bernardo de Gregório, na “cultura ocidental moderna o canibalismo é um dos últimos tabus ainda vigentes”. Por isso a história de Meiwes e sua vítima chocou tanto. Aliás, achei interessante o artigo inteiro do Bernardo, que pode ser lido através deste link.
Certos de que uma adaptação da história do “canibal de Rohtenburg” para o cinema seria sinônimo de sucesso, o diretor Martin Weisz e o roteirista T.S. Faull mandaram ver em um roteiro que beira o documentário e busca ser realista. Os nomes dos envolvidos na história real foram modificados, mas todo o restante, do título original do filme até os detalhes de como o criminoso conheceu e interagiu com sua vítima, não deixam dúvidas sobre a origem da narrativa. Particularmente, achei que o filme teria se dado melhor se fosse um documentário do que uma “obra de ficção”. Entendo que o roteirista e o diretor queriam “chocar” o público ao mostrar uma virtual “reprodução” do tão famoso vídeo que serviu de prova para a defesa no julgamento de Meiwes, mas isso poderia ter sido perfeitamente incluído em um documentário – dramatização de fatos reais bastante usada em outras produções, como de forma exemplar pelo comentado aqui Man on Wire.
O fato é que, mesmo que a atriz Keri Russell seja competente e simpática, ela ficou praticamente “enchendo linguiça” nesta história. Além disso, me incomodou um pouco o fato dela estar sempre “maquiada de maneira mórbida” – como se ela, estudante em fase de investigação doutoral, precisasse se “transfigurar” em uma figura mais sombria para adentrar “as profundezas” da parte mais sinistra da alma humana. Hummmm… achei forçado esse aspecto do filme. Também me pareceu que Rohtenburg parece se justificar, a cada minuto que passa, pela promessa do “gran finale”, ou seja, pela reprodução do tão desejado e desesperador vídeo que mostra o crime. O problema é que, quando chegamos ao tal “gran finale”, ele fica bem abaixo do esperado – especialmente para quem já assistiu a algum filme Saw, Cube ou outro título do gênero. Então, nem na parte “terror sanguinolento” este filme se justifica.
Será que ele vale a pena então pela questão do “terror psicológico”? Não, acho que não. Para que um terror psicológico realmente funcione, precisa existir de maneira bastante potente na história o fator suspense. E isso não acontece com Rohtenburg. A história é narrada de tal forma “natural” que não levamos nenhum susto ou mesmo passamos por aquela sensação de “temer pelo que virá”. O roteiro de T.S. Faull deixa claro, desde o princípio, que a “heroína” Katie não poderá ser ameaçada pelo canibal, que está preso. (SPOILER – não leia se você ainda não assistiu ao filme). O único risco aparente é o dela ficar “louca” ao se aproximar tão profundamente da psicose do canibal e de sua vítima que, tudo indica, consentiu em ser comida. Mas ela realmente se aproxima tanto do perfil psicológico de ambos? Não achei. O que ela “descobriu” e nos conta é o mesmo que qualquer pessoa, na época da prisão e do posterior julgamento de Armin Meiwes, descobriria através dos jornais e da televisão na Alemanha. Na verdade, o roteiro de Faull não consegue ir fundo nas questões que podem (ou puderam) estar envolvidas em um crime daquela natureza.
Por tudo que comentei antes, achei o roteiro bastante superficial e fraco. Faull busca o caminho de “terror psicológico” mais do que – e isso sim daria trabalho – o de suspense com carga dramática, o que significaria entrar “na mente” dos envolvidos no crime. O problema é que o roteirista se esquece que para existir um terror psicológico é preciso ser possível um novo crime, é necessário que algum personagem central da história esteja ameaçado – e, ainda que seja “plantado” um momento em que a protagonista “pode ser atacada” lá pelas tantas na história, fica evidente que isso não vai acontecer porque um ataque como este está fora dos objetivos da produção. E mesmo a idéia de “dissecar” a vida do canibal e sua vítima passa longe de ser concretizada porque, volto a dizer, o que descobrimos sobre eles é muito raso e incompleto.
Esta produção não deve agradar nem aos fãs do terror – que apenas no final do filme assistem alguma sequência envolvendo mutilações e canibalismo – e nem aos que procuram encontrar algum “sentido” nos atos de criminosos e vítimas deste tipo. Questões que seriam interessantes de explorar no filme, como o uso da internet para encontrar vítimas e o fetiche masoquista como elemento fundamental da história, foram tratadas de maneira muito ligeira pela produção. De todo o roteiro, gostei especialmente destes dois tópicos, ainda que eles sejam secundários na história.
