Um filme perturbador sobre gente perturbada. Francamente, Kynodontas é um dos filmes mais impactantes que eu assisti nos últimos tempos. Tanto que demorei um bom tempo para concluir se eu tinha gostado ou não dele. E se tinha gostado, o quanto. Demorei, em outras palavras, para chegar a uma nota. Kynodontas chegou ao Oscar surpreendendo muita gente e, após assistí-lo, me encaixo neste grupo. Porque esta não é uma produção com “cara” de Oscar. O que só comprova como a premiação mais badalada de Hollywood anda mudando gradativamente – mas de forma decisiva – nos últimos anos. Kynodontas é uma produção rara, complicada de assistir, e com algumas ideias realmente inéditas em jogo.
A HISTÓRIA: Alguém coloca uma fita cassete em um gravador e aperta o play. Na gravação, uma voz ensina as “novas palavras do dia”: mar, estrada, excursão e carabina. Um rapaz (Hristos Passalis) escuta as definições, totalmente equivocadas. Perto dele, no banheiro, sua irmã mais velha (Aggeliki Papoulia) e a mais nova (Mary Tsoni), escutam com atenção os “ensinmentos”. Quando a gravação termina, a garota mais jovem propõe um jogo de resistência. Corta a cena. Em um carro, uma mulher vendada com roupa de segurança é levada pelo pai (Christos Stergioglou) dos garotos para a casa de sua família. Christina (Anna Kalaitzidou) é conduzida para fazer o programa de sempre: sexo com o único filho homem do casal proprietário da casa. Sem sair daquela propriedade, os três jovens são desafiados, cotidianamente, a participar de jogos de competição entre si. Aprisionados pelo medo e por ensinamentos deturpados, eles são reféns dos próprios pais.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso só recomendo que continue a ler quem já assistiu a Kynodontas): Como manda o figurino, assisti a Kynodontas sem saber nada a respeito do filme. Mas logo no início, ao perceber aquele trio no banheiro escutando definições equivocadas de palavras que eles desconheciam, percebi que algo de muito errado estava acontecendo com aquela família. Quando a única personagem que tem nome nesta produção aparece em cena, como uma caça que é trazida para alimentar o filhote de leão mais faminto, fica claro que aquelas pessoas tem um problema sério para entender o que pode ser um relacionamento saudável.
Kynodontas leva ao extremo os efeitos negativos que uma educação limitadora pode provocar em uma família. (SPOILER – não leia se você ainda não assistiu ao filme). Sem dar nome aos personagens principais, este filme reflete sobre os equívocos que vão se acumulando e tornando a vida dos filhos de um casal insuportável. Os pais dos irmãos que vemos em cena acreditam piamente que estão fazendo bem aos herdeiros ao isolá-los da “sordidez” do mundo e dos ensinamentos equivocados da sociedade moderna. Alienados do convívio social, os irmãos vivem cercados de regras e de repressão.
Drama com alta carga psicológica, este filme não deverá cair no gosto de muita gente. Especialmente porque ele chega a alguns dos degraus mais baixos já mostrados pelo cinema sobre a manipulação, controle e terrorismo de inocentes. (SPOILER – não leia… bem você já sabe). Mesmo adultos, os irmãos que assistimos nesta produção tem, na verdade, comportamento de crianças. Na melhor das hipóteses. Sem conhecer o mundo ou ter acesso a alguma realidade que não seja aquela criada pelos pais, eles vivem sob vigilância constante e tendo parâmetros equivocados como molde para os seus cotidianos.
Mas como diriam os nossos antepassados, a mentira tem perna curta. A série de mudanças, provocações e descobertas que a irmã mais velha da família vai passando em pouco tempo faz com que aquele círculo de mentiras e de realidade criada seja rompido. (SPOILER). Interpretada de forma visceral e impressionante pela atriz Aggeliki Papoulia, a irmã mais velha passa por todo tipo de abuso – psicológico e sexual, principalmente – antes de começar a descobrir as mentiras da família (como o telefone escondido pela mãe no quarto) e a adotar uma medida radical para tentar se livrar daquela prisão domiciliar.
Impressiona a violência desta produção. Especialmente porque ela segue uma linha de narração naturalista. Além do terror psicológico criado pelos pais daquela família, assistimos a uma escalada de violência física. (SPOILER). Aposto que muitos psicólogos e inclusive sociólogos serão capazes de escrever alguns estudos sobre este filme. Especialmente porque ele aborda o processo de formação do indivíduo sem que ele tenha contato com o consenso social e com os preceitos de uma cultura. Todas as informações que os três irmãos recebem são restritas aos seus pais, claramente desequilibrados. E mesmo a intervenção de Christina é controlada. Bem, pelo menos até certo ponto. Quando a interação dela com a irmã mais velha começam a mudar sem o conhecimento dos pais, a história começa a mudar de curso.
