Demorei para assistir a este filme de 2004, indicado pelo Caio Cézar há um bom tempinho, graças a um certo preconceito. Primeiro porque eu tinha achado o cartaz muito “Enchanted” para o meu gosto. Depois porque, francamente, poucas vezes eu gostei de alguma interpretação do Sr. Jim Carrey. Dito isso, fui deixando o filme para ver depois, até que enfrentei este meu preconceito e parti para assistir a Lemony Snicket’s A Series of Unfortunate Events (nome gradinho, hein?). E que grata surpresa. Para a minha sorte, de quem não estava esperando muito desta produção, me deparei com um filme com efeitos visuais, especiais e de caracterização dos personagens incríveis. Um belo trabalho de equipe e que conta, ainda, com grandes atores em cena e uma história de fantasia envolvente e, na medida do possível, realista e/ou com fundo moral curioso – recomendadíssima para crianças e jovens, especialmente.
A HISTÓRIA: Começa em um bosque encantado, onde proliferam as borboletas e onde vive O Elfinho. Mas esta história feliz é interrompida pelo narrador do filme, Lemony Snicket (com a voz de Jude Law), que nos alerta que o que virá na sequência não será uma história feliz e sim uma narrativa “extremamente desagradável”. Snicket narra o momento em que os irmãos Violet (Emily Browning), Klaus (Liam Aiken) e Sunny (as gêmeas Kara Hoffman e Shelby Hoffman) se tornaram órfãos e passaram a ser perseguidos por um interesseiro familiar chamado Conde Olaf (Jim Carrey).
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Lemony Snicket’s A Series of Unfortunate Events): Como a maioria dos chamados “contos de fadas”, Lemony Snicket’s A Series of Unfortunate Events (que chamarei abreviadamente de LSASUE) tem sua “moral da história”, vários personagens bondosos e um grande vilão. No lugar da bruxa má e invejosa, o filme nos apresenta a um ator ambicioso e interesseiro interpretado por Jim Carrey. Em sua ânsia por conseguir a herança das crianças, o Conde Olaf se passa ainda por outros dois personagens – o de ajudante de cientistas e o de um marinheiro.
Mas antes de falar do desempenho de Carrey, queria ressaltar o carisma e o bom trabalho dos protagonistas desta história. O roteiro de Robert Gordon, baseado nos livros de Daniel Handler, consegue nos apresentar de forma bastante resumida e acertada as “vocações” de cada um dos irmãos. Assim, temos a Violet, de 14 anos, uma inventora que deixaria o MacGyver no chinelo; Klaus e sua paixão pela leitura (e memória privilegiada); e a pequena Sunny, que ainda nem começou a falar, mas que tem um apreço especial por morder quase tudo que vê pela frente, além de um senso de humor único.
Uma das grandes qualidades deste filme é o seu roteiro. Não li a obra de Daniel Handler que resultou no trabalho de Gordon, mas gostei muito da condução de seu texto e, consequentemente, da transposição em imagens de suas palavras – trabalho cuidadoso do diretor Brad Silberling. A verdade é que LSASUE tem tudo que um bom filme de aventura e fantasia precisa ter: ritmo, reviravoltas, acontecimentos estranhos e inexplicáveis em um primeiro momento, perigo, bons personagens, apreço pelos detalhes e pela beleza das imagens de tirar o chapéu.
Outra qualidade do filme é o seu humor sutil e, algumas vezes, sarcástico. Características, pelo que tudo indica, da obra original de Handler – o site dos livros A Series of Unfortunate Events pode ser conferido aqui (em inglês). Para começar, Handler não assina as obras – em seu lugar, ele usa o pseudônimo de Lemony Snicket. A série de livros escritas por ele envolvendo os Baudelaire abrange 13 obras destinadas, inicialmente, para o público infanto-juvenil (mas algo me diz que sua leitura pode ser interessante para qualquer idade).
Algo bacana de suas histórias, pelo pequeno extrato ao qual somos apresentados por este filme, é que elas tratam com a mesma naturalidade mortes/perdas, manifestações do mal (como crimes, cobiça e inveja), a união da família e a importância de se criar um “santuário” em que a “gentileza, a coragem e a abnegação” pelos outros pode ser preservadas. Em outras palavras, com o pseudônimo de Snicket, Handler nos apresenta uma série de livros que tratam dos desafios da vida real, ainda que suas histórias estejam cheias de fantasia.
