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Dirty Wars – Guerras Sujas


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Algumas teorias da conspiração sempre sugerem que os Estados Unidos estão por trás de matanças mundo afora. Inclusive em países onde a guerra não é declarada. O repórter investigativo acostumado a acompanhar guerras Jeremy Scahill não se conformou de fazer matérias que todos estavam fazendo no Afeganistão. Investigando o que escapava da cobertura normal dos meios de comunicação, ele foi destrinchando uma sequência de assassinatos com o aval do governo dos Estados Unidos. Dirty Wars revela o pior lado destas ordens obscuras e faz perguntas incômodas.

A HISTÓRIA: Ruas escuras e desertas. A voz do repórter Jeremy Scahill nos avisa que estamos assistindo a cenas de Kabul, no Afeganistão, às 4h. Dentro do veículo, vemos a Scahill, que se identifica como um jornalista norte-americano acostumado a escrever histórias no meio da noite. Ainda assim, ele sempre achava estranho dirigir por ruas desertas.

Em uma cidade de três milhões de habitantes, apenas uma luz estava acesa – a do veículo em que ele estava. Ele fala da rotina familiar de sua equipe em iluminar a noite para que ele pudesse fazer o seu trabalho. Mas Scahill decide fugir do comum, e a investigação que ele vai fazer lançará luz a um dos grupos mais secretos e mortíferos mantidos pelo governo dos Estados Unidos.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso só recomendo que continue lendo quem já assistiu a Dirty Wars): Sempre é interessante para mim ver o trabalho de um colega em ação. Especialmente quando ele faz algo tão diferente do que eu já fiz na vida. Jeremy Scahill é um destes corajosos jornalistas que viaja de guerra em guerra para nos contar parte da verdade de zonas em conflito.

Diferente de outras produções que revelaram lados obscuros de guerras recentes, como a do Iraque e a do Afeganistão, Dirty Wars é um trabalho investigativo de Scahill que começa em uma zona de guerra, mas que ultrapassa aquele cenário para revelar que a matança vai muito mais além.

Fiquei impressionada com este filme por dois motivos, essencialmente. Primeiro, pela forma interessante com que Scahill vai destrinchando o assunto ao escolher apenas alguns exemplos – entre centenas ou mesmo milhares – para ilustrar a investigação que ele leva a cabo. Depois, pela forma com que ele se expõe na produção, deixando claro não apenas o medo que sente em ruas escuras e desertas, mas em outras situações que vive, e da mesma forma ele transparece vergonha, indignação e tristeza conforme os acontecimentos vão se desenvolvendo.

Scahill apenas comprova algo que qualquer jornalista com alguma bagagem já sabe: não existe isenção quando uma pessoa conta uma história. Sempre ela vai se “contaminar” com o que vai descobrindo e, normalmente, por mais que dê vozes para os distintos lados, ela defende uma linha de raciocínio. Não por acaso o jornalismo de qualidade é, cada vez mais, interpretativo. Após conseguir muitas informações e dados, através de distintas entrevistas, o jornalista pondera tudo e apresenta para o público o resultado de um trabalho que deve primar pela seriedade.

Dirty Wars deixa muito claro, começando pelo título, qual é a argumentação final do jornalista e roteirista Jeremy Scahill e de seu parceiro no roteiro, David Riker. Eles querem destrinchar as mortes de inocentes feitas pelo governo dos Estados Unidos.

A busca inicia após o jornalista citar um ataque dos militares dos EUA na província afegã de Zabul, onde “quatro talibãs” teriam sido mortos segundo relatório da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no dia 14 de dezembro. Scahill afirma que estes relatórios proliferam apesar da estratégia oficial dizer que o principal trabalho dos militares por lá é o de furar poços e tomar chá com líderes locais.

Não acreditando naquela história, Scahill resolve conferir de perto as mortes que aparecem em poucas linhas nos relatórios da Otan. É desta forma que ele se aventura por Gardez, cidade da província de Paktia, que fica fora da zona considerada segura pelos militares para a imprensa. Lá ele fica sabendo da morte de Mohammed Daoud no dia 12 de dezembro de 2010.

A primeira entrevista é com o ancião que perdeu dois filhos, uma nora e uma neta no ataque. Uma outra mulher também foi morta. E um detalhe fundamental: duas destas mulheres estavam grávidas. Absurda a ação, e de cortar o coração os depoimentos. Scahill não esconde a surpresa ao saber de algumas revelações, e resolve levar esta história até o Comitê Judiciário do Congresso em Washington.