Certamente muitas pessoas ficarão indignadas com esta produção. Especialmente aquelas que defendem uma alternativa para o sistema de educação vigente. Aqueles que argumentam que os pais podem dar uma educação melhor para os seus filhos do que muitos colégios – ou, em outras palavras, que o próprio Estado e/ou suas alternativas de ensino particular. Evidente que a socialização propiciada pelas escolas é mais do que salutar. Com isso não quero dizer que não existam pais que não possam educar bem os seus filhos. Mas Kynodontas está aí para mostrar, com uma contundência bastante difícil de ser encontrada no cinema, o que pode acontecer quando a educação dos filhos é assumida por um casal desequilibrado.
O roteiro do diretor Giorgos Lanthimos, escrito junto com Efthymis Filippou, incomoda. (SPOILER – não leia se você ainda não assistiu ao filme). Especialmente porque ele mostra alguns dos piores desvios de caráter e tipos de exploração psicológica, sexual e de controle humano imagináveis. Kynodontas revolta. E este, sem dúvida, é um de seus principais objetivos. Além de provocar impacto e espanto, este filme chega a incomodar um pouco pelo ritmo. Algumas vezes, cá entre nós, ele é lento demais. O que só aumenta a angústia e o mal-estar. Feito para incomodar, esta produção ainda termina de uma forma que, certamente, irá desagradar a muitos espectadores. Mas cá entre nós, a falta de uma resposta para o drama que assistimos realmente faz diferença? Saber se a garota se salvou ou se ela acabou morrendo após sangrar por horas e horas no porta-malas muda alguma coisa? Talvez aí esteja uma das grandes reflexões desta produção: pouco importa se alguém é salvo no final. Porque os abusos e absurdos que aquelas pessoas sofreram na mão de um casal de loucos jamais poderão ser, verdadeiramente, solucionados.
Definimos o nosso mundo através das palavras. Kynodontas ajuda os espectadores a refletirem sobre o que pode acontecer quando fazemos relações equivocadas de conceitos e palavras – ainda que, o verdadeiro “confronto” do mundo fabricado por aqueles pais com os conceitos socialmente aceitos acaba não ocorrendo, de fato (o que teria sido interessante). Mas mais que palavras, o filme revela os estragos que valores equivocados podem fazer na vida de adultos. A competição constante para obtenção de prêmios absurdos é apenas uma forma de controle. Mas há várias outras em cena, a maioria moldada pelo medo. O que não deixa de ser uma reflexão interessante sobre os recursos utilizados por distintos governos para o controle social – ainda que este tema não seja evidente na produção. A família mostrada em Kynodontas seria uma alegoria a uma sociedade doente? Talvez. Ou apenas estou querendo enxergar mais valor do que o que realmente existe nesta produção.
NOTA: 8,5.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Em vários momentos, Kynodontas lembra uma peça de teatro. Não apenas pela alegoria e pelas interpretações um tanto “forçadas” dos atores em um ou outro momento (o que, aliás, é bastante justificado pelo enredo). Mas principalmente pela demarcação bastante planejada de cada cena e do uso do “espaço” fílmico. Curioso como, ao mesmo tempo, esta produção segue tons naturalistas e quase mecanizados de interpretação. Parece, constantemente, que estamos refletindo sobre a naturalidade e a superficialidade dos atos que, nós mesmos, adotamos. Quando estamos representando papéis? Quando estamos sendo verdadeiros? Perguntas que não são fáceis de responder na vida real e nem nesta produção.
A equipe técnica envolvida em Kynodontas faz um belo trabalho. Com destaque especial para a direção de Giorgos Lanthimos, esse maluco que consegue arrancar interpretações impressionantes do diminuto elenco e fazer com que a narrativa seja envolvente apesar da sensação desagradável que permeia toda a história – e que só vai aumentando conforme a produção avança no drama. Merecem destaque, também, o diretor de fotografia Thimios Bakatakis; a edição de Yorgos Mavropsaridis; e o trabalho “acumulativo” de Elli Papageorgakopoulou, que assumiu a direção de arte, os figurinos e a decoração dos sets.
Comentei rapidamente antes, mas vale uma nova citação por aqui: impressionante o trabalho da atriz Aggeliki Papoulia como a irmã mais velha da família doentia retratada por Kynodontas. Vale também citar a atriz Michele Valley, que interpreta a mãe “das crianças”.
