Muitas vezes a gente acha que conhece as necessidades de quem está mais próximo. Muitas vezes, achamos que conhecemos bem a nós mesmos. Até que somos obrigados a sair da nossa rotina e do lugar-comum em que a nossa vida se transformou e descobrimos muito mais do que antes seríamos capazes de imaginar. Las Herederas é um filme lento, bastante detalhista e que dá muito espaço para as interpretações das suas atrizes. Uma história aparentemente comum, mas que guarda algumas reflexões muito interessantes.
A HISTÓRIA: Um mulher olha para um retrato e ouvimos alguém cantarolando. Essa mesma mulher, caminha pela sala de jantar e pergunta sobre diversos objetos que estão à venda. A empregada responde, dando o preço de cada objeto, como o faqueiro, o jogo de taças, e informa que o relógio precisa ser consertado. Comenta também sobre o que não está à venda. No cômodo adjacente, Chela (Ana Brun) observa tudo com certa tristeza. Com dívidas e sem uma renda própria, Chela e Chiquita (Margarita Irun) encontram na venda dos seus pertences os recursos para sobreviver. Mas, em breve, esse cenário irá mudar.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes desse filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Las Herederas): Eu tinha grandes expectativas com esse filme, devo admitir. Especialmente pelo alto nível de aprovação que Las Herederas apresenta segundo avaliação de público e de crítica. Mas ao assistir a esse filme, me surpreendi com uma história onde não existe uma grande trama, digamos assim.
Os fatos se desenrolam muito mais em um campo interior e de mudança na vida da protagonista do que em um campo exterior. Assim, na prática, “pouco acontece” em Las Herederas. Vejamos o que a história nos apresenta. (SPOILER – não leia se você não assistiu ainda ao filme). Dividem uma residência de luxo duas mulheres que herdaram – aparentemente – tudo que têm. O casal lésbico de meia idade parece estar junto há muito tempo. Elas têm um grupo de amigas mas, apesar disso, parecem viver um tanto isoladas.
Endividadas e com Chiquita sendo acusada de sonegação fiscal, as protagonistas começam a se desfazer de seus pertences para conseguir pagar as contas e sobreviver. Essa dificuldade financeira grave e a iminência de Chiquita ser presa fazem com que Chela tenha pouca vontade de sair de casa ou de ver pessoas – parece, inclusive, que ela está vivenciando uma depressão quando o filme começa.
O grande ponto de ruptura da história acontece quando Chiquita realmente vai para a prisão. Chela acaba sendo obrigada a sair do seu reduto e do seu “lugar seguro”. Primeiro, para visitar a companheira presa. Depois, para atender a uma vizinha que pede uma carona. Ela não dirigia muito – quem fazia isso, assim como quase todos os demais afazeres e tomava as decisões pelo casal era Chiquita. Mas justamente essa saída de casa desencadeia uma série de outras mudanças na vida da protagonista.
Como na história propriamente dita “nada demais” acontece, realmente o ponto de atenção do filme são as “mudanças internas” pelas quais a protagonista passa. Com muita sutiliza, o diretor e roteirista Marcelo Martinessi nos conta a história de uma mulher que acaba se descobrindo ao ser retirada da sua zona de conforto. Pouco a pouco, Chela redescobre o desejo – não apenas de viver, mas por outra mulher, Angy (Ana Ivanova) – e a liberdade.
Porque sim, algumas vezes as pessoas, movidas pelo amor e pela vontade de cuidar do “ser amado”, acabam cuidando e protegendo tanto essa outra pessoa que tiram dela toda a sua autonomia. E é justamente isso que acontece na relação de Chela e de Chiquita. Além desse casal cair na rotina – algo comum em casais que estão muito tempo juntos -, Chela também acaba sendo eclipsada pelo excesso de zelo de Chiquita.
Esse é um outro ponto interessante de Las Herederas. Como o filme demonstra, de forma muito honesta e natural, como uma relação pode se tornar desigual com o passar do tempo. Preocupada em cuidar de Chela, Chiquita acaba, na verdade, tirando a autonomia e os desejos da companheira. Para algumas pessoas, é mais fácil esse tipo de amor. Afinal, o “objeto amado” estará sempre dependente e sob controle.
Qual é a surpresa de Chela quando, sem todo esse zelo e controle de Chiquita, ela vai, pouco a pouco, descobrindo a sua própria capacidade de ser e fazer. Com algo tão simples quanto “dar carona” para a vizinha idosa e, depois, para todas as amigas dessa vizinha que, como ela, se encontram com frequência para jogar, Chela encontra o caminho para a própria independência. Não apenas financeira, mas também de ação.
