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Zwei Leben – Two Lives – Duas Vidas


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Duas histórias pouco contadas e interessantes em um mesmo pacote. Isso não é fácil de encontrar. Mas Zwei Leiben apresenta esse pacote de forma eficaz, apesar da complexidade do assunto. Para quem gosta de filmes que se debruçam sobre histórias recentes de países importantes no cenário internacional, esta é uma boa pedida. Envolvente, esta produção tem ritmo, drama e suspense em partes bem dosadas.

A HISTÓRIA: Diferentes narradores comentam sobre a queda do Muro de Berlim e a unificação da Alemanha. Um deles afirma que a população, após “28 anos atrás do arame farpado”, não pode acreditar no que está acontecendo. Outra afirma que muitos manifestantes querem que as lições da RDA (República Democrática Alemã, criada em 1949 e sob a influência dos soviéticos) não sejam esquecidas.

Neste cenário, Katrine Evensen Myrdal (Juliane Köhler) caminha com passos firmes pelo aeroporto de Tyskland em novembro de 1990. Ela passa pelo controle do aeroporto e segue até o banheiro, onde coloca uma peruca e troca de roupa. Saindo dali, Katrine pega um trem, depois um táxi, e chega no local em que ela teria morado quando era criança. Dali, ela segue para o arquivo de Leipzig, onde encontra o nome que tanto estava procurando, de Hiltrud Schlömer. Em breve a história daquele orfanato virá à tona.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Zwei Leben): Muito especial a forma com que o roteiro dos diretores Georg Maas e Judith Kaufmann, com a ajuda de Christoph Tölle, Stale Stein Berg e da colaboradora Hannelore Hippe foi construído. Nos primeiros segundos da produção o espectador é imerso no ambiente da história, ouvindo diferentes narradores falando do final do período de divisão alemã. Quem conhece um pouco da história mundial sabe o peso que isso teve para os alemães, para a Europa e para o mundo.

Em seguida, as primeiras cenas gravadas pelos diretores surgem na tela com a presença marcante da trilha sonora de Christoph Kaiser e Julian Maas. O suspense preenche a narrativa com a troca de “personagem” feita pela protagonista. Não entendemos porque ela está se disfarçando, e a primeira impressão é que ela não quer que a família saiba que ela está correndo atrás do próprio passado. Mas então por que ela diz que se a antiga enfermeira do abrigo mantido por nazistas, Hiltrud Schlömer, estiver morta, o problema dela está resolvido?

Com o tempo é que vamos perceber que o problema de Katrine não é tão óbvio assim. E também identificamos que a narrativa não é linear. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Isso fica evidente não apenas com a esclarecedora volta ao passado para explicar a evolução da protagonista como espiã, mas também quando sabemos que os fatos iniciais ocorreram algumas semanas depois do que a narrativa que veremos após aparecer o nome da produção. Ou seja, Katrine se disfarça após a aparição do representante da firma de advogados Hogseth & Co., Sven Solbach (Ken Duken).

A chegada dele quebra em duas partes a farsa de Katrine/Vera. Antes dele aparecer, ela mantinha uma vida muito tranquila nas redondezas de Bergen, a segunda maior cidade da Noruega. Mulher de temperamento forte, Katrine trabalhava e tinha uma família para cuidar. A maior preocupação dela até a chegada de Sven era levar e trazer o neto para ser cuidado pela avó (a mãe de Katrine, Ase Evensen, interpretada pela veterana Liv Ullmann), enquanto a filha, Anne Myrdal (Julia Bache-Wiig) tenta entrar na universidade e criar a filha que ainda é um bebê.

Os problemas familiares de Katrine vão parecer brincadeira de criança quando Sven Solbach aparece para desenterrar o passado. Sim, eis a história clássica de uma mudança radical na narrativa de uma família quando alguém resolve mexer em vespeiros antigos. Mas aí está a graça deste filme. Ele não apenas conta a história de uma garota e de sua mãe que foram separadas quando a menina veio ao mundo por causa de resquícios repressivos da Segunda Guerra Mundial. Há ainda uma importante história de espiões no meio.

E de história de espiões o cinema está cheio. Mas não sob a ótima deste Zwei Leben. Porque aqui o espectador se aproxima da intimidade de uma espiã realista, com uma história fácil de acreditar. Por isso volto a afirmar o que eu comentei lá no início, de que não é fácil um filme ter duas histórias interessantes e complexas em um mesmo pacote. Acho que quem gosta de história, como eu, vai ficar fascinado com estes acontecimentos pós-Segunda Guerra.

Por um lado, temos a uma história de repressão das mulheres de um país invadido – a Noruega – que se relacionaram com soldados invasores – no caso, os alemães nazistas. Estas mulheres foram mantidas em campos na Noruega. O filme esboça esta explicação em um primeiro momento, mas de forma muito acertada o roteiro faz uma parada, mais ou menos no meio da produção, para explicar em detalhes como os alemães criaram clínicas maternais e orfanatos para diminuir o número de abortos e retirar de mães norueguesas os filhos que eles consideravam importantes – por terem os genes alemães – e levaram estas crianças para a Alemanha.