Ele é solenemente ignorado. E volta para a “vida ordinária”, fora da zona de guerra, o que chega a ser assustadoramente entediante – conforme a expressão do jornalista. Nesta hora, ele me fez lembrar ao genial filme The Hurt Locker (comentado aqui). Só que Scahill não fica cômodo naquela posição, especialmente após ter encontrado aquela história em Gardez.

Sem se intimidar com a ignorada que os congressistas dão para ele, o jornalista segue o próprio faro e resolve ir atrás daquela figura que aparece na foto que registra um estranho “pedido de desculpas” pelas mortes em Gardez. Seguindo a figura do vice-almirante William McCraven, ele descobre que em 2008 ele foi designado para liderar a “obscura unidade militar” conhecida pela sigla J-SOC (Joint Special Operations Command, ou algo como Comando de Operações Especiais Conjuntas).

A curiosidade do jornalista sobre esta quase desconhecida unidade faz com que ele siga atrás de mais informações, o que acaba levando ele e sua equipe para o Iêmen, onde cinco ataques mataram mais de 150 pessoas em dezembro de 2009. Novamente Scahill foca a atenção em um exemplo, o da matança em Al-Majalah, onde 46 pessoas foram mortas – sendo 14 delas mulheres e 21 crianças.

Uma semana depois daquelas mortes, o governo do Iêmen tratou de outro ataque. Um dos alvos seria o americano perseguido pelo próprio país, Anwar Al-Awlaki. O direito dos EUA procurarem ele mesmo sem que ele tenha sido julgado ou formalmente acusado de algum crime é o que motiva a parte final de Dirty Wars. Os questionamentos do filme não são apenas pertinentes, mas vitais para qualquer país soberano e que se diz democrático e defensor de direitos fundamentais para os seus cidadãos. Faz pensar.

Pouco a pouco Scahill vai tornando o J-SOC menos obscuro. Mas a tarefa do jornalista se torna especialmente complicada após a “euforia” causada pela morte de Osama Bin Laden. Este acontecimento faz parte do filme, que vai além daquele ataque “cirúrgico” e destrincha as práticas cruéis dos Estados Unidos mundo afora. Até porque a própria ação do J-SOC mudou após o “bem-sucedido” ataque contra Bin Laden. 

Dirty Wars revela o que está por trás dos panos, explicando o que mudou e como. Assusta quando o jornalista mostra o mapa mundi com vários pontos destacados onde as forças especiais estavam atuando – inclusive há um ponto identificado no Brasil. Entre todos aqueles locais para investigar, Scahill se lança para a Somália.

Esta é a parte do filme em que ele sente mais medo, não há dúvidas, e onde as regras descobertas são das mais cruéis. E o que dizer no final? Sem dúvida de que estas ações patrocinadas pelo governo dos EUA apenas alimentam o ódio e ataques de represália. Ou, na “melhor das hipóteses”, deixam muitos órfãos, pessoas enlutadas, dor e lágrimas pelo caminho.

Dirty Wars tem um ótimo texto e uma direção competente de Rick Rowley. O filme é envolvente e revela uma lógica que precisava ser denunciada. Como em qualquer grande trabalho jornalístico, mais que narrar uma história, este filme nos faz refletir ao fazer as perguntas certas. Infelizmente, nestas horas, é difícil pensar em um futuro de paz ou justiça. Tempos complicados parece que despontam no horizonte.

NOTA: 9,8.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Gostei muito da introdução deste filme, quando Jeremy Scahill comenta que ele iria atrás do que estava se escondendo atrás das histórias da guerra no Afeganistão que todos estavam contando. Porque há sempre o jornalismo “padrão”, que praticamente qualquer um pode fazer, e há aquele que não é feito por gente preguiçosa. Atuar nesta área fazendo a diferença é difícil, significa muito trabalho, suor e, não raras vezes, um bocado de perigo. Mas aí está figuras como Scahill para nos mostrar que vale a pena insistir no caminho difícil.

Por falar no jornalista, Scahill trabalha como repórter de guerras há 10 anos – quando ele fez Dirty Wars. Primeiro ele cobriu os fatos da guerra da Iugoslávia. Depois, atuou na cobertura das guerras do Iraque e do Afeganistão.