NOTA: 4,5.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Procurando mais informações sobre o filme – especialmente sobre o caso real que inspirou esta história – encontrei o título que ele recebeu em Portugal: Amor Sinistro. Hummmm… Com este nome a distribuidora do filme estava sugerindo que os personagens de Oliver e Simon viveram, na verdade, um caso de amor? Ok que Simon era um gay assumido, mas esta produção, em momento algum, realmente sugeriu ou deixou claro que Oliver também seria gay. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Aliás, algo que me incomodou um pouco no filme, foi o uso um tanto exagerado de um “amigo imaginário” de Oliver na história. Não li muitos detalhes do processo envolvendo o canibal de Rohtenburg, mas em parte alguma nas matérias que eu encontrei é citado que o condenado Armin Meiwes (o homem que inspirou o filme) falava de conviver com um amigo imaginário… achei uma viagem isso na história “ficcional”.
Como eu disse lá no início, para não dizer que o filme é um completo desperdício, eu gostei do trabalho dos atores – que, coitados, fizeram um verdadeiro milagre com o roteiro fraquinho que eles tinham em mãos. Keri Russell está bem em interpretar uma estudante um bocado “intoxicada” pelo lado sombrio da alma humana – ainda que, volto a dizer, achei a sombra dela sempre carregada um tanto desnecessária. Mas o destaque mesmo são os atores Thomas Kretschmann e Thomas Huber, respectivamente o canibal e a vítima de Rohtenburg. Ambos interpretam de maneira bastante sensível seus personagens complexos. Kretschmann, por exemplo, interpreta um homem que não parece realmente um “monstro” ou um grande vilão. Assim como Huber dá o tom exato de um homem que não conseguia, aparentemente, se perdoar e que buscava, a todo custo, sua destruição através da dor e da mutilação. Ambos demonstram segurança na hora mais difícil da interpretação, quando é concretizado o fetiche mortal. Pelos atores, o filme valeria a pena – pena que todo o resto, incluindo roteiro e direção, se mostrem tão fracos e pobres.
Apenas para citar, outros atores que participam do elenco: Rainier Meissner como o jovem Oliver; Nils Dommning como Karl, o amigo “imaginário” de Oliver; o bonitão Marcus Lucas como Felix, namorado de Simon; Pascal Andres como o jovem Simon; Helga Bellinghausen como a mãe suicida de Simon e Stefan Gebelhoff como o pai do garoto.
Procurando mais informações sobre o filme, fiquei surpresa ao saber que o assassino Armin Meiwes, conhecido como “canibal de Roteburgo”, conseguiu proibir a estréia de Rohtenburg na Alemanha em 2006 – mais detalhes nesta matéria publicada pela UOL Últimas Notícias. Na época, o Tribunal Territorial de Frankfurt considerou que os direitos do criminoso pesavam mais do que a liberdade de expressão da arte e do cinema. O juiz declarou que por mais que o caso do canibalismo alemão tenha chamado a atenção da imprensa, a história de Meiwes não deveria ser transformada em “tema para um filme de terror”. O curioso deste debate é que ele coloca em cena o direito e a utilidade da imprensa e da arte em explorar casos reais de criminosos. Como jornalista, já me perguntei muito sobre o quanto a divulgação de crimes hediondos não pode estimular ou incentivar pessoas desequilibradas a fazerem o mesmo. O debate sobre o quanto uma produção de ficção ou uma reportagem na mídia pode incentivar criminosos é longo e ainda sem uma resposta conclusiva.
Segundo a mesma matéria citada anteriormente, o produtor de Rohtenburg tentou defender o filme dizendo que ele teria sido apenas “inspirado” na história de Meiwes. Oras, está comprovado que o produtor usou apenas uma figura de linguagem, já que Rohtenburg reproduz praticamente de forma literal o processo que causou a condenação de Meiwes a oito anos e meio de prisão em 2004. A reportagem cita ainda que o assassino, com 44 anos em 2006, não foi julgado por canibalismo, já que esta “prática não é caracterizada como crime na Alemanha”. Ele foi condenado mesmo por homicídio, depois de ter confessado que matou, mutilou e comeu parte de sua vítima, o berlinense Bernd Jürgen Brandes, que tinha 43 anos. Nesta matéria do site Omelete há outras informações sobre a decisão da Justiça alemã em proibir a estréia do filme.