Em orfanatos como onde cresceu Katrine, a organização chamada Lebensborn mantinha as crianças com “sangue nobre alemão”. Representando a firma de advogados, Sven Solbach procura testemunhos para reabrir o caso destas crianças e apresentá-lo para uma comissão em Estrasburgo. A ideia deles é pedir reparação para aquelas famílias através do tribunal europeu dos direitos humanos. Daí ele insiste em contar com os depoimentos de Katrine e da mãe dela, Ase, porque elas seriam um raro caso de reencontro entre mãe e filha.

De forma bem acertada o roteiro de Zwei Leben apresenta esse momento de ruptura da família Evensen Myrdal sem entregar todo o “ouro” logo de cara. Assim, por um tempo, ficamos pensando se a resistência de Katrine se justifica pelos abusos que ela sofreu ou se há algo mais em jogo. Quando ela se encontra de forma misteriosa com Kahlmann (Thomas Lawincky) e explica para ele o que está acontecendo, e que alguém precisa agir para silenciar a testemunha que pode colocar o disfarce dela em risco, tudo vai ficando mais claro. Ela não é, exatamente, a vítima que se previa.

E daí surge a outra história interessante e complicada da trama baseada na novela manuscrita Eiszeiten, de Hannelore Hippe – que contribui com o roteiro de Zwei Leben. A heroína aqui é vilã, porque ela se infiltrou na família da norueguesa Ase Evensen fazendo-se passar pela filha dela que havia sido levada para a Alemanha. Cooptada quando também estava em um orfanato, Vera Freund, o verdadeiro nome da mulher que se passou por Katrine Evensen, trabalhou para o serviço secretor da RDA. Em todas as voltas para o passado, é especialmente interessante ver como ela foi preparada para o serviço.

Depois que o disfarce dela é descoberto e Vera/Katrine é confrontada pela família – especialmente na cena em que a filha lhe questiona na cozinha -, fica mais claro que apesar de ser vilã, ela também é vítima. Mas de uma maneira diferente do que poderíamos imaginar. Algo a destacar, além destas duas histórias interessantes sobre os bastidores de uma Alemanha dividida durante e após a Segunda Guerra Mundial, é a forma humana com que o filme é narrado. Nos aproximamos muito dos personagens principais, nos deliciando com ótimas interpretações e com um roteiro que não perde o ritmo em momento algum. Um grande trabalho da dupla Georg Maas e Judith Kaufmann e sua equipe.

Mas para não dizer que tudo são flores, algo me incomodou no desfecho desta produção. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Uma pessoa como Vera, treinada por muito tempo para assumir um disfarce e, com ele, conseguir informações valiosas para o sistema ao qual ela servia, vai de fato capitular e contar toda a verdade para a família que ela enganou por tanto tempo?

O previsível, para mim, seria ela seguir mentindo, mesmo confrontada com o vídeo da verdadeira Kathrin Lehnhaber, filha de Ase Evensen (interpretada, quando jovem, por Vicky Krieps). Ou se ela resolvesse contar a verdade naquele momento, ela não insistiria em tentar fazer as pazes com aquela família após a casa inteira ter “desmoronado”. A Vera que fez tudo o que ela fez teria seguido naquele avião e escapado.

Apenas esse “desvio” do esperado é que achei um pouco difícil de acreditar, frente a um filme que, até então, era bastante crível. Ainda assim, admito que é bacana a tentativa do roteiro em redimir a personagem. Desta forma, os realizadores apostam que os piores criminosos podem se colocar no lugar dos outros e ter atos de compaixão mesmo após diversos anos de mentira. É bacana pensar desta forma, mas só acho pouco realista. E em um filme que vinha tão bem nesse quesito, seria interessante ver Vera recomeçando outra vez.

NOTA: 9,8.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Além de uma história fascinante, Zwei Leben conta com outro trunfo muito importante: um grande elenco. Todos os atores envolvidos na produção estão muito bem em seus respectivos papeis, mas é preciso tirar o chapéu para a dupla de atrizes que dá vida a Katrine Evensen: Juliane Köhler na fase adulta, quando começamos a acompanhar a sua história, e Klara Manzel nas reconstituições de época de quando ela estava sendo preparada para desenvolver o papel que marcaria a sua trajetória de forma definitiva. Brilhantes as duas atrizes.