Algo louvável no trabalho de Dirty Wars são as imagens de arquivo das vítimas que Scahill consegue, assim como alguns depoimentos marcantes – seja de quem perdeu parentes ou amigos por causa dos ataques norte-americanos, seja de quem poderia ajudar a elucidar aquelas ações militares.

Da parte técnica do filme, além de uma competente e segura direção de Rick Rowley – responsável também pela excelente direção de fotografia do filme -, destaco a ótima edição de Rowley e David Riker. Muito bem pensada a mistura que eles fazem de imagens de arquivo de emissoras de TV, vídeos pessoais de algumas vítimas e novas imagens produzidas exclusivamente para este documentário. Eis uma lição de como usar diferentes recursos para contar uma história.

A trilha sonora de David Harrington aparece apenas em alguns momentos, estrategicamente estudados pelos realizadores. Por isso mesmo ela não se torna um personagem central da história, o que ajuda o filme a destacar o texto do jornalista, mas ao mesmo tempo ajuda a dar um contexto mais sensível em uma produção tão dura.

Ainda que Scahill não revele todo o passo-a-passo que seguiu para conseguir fazer este filme, ele deixa evidente grande parte de sua técnica de apuração. Uma verdadeira aula para os repórteres que seguem ou que gostariam de seguir a linha de jornalismo investigativo. Uma parte que ele deixa de fora é a que explicaria como ele conseguiu negociar algumas das entrevistas que aparecem no filme. Mas dá para entender esta escolha. Afinal, se ele contasse tudo, algumas de suas fontes poderiam ser expostas – algo que nenhum jornalista sério faria.

Gosto quando um documentário tem um discurso bem claro a defender. O estilo de Scahill me lembrou o de Michael Moore, ainda que sem o humor e os exageros dele. Mas o bacana é que ele defende um ponto de vista, tem um argumento muito claro na frente e segue com ele até o final.

Este filme só não é perfeito, na minha opinião, porque eu gostaria de ter mergulhado ainda mais nestas histórias. Quem sabe se Scahill tivesse se lançado na investigação de outras operações… ou se tivesse conseguido outras fontes do governo dos Estados Unidos para “rebater” o que ele havia descoberto… Claro que nada disso tira a força do filme, mas senti que lhe faltou um pouco mais de conteúdo para que ele se tornasse irretocável. Também me incomodou um pouco alguns momentos em que os fatos parecem perder um pouco de espaço para o personagem de Scahill – talvez se ele tivesse “desaparecido” um pouco mais da cena o efeito final teria sido melhor.

Procurei saber um pouco mais sobre Scahill. Daí que eu soube, através desta matéria do The Guardian, que Dirty Wars começou a ser filmado no início de 2010, quando o jornalista e o diretor do documentário Richard Rowley viajaram para o Afeganistão. Rowley é amigo e um colega com quem Scahill já havia trabalhado em Bagdá. Interessante como os dois foram para lá com uma ideia na cabeça e, sem querer, chegaram a um outro projeto em que ambos quiseram trabalhar.

Interessante também, na matéria do The Guardian – que eu recomendo a leitura – , o depoimento de Scahill sobre a decisão dele aparecer tanto em cena. Houve um verdadeiro embate entre ele como repórter e Rowley como diretor interessado em um protagonista. Na mesma reportagem dá para saber mais sobre a trajetória de Scahill. E foi aí que eu soube que ele, de fato, tem uma ligação com Michael Moore. 🙂 No final dos anos 1990, Scahill trabalhou com Moore em programas de TV.

Além do filme, Scahill lançou um livro com o título Dirty Wars. O livro anterior dele foi Blackwater – A Ascensão do Exército Mercenário mais Poderoso do Mundo, que tem o resumo disponível neste link da editora Companhia das Letras. Fiquei com vontade de ler a ambos.

Acho que este jornalista vale ser acompanhado. Para quem ficou interessado no trabalho de Scahill, divulgo aqui a página dele no Twitter e neste link a página do jornalista na revista The Nation.

Dirty Wars entrou em première no Festival de Sundance em janeiro de 2013. Depois, o filme participaria ainda de oito festivais. Nesta trajetória a produção recebeu oito prêmios e foi indicada a outros dois, além de receber a indicação para o Oscar de Melhor Documentário. Entre os prêmios que levou para casa, destaque para o de Melhor Direção de Fotografia – Documentário entregue pelo Festival de Sudance e para o de Melhor Documentário no Warsaw International Film Festival.