Ela pode dirigir dentro da cidade e até na estrada, onde ela nunca tinha ido antes. Algo tão simples acaba sendo tão simbólico da retomada da liberdade. Interessante isso, porque desta forma Las Herederas nos lembram do próprio empoderamento feminino, da onda de mulheres que, ao aprender a dirigir, ganharam liberdade maior de ir e vir e de fazer as suas escolhas. E é justamente isso que esta produção nos faz lembrar.
Em suas idas e vindas para dar carona remunerada para as amigas idosas, Chela ainda redescobre o tesão. Ela fica fascinada com a beleza e com a atitude de Angy, a garota que cede a casa – cobrando por isso, certamente – para as idosas jogarem. Essa paixão acaba tirando Chela do prumo, e depois de sair de sua rotina, tudo o que ela não quer é voltar para ela. A consequência da saída de Chiquita da prisão, por isso, também pode ser prevista.
O mais interessante dessa história, além dela ser uma narrativa de autodescoberta e de empoderamento da protagonista, é a mensagem que Las Herederas nos passa. De que muitas vezes vamos acumulando os nossos dias e nos acostumando com uma certa rotina que não faz mais os nossos olhos brilharem ou o nosso coração realmente pulsar forte, mas que nunca é tarde para vivenciarmos tudo isso novamente.
Acho essa uma mensagem muito poderosa deste trabalho de Marcelo Martinessi. Afinal, não importa de que classe social você veio ou na qual você está agora. O quanto você batalhou para conseguir as suas coisas ou recebeu “tudo de graça” porque você é herdeira(o) de algo que batalharam antes de você existir. Todos têm o direito de sonhar, de vivenciar fortes emoções e de achar sentido no que fazem de suas vidas. Como Chela fez, meio que sem querer.
Um filme interessante, mais pelo que ele nos sugere e nos mostra com descrição do que por uma narrativa inovadora. Aparentemente, pouco acontece em cena. Aparentemente, vemos a uma “história comum” e sem grandes virtudes pela frente. Mas, no fundo, Las Herederas tem uma série de questões que nos fazem refletir sobre o que fazemos aos demais, com nosso excesso de “zelo e de amor”, e o que permitimos que seja feito com a gente mesmo. Seja pelos outros, e por nós, na nossa rotina que nos leva por caminhos estranhos, algumas vezes.
Las Herederas nos mostra, assim, algumas reflexões interessantes e uma “rebeldia” da protagonista no final que nos dá esperança. Sempre é possível recomeçar. E não importa a idade que temos, sempre é possível procurar sentido e paixão na nossa vida. Por mais que os outros nos digam que não, ou que a gente mesmo não acredite muito em uma nova saída, ela existe. Basta procurar e ter a coragem de se lançar. Um filme interessante, apesar de seu ritmo lento demais, muitas vezes.
NOTA: 8.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Admito que esse filme me conquistou mais quando comecei a pensar a respeito dele do que no momento em que ele estava se desenrolando na minha frente. A experiência de Las Herederas, propriamente dita, não é de encher os olhos ou de fazer o nosso coração palpitar mais forte. Não, muito pelo contrário. Mas quando paramos para pensar na história e no que ela nos diz ou provoca, o filme vai ganhando pontos. Tanto que ele saiu de uma nota 7 inicial, aqui no blog, para chegar no 8 ali acima.
Além dos aspectos que eu comentei antes, Las Herederas tem um “fundinho” de aspecto social. Vejamos. Primeiro, o filme retrata uma classe média-alta de mulheres lésbicas ou viúvas que não trabalham. Aparentemente, todas elas vivem das heranças que herdaram ou de aposentadorias. O que elas fazem? Além de festas com karaokê, jogam cartas valendo dinheiro. Será mesmo que isso é o melhor que podemos fazer na nossa velhice?
No Brasil e, talvez, na América Latina, as sociedades não se prepararam para ter a maior parte da população na velhice. Não temos, efetivamente, muitos programas que diversifiquem o cotidiano ou que deem outras perspectivas para estas pessoas. Mas não vai demorar muito para que a população brasileira seja, em sua maioria, de idosos. Que tipo de realidade teremos, então? Acho que vale nos questionarmos. Especialmente para a forma com que estamos nos preparando para nos reinventarmos e termos a nossa liberdade quando chegarmos lá.
Uma das grandes qualidades desse filme, sem dúvida alguma, é o trabalho da atriz Ana Brun. Ela está ótima e muito coerente com os diferentes momentos que vivem a sua personagem Chela no filme. Com uma interpretação detalhista e que, muitas vezes, expressa o que a personagem sente mais pela linguagem não verbal do que pela verbal, Ana Brun nos conquista conforme a produção avança. Um belo trabalho, sem dúvida alguma.