Para que elas consigam fazer um bom trabalho, faz falta um elenco de apoio também talentoso. Daí entram em cena figuras como a veterana Liv Ullmann, que interpreta a Ase Evensen e que comunica como poucas apenas pelo olhar; Sven Nordin como Bjarte Myrdal, o homem que passa boa parte da vida ao lado de Katrine Evensen; e o veterano Rainer Bock como Hugo, o “chefão” de Katrine e uma figura sempre misteriosa e perigosa na trama. Mesmo em um papel relativamente pequeno, Vicky Krieps consegue imprimir uma identidade importante e marcante como Kathrin Lehnhaber.

Outros atores com papeis menores merecem ser citados. Dennis Storhoi como o advogado Hogseth, chefe de Sven Solbach; Ursula Werner como Hiltrud Schlömer, testemunha importante da história de Katrine; e Thorbjorn Harr como o jovem Bjarte Myrdal. Eles complementam bem o elenco. Gostei do posicionamento do ator Ken Duken com o personagem Sven, mas não senti a mesma firmeza da atriz Julia Bache-Wiig, que interpreta Anne, filha de Katrine e Bjarte.

Para o filme funcionar tão bem, além do ótimo roteiro e de um elenco afinado, faz falta os outros elementos técnicos funcionarem bem. O primeiro elemento que chama a atenção no filme e que já comentei antes é a trilha sonora marcante da dupla Christoph Kaiser e Julian Maas. Diferente de outras produções recentes que eu assisti, neste filme a música é um elemento narrativo importante – e não complementar, como em outros casos.

Pouco a pouco também vai se destacando a direção de fotografia de Judith Kaufmann que, além de registrar o ambiente de cada cenário, ainda faz uma diferenciação bem marcante dos diferentes “tempos” narrativos. Destaque também para a edição precisa de Hansjörg Weissbrich e, evidentemente, pelo excepcional trabalho dos diretores.

Falando neles, é interessante observar a trajetória de cada um destes diretores alemães. Georg Maas tem sete trabalhos no currículo como diretor, sendo dois deles documentários feitos para a TV e um terceiro um filme produzido também para a TV. Das outras quatro produções, duas são documentários. Além de Zwei Leben, Maas dirigiu apenas outro filme para o cinema: NeuFundLand, lançado em 2003. Depois de Zwei Leben ele lançou um documentário para a TV sobre Liv Ullmann. Judith Kaufmann, por sua vez, tem uma carreira consolidada como diretora de fotografia. Ela tem 46 trabalhos atuando desta maneira. Como diretora, tem apenas Zwei Leben.

Para quem gosta de saber sobre os locais em que os filmes foram rodados, esta produção foi totalmente feita na Alemanha e com algumas cenas na Noruega. As cenas foram rodadas em locais como North Rhine, Leipzig, Halle, Bergen, Bonn, Hamburgo e Schleswig-Holstein.

Zwei Leben estreou em outubro de 2012 na Noruega. Depois, em janeiro de 2013, o filme participaria de seu primeiro festival: o de Palm Springs. A trajetória do filme em festivais somaria outras 11 participações. Neste caminho, Zwei Leben abocanhou sete prêmios e foi indicado a outros cinco. Entre os que recebeu, destaque para os de Melhor Filme entregues no Festival de Cinema Biberach e no Festival de Cinema Independente de Biberach. A produção ganhou também dois prêmios da audiência no Festival Internacional de Cinema de Emden e os prêmios de Melhor Elenco e Melhor Edição no Festival de Cinema Alemão.

Este filme, coproduzido pela Alemanha e pela Noruega, foi escolhido para representar a Alemanha como Melhor Filme em Língua Estrangeira no Oscar 2014.

Os usuários do site IMDb deram a nota 7,1 para Zwei Leben. Uma boa avaliação levando em conta o padrão do site. Os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 11 textos positivos e apenas dois negativos para a produção, o que lhe garante uma aprovação de 85% e uma nota média de 6,5. Achei baixa a nota, apesar do nível de aprovação estar bom.

CONCLUSÃO: Interessante quando um filme parece contar uma história e, depois, ele se revela bem mais complexo. Este é o caso de Zwei Leben. Reforçando uma das escolas de cinema mais propensa a esmiuçar e repensar a própria história, esta produção foca no período imediato após a unificação da Alemanha. Com o fim das divisões do país, vários expurgos do passado foram feitos, e muitas histórias duplas, reveladas. Esta produção de interesse histórico e humano parte de uma história particular para refletir sobre um sentimento mais generalizado. Bem narrado e com ótimos atores, o filme só peca um pouco para a solução final da história. Mas nada que comprometa a boa experiência anterior. Recomendo.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 20 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing e, atualmente, atuo como professora do curso de Jornalismo da FURB (Universidade Regional de Blumenau).

4 respostas em “Zwei Leben – Two Lives – Duas Vidas”

Primeiramente parabéns belo blog. Muito bom mesmo! Qualidade excepcional e difícil de encontrar na internet.
Se não assistiu ainda, recomendo o “O Melhor Lance” (La Migliore Offerta). Fiquei curioso para ler sua crítica.

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