Não há informações sobre o quanto Dirty Wars teria custado, mas segundo o site Box Office Mojo o filme teria conseguido pouco mais de US$ 384 mil nas bilheterias dos Estados Unidos. Pelo jeito o filme está tendo dificuldades de distribuição. Espero que uma indicação ao Oscar possa ajudar a mudar um pouco este cenário – afinal de contas Dirty Wars merece chegar a um número maior de pessoas.

Os usuários do site IMDb deram a nota 7,5 para Dirty Wars. Achei uma boa avaliação, mas acho que ela poderia ser melhor. Os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 53 textos positivos e 10 negativos para o filme, o que lhe garante uma aprovação de 84% e uma nota média de 7,4.

Dirty Wars é uma coprodução dos Estados Unidos, Afeganistão, Iraque, Quênia, Somália e do Iêmen. Interessante como um filme como este conseguiu recursos de países que aparecem tão pouco na produção de filmes – talvez a contribuição deles tenha sido quase simbólica ou de apoio logístico. De qualquer forma, acredito que o “grosso” do dinheiro veio dos EUA, por isso vou incluir este filme na lista de críticas que tem aquele país como origem – e que segue uma votação feita aqui no blog.

CONCLUSÃO: A campanha e o discurso político seguem em uma direção, mas a prática é exatamente o oposto. Dirty Wars revela, através do excelente trabalho do jornalista Jeremy Scahill, que a “luta contra o terror” dos Estados Unidos apenas piorou no governo de Barack Obama. Os ataques contra alvos civis que vitimam famílias inteiras – incluindo mulheres e crianças – se espalham pelo mundo em países com ou sem guerra civil ou oficial. Este documentário se destaca pela coragem e por uma linha clara de argumentação que não deixa dúvidas sobre as intenções de seu realizador. Um filme importante e que nos aponta para um futuro preocupante.

PALPITE PARA O OSCAR 2014: É surpreendente ver como Dirty Wars conseguiu uma vaga no prêmio máximo da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Digo isso porque este é o filme mais “incômodo” entre os cinco indicados deste ano. Cheguei, inclusive, a temer pela vida de Jeremy Scahill. Afinal, ele revela um dos lados podres do governo de Barack Obama. E isso não é algo simples de fazer.

Pelas razões que eu comentei anteriormente na crítica, Dirty Wars é um filme corajoso e que vai ganhar ainda mais evidência ao ser indicado ao Oscar. Uma decisão igualmente valente da Academia, que não pensou em alguma reação negativa direta ou indireta que poderia ser feita pelo governo dos Estados Unidos contra a indicação do filme.

Claro que The Act of Killing (comentado aqui) também é uma produção corajosa e que rompe com um silêncio de décadas sobre a matança feita com apoio do governo na Indonésia – governo daquele país, diga-se para esclarecer. Um exemplo desta quebra da “cortina de ferro” é que um dos diretores do filme segue no anonimato – para não sofrer represálias. Então sim, The Act of Killing e Dirty Wars são as produções mais corajosas deste ano.

Dito isso, ainda vejo Dirty Wars à frente de The Act of Killing porque o trabalho de Scahill vai direto no ponto, segue uma linha de raciocínio muito clara e limpa e mexe em feridas de um governo que parece onipresente e quase “todo-poderoso” – a ponto de matar gente que lhe desagrade em qualquer parte do mundo.

Os outros dois filmes na disputa – The Square (com crítica neste link) e 20 Feet from Stardom (comentado aqui) – seguem linhas bem diferentes. E o mais interessante: todos com excelente qualidade. Sem contar os filmes que ficaram de fora da lista de cinco finalistas… Sinal de que a categoria Documentário vem se aperfeiçoando a cada ano.

A disputa no Oscar está acirrada e é difícil escolher a melhor produção. Depende, acredito, basicamente do gosto pessoal do votante. Da minha parte, acho que mudaria o meu voto para Dirty Wars pela coragem demonstrada e pela relevância do assunto – que afeta a todos, não importa em que parte do mundo você viva. Ainda que meu voto fica um pouco dividido com The Square. Qualquer um destes ganhando, acho que ganha o espectador e o cinema.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 20 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing e, atualmente, atuo como professora do curso de Jornalismo da FURB (Universidade Regional de Blumenau).

4 respostas em “Dirty Wars – Guerras Sujas”

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