A impressão que eu tive, ao visitar o site oficial da série de “Lemony Snicket”, é que o filme de Silberling utiliza o material dos três primeiros livros de Handler – talvez algo mais, de algum outro livro, tenha sido incluído no filme para dar um certo “desfecho” (ainda que um bocado aberto) para a história. Ou seja, se a produção tivesse conseguido o sucesso desejado pelos produtores, tranquilamente a história poderia ter tido uma continuação – o que não foi o caso. Uma pena. Nem sempre um filme bem acabado e “redondinho” em seus aspectos principais (roteiro, direção, fotografia e demais cuidados da produção) consegue cair no gosto do público.
Agora, as estrelas de LSASUE são os atores que interpretam os irmãos Baudelaire. Carismáticos e talentosos, ele seguram no tom exato os desafios de seus personagens – que, diga-se, não são poucos. Por outro lado, os intérpretes veteranos desta história deixam um pouco a desejar. Jim Carrey está mais caricato que nunca. Certo que parte de seu papel, como o Conde Olaf, um ator sem talento e ambicioso, exigia esse tom exagerado de Carrey. Ainda assim, achei que ele passa um pouco do limite. Também acho que a sempre ótima Meryl Streep não consegue chegar ao ponto exato da temerosa e cheia de manias tia Josephine. Os únicos que parecem ter se sentido confortáveis em seus papéis foram Billy Connolly como o tio Monty, o cientista aficcionado por cobras da família, e Timothy Spall como Mr. Poe, o advogado que cuida dos bens dos Baudelaire.
Além de reforçar a idéia de que a união faz a força e de que o principal de uma família deve ser a soma de diferentes talentos e características de seus integrantes, LSASUE tem como uma de suas morais a simbologia de um conto sobre a passagem da fase da infância para a vida adulta. Não é por acaso que o narrador cita o gesto de “passar a tocha” como algo simbólico e que, no filme, assume a figura de uma luneta. Objeto esse que nos remete à astronomia e, consequentemente, à ciência e ao conhecimento. Em outras palavras, o ritual de “passagem” de uma vida de brincadeiras, inocência e “pureza” se concretizaria com o conhecimento. Primeiro, o conhecimento do que está distante de nós (através da educação). Depois, do que está mais próximo e, o que é mais difícil, o auto-conhecimento.
Os pais dos Baudelaire morrem de maneira misteriosa, e deixam para os filhos como herança um pouco do conhecimento sobre a complexidade do mundo e da alma humana, cheia de bondade e de maldade. Além disso, está claro, o filme aposta em uma moral otimista, que acredita que é possível criar, não importa aonde ou apesar de quem, um santuário particular (ou entre pessoas com afinidade) onde a “gentileza, a coragem e abnegação” prevaleçam. Uma bela história e com algumas reflexões interessantes para distintos gostos e idades.
NOTA: 8,7.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Lemony Snicket’s A Series of Unfortunate Events é um destes exemplos de filme com a marca de Hollywood. Perfeito nos detalhes, ele nos apresenta uma adaptação perfeita da realidade imaginada pela literatura de Daniel Handler em imagens. Entre os vários profissionais responsáveis por este feito, destaco a direção de fotografia de Emmanuel Lubezki; a direção de arte encabeçada por John Dexter; a decoração de set de Cheryl Carasik e os figurinos de Colleen Atwood, só para citar os aspectos mais destacados do filme.
A lista de profissionais envolvidos no departamento de arte de LSASUE é gigantesca – os curiosos podem dar uma conferida neste link do site IMDb. Não vou citar nomes, mas posso garantir que os cuidados com a parte artística do filme vão até os seus créditos finais, cheios de traços interessantes que lembram algumas produções de Tim Burton. Os efeitos especiais e os efeitos visuais da produção também contaram com dois times grandes, experientes e criativos. Um bom exemplo de produção nestes dois segmentos.
LSASUE custou uma pequena fortuna: US$ 140 milhões. Mas, francamente, eu acreditava que ela teria custado ainda mais – se fosse produzida hoje, em 2009, certamente não sairia por menos de US$ 180/200 milhões. Nas bilheterias o filme teve um desempenho razoável: conseguiu arrecadar pouco mais de US$ 118,6 milhões. Pouco, se levarmos em consideração que o filme foi lançado justamente na época do Natal de 2004 e que perdurou nos cinemas estadunidenses até abril do ano seguinte.