Não consegui informações sobre o custo de produção de Kynodontas mas, sem dúvida, este filme grego custou pouquíssimo perto dos padrões do cinema mundial – para não citar Hollywood. Até o momento, a produção conseguiu pouco mais de US$ 105 mil nas bilheterias dos Estados Unidos e quase US$ 274 mil no resto do mundo. Ou seja: quase US$ 380 mil no total. Pouquíssimo, quase nada. E, ainda assim, ele chegou a ser indicado para o Oscar. Mas, francamente, não deve se beneficiar muito com esta indicação. Kynodontas é destes filmes que não conseguirá decolar. Será visto apenas por alguns poucos e, no máximo, virará “cult” (produção cultuada) por este pequeno grupo. Na melhor das hipóteses, claro.
O representante grego no Oscar fez uma longa carreira em festivais espalhados pelo mundo desde que estreou, no dia 18 de maio de 2009, no Festival de Cannes. A produção passou, após aquela data, por outros 26 festivais. Um número impressionante. Nesta sua trajetória, Kynodontas acumulou nove prêmios e outras cinco indicações. Entre os troféus que levou para casa, destaque para o prêmio Un Certain Regard entregue por Cannes; um prêmio especial do júri do Festival de Cinema de Sarajevo; e três prêmios como melhor diretor e diretor revelação para Giorgos Lanthimos entregues nos festivais de Montreal, Dublin e no Sitges.
E uma curiosidade: Kynodontas é o quinto filme grego a ser indicado a um Oscar na história da premiação. O representante anterior da Grécia na premiação havia sido Ifigeneia, produção de 1977.
Fiquei curiosa sobre o tema que serve de pano de fundo desta produção. Procurando notícias a respeito, encontrei esta, do Estadão, sobre uma família do Paraná que ganhou o direito de educar os seus filhos em casa – e não na escola, como determina a legislação brasileira. Curioso. Eis um tema que vale o debate – e que, certamente, tem bons e maus exemplos para servirem de ingredientes para o caldeirão.
Kynodontas tem alguns cartazes bastante interessantes. A versão original, grega, achei um tanto sem graça – ainda que bastante simbólica e sugestiva. Mas há algumas opções interessantes, especialmente nas versões francesas e para o mercado dos Estados Unidos. Só não concordo com uma das classificações utilizadas em um destes cartazes: “hilário”. Não sei se o problema sou eu, mas não achei Kynodontas hilário em momento algum. Ok que algumas situações são tão, mas tão absurdas que acabamos soltando um riso nervoso. Mas não passa disso, um riso nervoso.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,3 para Kynodontas. Nada mal, especialmente porque esta não é uma produção fácil de ser digerida. Os críticos que tem seus textos linkados no Rotten Tomatoes foram ainda mais generosos: publicaram 52 críticas positivas e apenas quatro negativas para Kynodontas, o que lhe garante uma aprovação de 93% – e uma nota média de 7,8.
(OBS: Ainda vou acrescentar algo nesta crítica… agora, talvez amanhã.)
CONCLUSÃO: Um filme pesado, tenso e violento que mergulha fundo e de maneira bastante calculada – e tranquila – na loucura de um casal que resolve criar seus três filhos longe da sociedade. Kynodontas explora um dos piores tipos de realidade que podem ser criados no âmago de uma família. O roteiro de Efthymis Filippou e Giorgos Lanthimos impressiona pela crueza e pela forma inédita com que uma realidade de terror psicológico é explorada. Não é uma produção fácil de ser digerida. Pelo contrário. Mas conforme a realidade daquela família vai se tornando cada vez mais absurda, somos desafiados a continuar assistindo. Uma forma eficaz, sem dúvida, de criar repulsa e indignação. E de questionar o controle familiar e a falta de interesse de algumas comunidades desenvolvidas pela “vida alheia”. O que para alguns pode ser sinônimo de privacidade, neste filme se revela um indicativo de “conivência” com realidades absurdas. Sem dúvida, um filme que faz pensar sobre os limites do que pode ser considerado aceitável em relação a vida comunitária ou privada. Seguindo algumas escolas europeias de cinema, Kynodontas se mostra um filme de narrativa lenta, mas que preserva o suspense sempre na ordem das cenas. A violência da história, assim como a sua dinâmica bastante lenta e um final “sem amarras” pode desagradar a maioria das pessoas. E torna esta produção uma das indicações mais surpreendentes da história do Oscar. Sem dúvida, é um filme para pouquíssima gente. Mas descontadas algumas partes cansativas, Kynodontas revela-se interessante, principalmente, pela forma corajosa e inovadora de tratar um tema espinhoso e, sem dúvida, polêmico.