Nesta reportagem da BBC News de dezembro de 2003, quando Meiwes estava sendo julgado, existem mais informações sobre a infância e as fantasias do canibal do que no filme inteiro Rohtenburg. No texto, por exemplo, comenta-se que Meiwes fantasia, quando era criança, com seus amigos de escola sendo devorados por ele. Com 41 anos na época do julgamento – ele tinha 39 quando matou sua vítima -, o técnico de informática se mostrava sorridente e tranquilo, afirmando que com o crime ele havia, finalmente, cumprido sua fantasia. O que chamou bastante a atenção das pessoas, na época, é que Bernd-Jürgen Brandes teria consentido com sua morte, ao responder um anúncia que Meiwes havia publicado na internet em março de 2001.
Segundo os investigadores, o canibal buscava pela internet homens magros e loiros, de preferência – o que não era o caso de Brandes. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). O restante dos “detalhes” do crime batem com o roteiro do filme – incluindo a cena em que o canibal serve o pênis da vítima para os dois “comerem” o órgão juntos e a mutilação de Brandes com vários golpes no seu pescoço. O que eu achei especialmente impressionante na matéria da BBC é que os advogados de defesa do canibal alegavam que, levando em conta o fato de que Brandes se “ofereceu” para o abate, sua morte não teria sido um crime (leia-se assassinato). Ah tá… então porque eu digo que quero ser atropelada por um caminhão, o gesto de um caminhoneiro passar por cima de mim propositalmente não significa que ele me matou? Isso seria o que, então? Me poupem!
Outro dato curioso é que o canibal teria duas horas de filmagens de seu crime… fiquei me perguntando o que mais ele teria registrado. Detalhes do esquartejamento? Cenas dele comendo a carne da vítima? Sinistro, muito sinistro. Este homem era realmente louco, desequilibrado, doente ou maníaco, nem sei como classificá-lo. Na época do julgamento, Meiwes disse que pretendia passar o tempo que teria de pena, na prisão, escrevendo suas memórias. Jesus! O homem quer virar um popstar!!
Fiquei especialmente admirada em saber que este filme recebeu nada mais, nada menos que nove prêmios em diferentes festivais pelo mundo afora. Claro que todos eles em festivais “menos importantes” ou que, pelo menos, não ganham tanta projeção quanto os que todos nós conhecemos. Entre os prêmios que levou para casa estão o de melhor ator para Thomas Huber e Thomas Kretschmann no Sitges – Festival Internacional de Cinema da Catalunya (na Espanha), e os prêmios de melhor filme europeu de fantasia nos festivais Sweden Fantastic Film Festival e no Cinénygma – Luxembourg International Film Festival.
Os usuários do site IMDb conferiram a nota 5,2 para o filme – pessoalmente, eu estava em dúvida entre dar-lhe 4,5 ou 5. No Rotten Tomatoes, Rohtenburg tem registradas apenas duas críticas, sendo uma delas positiva e a outra, negativa.
Rohtenburg é uma produção alemã, mas falado em inglês. O diretor, Martin Weisz, nasceu em Berlim em 1966. Além de Rohtenburg, ele dirigiu 60 Seconds (com o qual ele estrou no cinema), o supercriticado The Hills Have Eyes II e, atualmente, está envolvido com o filme Clock Tower.
CONCLUSÃO: Um filme de terror que procura contar de forma bastante fidedigna e “legítima” detalhes de um crime de canibalismo que escandalizou a Alemanha em 2002, quando foi preso um técnico de informática acusado de ter matado e devorado um homem de 43 anos. Tentando seguir um caminho entre o terror psicológico e o drama que “disseca” a vida de um assassino e de sua vítima, Rohtenburg se perde no caminho. Primeiro, porque ele se prende demais aos fatos do crime no qual ele teria sido apenas “inspirado”. Depois, porque na prática ele não se debruça realmente sobre as vidas e as motivações de nenhum dos envolvidos no crime. Acabamos acompanhando apenas uma história superficial sobre aquele ato de canibalismo, sem nenhum grande momento de tensão e suspense. Fraquinho, em resumo. Tanto por tratar de forma pouco aprofundada as questões sociais e psicológicas dos envolvidos, como por não mostrar, para os fãs do terror, cenas realmente fortes do que aconteceu.
SUGESTÕES DE LEITORES: Rohtenburg é mais um filme da série de produções alemãs que estou vendo ultimamente. A escolha da Alemanha para uma série de críticas foi feita pelos leitores deste blog, que escolheram o país em uma enquete feita antes do Oscar deste ano. Queria comentar que me chamou a atenção Rohtenburg porque ele seria um filme “polêmico” (bem entre aspas mesmo!) por ter tido sua estréia proibida na Alemanha em 2006. Mas, no fim das contas, me arrependi um pouco de ir atrás dele. De qualquer forma, aqui está a crítica desta produção. Agora falta menos para terminar minha listinha de filmes alemães… 😉