Este filme teve algumas cenas rodadas em Wilmington, na Carolina do Norte; no Rockwell Defense Plant, na Califórnia e, claro, a maior parte da produção foi filmada mesmo em dois estúdios.
O início do filme é muito atrativo. Para começar, aquele começo falso de “O Elfinho”. Depois, Lemony Snicket dizendo que o espectador seria apresentado a uma história sobre “órfãos espertos, incêndios suspeitos, sanguessugas carnívoras, comida italiana e sociedades secretas”. Alguém consegue pensar em algo mais atrativo para a meninada? Mas eu, com a memória talvez um pouco fraca, demorei um pouco para atinar para a tal “comida italiana” na história – um prato tradicional feito por Klaus e que é comentado em mais de uma ocasião.
Outro pequeno ensinamento deste filme é que cada pessoa tem sua serventia, independente da idade ou de sua “vocação”. A inventora Violet, o “intelectual” (como muitos chamam quem gosta de ler tudo que aparece pela frente) Klaus e a pequena Sunny, que é especializada em morder distintos objetos, cada um deles tem um papel decisivo em algum momento complicado da história. Ninguém, segundo a história, é mais importante ou “melhor” que o outro. Quem dera que todos os adultos por aí seguissem essa idéia…
(SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Jim Carrey interpreta ao Conde Olaf que, por sua vez, se passa pelo italiano Stefano e pelo capitão Sham. A maquiagem e o vestuário são os maiores responsáveis pela mudança entre os “personagens”, assim como um sotaque diferenciado que o ator destila para cada um deles. Fora isso, seus trejeitos são praticamente os mesmos para os três personagens – o que irrita aos gostos mais apurados, ao mesmo tempo que justifica, propositalmente, o fato do Conde Olaf ser tão fraco ator.
Completando a lista de profissionais responsáveis pela qualidade deste filme, cito ainda o trabalho de Thomas Newman com a trilha sonora e de Michael Kahn na edição.
LSASUE registra a nota 6,9 no site IMDb, assim como 107 críticas positivas e 44 negativas pela análise dos críticos que tem textos linkados no Rotten Tomatoes (o que lhe garante uma aprovação de 71%).
Lemony Snicket’s ganhou o Oscar de melhor maquiagem (assinada por Valli O’Reilly e Bill Corso) e outros seis prêmios, incluindo o de melhor atriz para Emily Browning conferido pelo Australian Film Institute. Além destes prêmios que levou para casa, o filme concorreu ainda a outros 21.
CONCLUSÃO: Um filme sobre três irmãos com aptidões diferentes que devem aprender a viver por sua conta e que, desta forma, simboliza o rito de passagem da infância para a vida adulta. Produzido com esmero, Lemony Snicket’s A Series of Unfortunate Events se destaca pela direção de fotografia, pelos efeitos especiais e visuais. Inspirado nos três primeiros livros de uma série de obras escritas por Daniel Handler para o público infanto-juvenil, este filme apresenta uma narrativa envolvente e que brinca com vários dogmas de alguns contos de fadas. Com um desempenho desigual de seu elenco, LSASUE se destaca pela simpatia dos atores que interpretam os irmãos Baudelaire e pela constante variação entre momentos de tensão e de ironia. Recomendado para todas as idades – especialmente para os que gostam de filmes de fantasia que tenham uma boa narrativa.
SUGESTÕES DE LEITORES: Lemony Snicket’s A Series of Unfortunate Events foi citado pelo Caio Cézar no dia 11 de janeiro. Na época, ele comentava suas impressões sobre o filme The Curious Case of Benjamin Button, afirmando que a fotografia do candidato ao Oscar deste ano lembrava a de Lemony Snicket’s. Caio, muito bacana essa tua dica. Como eu disse antes, me surpreendi com o filme – até porque esperava algo mais fraquinho. Gostei muito da fotografia de LSASUE, mas achei ela mais conceitual que a de Benjamin Button. O que as duas tem em comum, sem dúvida, é a sua alta qualidade. Obrigada pela dica e apareça! Um abraço.