PALPITE PARA O OSCAR 2011: Após assistir a este filme, admito que fiquei surpresa por Kynodontas ter conseguido figurar entre os cinco indicados ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro deste ano. Há pouco tempo, eu consideraria impossível uma produção como esta chegar tão longe. Mas a indicação do filme mostra como a mais badalada premiação do cinema dos Estados Unidos está mudando e evoluindo. Não porque Kynodontas seja um filme fantástico e incompreendido, mas porque ele é ousado e totalmente fora dos padrões comerciais de Hollywood.
A indicação de Kynodontas este ano mostra como, para a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, tão importante quanto ter espaço para o cinemão comercial, é ter cada vez mais espaço para o cinema alternativo. Parece que, finalmente, o Oscar tenta equilibrar, para valer, as “artes” e as “ciências”. O cinema conceitual e ousado com o cinema de mercado, técnico, que prima pela qualidade. Ver Kynodontas entre os indicados é interessante pela ousadia. E apenas por isto.
Sem dúvidas Kynodontas deixou produções melhores de fora da disputa este ano. Ainda não assisti a muitos filmes que estavam na lista original, mas para citar apenas a duas outras produções, achei Carancho e Kray melhores que este filme que representa a Grécia. Mas ok, estas “injustiças” acontecem. Faz parte da premiação. E mesmo sem ter assistido aos outros filmes que estão na disputa final, posso dizer, com certeza, que Biutiful e Haevnen continuam liderando a corrida pelo Oscar deste ano. Resta saber qual dos dois levará a melhor. Qualquer outra produção que sair com a estatueta poderá ser considerada uma zebra. Veremos.
7 respostas em “Kynodontas – Dogtooth – Dente Canino”
Adorei sua crítica, foi uma das mais completas que li sobre o filme até agora!
Surpresa total nas indicações ao Oscar, mas na minha opinião, o melhor dentre os indicados, mais original e contundente, ao lado de Incêndios, do Canadá!
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Oi Diogo!
Fico feliz que tenhas gostado da crítica.
Uma das intenções deste blog é tentar realmente dar uma visão mais completa dos filmes. Nem sempre eu consigo isso, mas eu tento, pelo menos. 🙂
Olha, não assisti ainda a todos os indicados na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira deste último Oscar, mas concordo contigo que, dos filmes que assisti, Kynodontas era o que tinha maior originalidade e maior contundência. Tens razão.
Ainda tenho que assistir a Incendies. Está na minha lista, é claro.
Muito obrigada pela tua visita e pelo teu comentário. Espero que voltes por aqui mais vezes.
Um grande abraço e inté!
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Olá. Bem interessante a sua crítica. O simbolismo que este filme impõe vai muito além a uma possível crítica aos sistemas políticos, como vi em alguns outros comentários. A minha resposta é tão atrasada porque só agora pude assiti-lo. Vou também comentar alguma coisa sobre ele. Abraço.
PS. Cheguei aqui pelo google. Vc deve tá bem cotada…=)
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Olá Julio!
Que bacana que você gostou da crítica.
E estou contigo: os significados desta produção são muito amplos. Um deles pode fazer relação aos sistemas políticos, mas não termina aí.
Como podes perceber pela minha resposta, não dou muita atenção para “atrasos”. hehehehe. Sei bem como a vida nos ocupa tempo, dependendo da fase de cada um. Então não faz mal comentar a filmes que publiquei há muito tempo. Ou retomar comentários como o teu, mesmo mais de um ano depois.
Obrigada pela tua visita e pelo teu comentário. Espero que ambos se repitam muitas vezes ainda. E que legal saber que sigo bem no Google… talvez eu tenha perdido um pouco de “espaço” porque perdi a frequência de atualizar o blog por um bom período, mas espero retomar o bom desempenho a partir de agora, quando estou me dedicando novamente a este espaço.
Um grande abraço e até a próxima!
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Não entendi o final do filme.
Me explique por favor
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[…] que The Lobster não foi o primeiro filme que eu vi dele. Antes, assisti a Kynodontas (comentado aqui), outro filme muito, muito peculiar e forte. Pelo visto, Lanthimos tem um estilo de cinema […]
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Vc viu o novo filme desse diretor? Vi ontem e queria debater sobre ele, chama-se O Sacrifício do cervo sagrado.
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