Além de Ana Brun, vale destacar o ótimo trabalho de Margarita Irun como Chiquita – ela é outra que tem um desempenho incrível no filme; de Ana Ivanova em um papel cheio de nuances e de controvérsias como Angy; de Nilda Gonzalez como Pati, a emprega simples e de grande coração que acaba entendendo Chela como poucos; María Martins em um desempenho interessante como Pituca, a vizinha que começa a pedir carona para Chela; e Alicia Guerra como Carmela, amiga que ajuda Chiquita a sair da cadeia.
No presídio, algumas mulheres ganham um certo destaque quando a história de Las Herederas se transporta para lá – e isso acontece, de forma pincelada, algumas vezes durante a produção. Entre as mulheres que ganham um certo destaque nesta parte do filme estão Ana Banks e Natalia Calcena.
Entre os aspectos técnicos do filme, vale comentar o bom trabalho de Luis Armando Arteaga na direção de fotografia; a edição de Fernando Epstein; o design de produção de Carlo Spatuzza; o design de produção de Tania Simbron; e a maquiagem de Luciana Diaz e de Edi Romero.
Marcelo Martinessi faz um bom trabalho na direção, mas o roteiro dele me pareceu menos consistente e interessante do que poderia ser. Talvez seja o estilo dele. Não sei, não posso opinar, porque esse foi o primeiro filme que eu vi com a assinatura de Martinessi. Antes de Las Herederas, ele dirigiu a dois curtas e a um curta de documentário. Ou seja, Las Herederas é o seu primeiro longa. Acho que precisamos de mais material para poder avaliar o estilo do diretor e roteirista.
Las Herederas estreou em fevereiro de 2018 no Festival Internacional de Cinema de Berlim. Depois, o filme participou, ainda, de outros sete festivais de cinema em diversos países. Nessa trajetória, até o momento, o filme ganhou 20 prêmios e foi indicado a outros seis.
Entre os prêmios que recebeu, destaque para o Prêmio Fipresci, para o prêmio de Melhor Atriz para Ana Brun e para o Prêmio Alfred Bauer para o diretor Marcelo Martinessi e para a produtora La Babosa Cine no Festival Internacional de Cinema de Berlim; para o Prêmio Fipresci e para o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cinema de Cartagena; para o prêmio de Melhor Filme Latino-americano pela escolha do público e para os prêmios da crítica de Melhor Filme Latino, Melhor Diretor entre os Filmes Latinos, Melhor Atriz entre os Filmes Latinos para Ana Brun, Margarita Irun e Ana Ivanova e Melhor Roteiro entre os Filmes Latinos no Festival de Cinema de Gramado; para o Melhor Filme Latino-americano no Festival Internacional de Cinema de San Sebástian; para o Melhor Filme no Festival de Cinema de Sydney; além de outros dois prêmios como Melhor Filme, um prêmio de Melhor Atriz para Ana Brun; um prêmio de melhor filme LGBTQ e um prêmio de Melhor Primeiro Trabalho. Uma coleção de prêmios, realmente.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,6 para esta produção, enquanto que os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 22 críticas positivas e nenhuma negativa para esta produção. Essa unanimidade, ou seja, aprovação de 100% no Rotten Tomatoes é algo muito, muito raro. Na média, os críticos do site deram a nota 8 para Las Herederas. No site Metacritic, Las Herederas apresenta um “metascore” de 82, fruto de seis críticas positivas. Novamente, um ótimo desempenho se levarmos em conta o padrão deste site.
Me parece, com a coletânea que o filme já ostenta até o momento e com esta unanimidade dos críticos, que Las Herederas já é um virtual forte candidato na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira no Oscar 2019. Pessoalmente, acho o filme bacana e interessante, mas não para ganhar o Oscar. Já vou me adiantando, pois. 😉
Las Herederas é uma coprodução do Paraguai com a Alemanha, o Uruguai, o Brasil, a Noruega e a França. Ou seja, esse filme deve representar o Paraguai na próxima disputa por uma vaga na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira do Oscar 2019. Veremos se ele chega entre os cinco.
CONCLUSÃO: Uma história introspectiva, destas em que parece que não está acontecendo nada. Isso porque o que de fato está acontecendo não é visível e não tem uma grande dinâmica. As mudanças e a “ação” em Las Herederas se passam no interior da protagonista. Um filme sutil, com grandes atuações e com um ritmo lento que desafiará os espectadores mais vorazes para que “algo aconteça”. Apesar de não ser realmente impactante, este filme apresenta algumas boas qualidades e, sobretudo, uma reflexão sobre as relações e o comodismo que algumas vezes adotamos na nossa vida. É interessante sair da zona do conforto. Essa saída sempre pode nos trazer respostas interessantes sobre os outros e, especialmente, sobre nós mesmos.