Um filme para ser belo e profundo não precisa tratar de questões atípicas. Não faz falta que ele mostre um herói em sua saga pessoal ou reconstrua os desafios de uma época. Historias Mínimas demonstra tudo isso através de uma direção cuidadosa, de um texto inspirado – inspiradíssimo, eu diria – e de um grupo de atores que prima pela busca do tom mais natural possível para seus personagens. Me desculpem, mas nesta crítica farei uso, mais do que nunca, de lugares-comum. Começo afirmando que Historias Mínimas revela, como poucos filmes até hoje, como o mais importante não é a chegada, o resultado final de uma trajetória, mas o caminho, a forma com que cada pessoa escolhe traçar a linha por baixo de seus pés.
A HISTÓRIA: Don Justo Benedictis (Antonio Benedicti) faz um exame oftalmológico para renovar sua carteira de motorista. Mas ele se sai mal, muito mal. Corta. Uma mulher (Mariela Díaz) se apressa pelo terreno árido local para avisar sua amiga, María Flores (Javiera Bravo), de que ela foi chamada para participar de um programa de tevê. As duas se dirigem até o armazém local, o Ramos Generales “California”, criado por Don Justo, para ligar para o canal televisivo e saber que tipo de prêmio está em jogo. Pouco depois, Don Justo recebe a informação de que seu cachorro desaparecido, Malacara, foi visto na cidade de San Julián, distante 300 quilômetros dali. Don Justo resolve ir atrás de Malacara, mesmo contra a vontade do filho e da nora. A cidade para a qual ele quer viajar é a mesma que chama a María Flores e a Roberto (Javier Lombardo), um revendedor de produtos para emagrecer que está encantado por uma de suas clientes.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Historias Mínimas): A primeira característica do filme que me chamou a atenção foi a maneira inusitada do diretor, o fantástico porteño Carlos Sorin, nos mostrar uma simples consulta oftalmológica. Apenas aquele começo é um indicativo de que algo bom viria por ali. Depois, achei impressionantes a trilha sonora e a direção de fotografia do filme. Estes dois elementos, por assim dizer, “saltam aos olhos”. Tornam o filme ainda mais belo – isso porque, apenas a sua história e a maneira com que ela foi contada já bastariam para que ele assim fosse classificado. Mas não… para completar o nosso deleite sensorial, ainda somos brindados com uma trilha sonora impecável de Nicolás Sorin, filho do diretor, e com uma direção de fotografia belíssima de Hugo Colace. Se bem que, convenhamos, o cenário da Patagônia argentina, por si só, era quase impossível de não ficar belo em um filme. Mas a escolha certa das lentes e dos ângulos acaba sendo fundamental para capturar aquela beleza natural bruta.
Mas ok, vamos deixar o meu estado maravilhado com estes elementos técnicos para lá. Não demora muito para Historias Mínimas se mostrar mais uma produção ao estilo “histórias-que-se-cruzam-e-se-perdem”. Pois sim… outras produções, inclusive anteriores, como é o caso de Short Cuts e Magnólia, exploravam esta vertente de “colcha-de-retalhos-humanista”. E ainda que eu gosto dos filmes citados, vejo em Historias Mínimas um nível de sensibilidade e, porque não dizer, beleza, mais significativos. Aqui, como em tantos filmes de Robert Altman e de outros diretores, a “gente ordinária” é protagonista. No melhor estilo de “as coisas simples são as que valem mais” – eu avisei que iria resgatar um monte de lugares-comum! -, este filme de Sorin nos mostra que são os pequenos gestos de generosidade, os atos de bravura cotidianos, que realmente fazem a diferença no final das contas.
Algo muito acertado no excelente texto de Pablo Solarz é o fato de que ele não mostra apenas o “lado feliz” da vida. Não. A família de Don Justo, María Flores e todas as pessoas que moram na pequena cidade de Fitz Roy tem uma vida dura, com pouquíssimas perspectivas ou oportunidades no horizonte. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Naquele cenário de cidades isoladas na distante Patagônia, as pessoas vendem seus prêmios e seus cães por 50 pesos porque esse dinheiro lhes faz uma falta brutal. Nesta história, existem pessoas como a encantadora Julia (Julia Solomonoff), que dá uma carona para o “avôzinho” que está andando na beira da estrada, assim como existem aproveitadoras como a Sra. Gladys do programa de televisão, que engana María Flores para conseguir o seu tão sonhado prêmio. A verdade é que estes dois personagens centrais, Don Justo e María Flores, poderiam ter se dado muito mal em suas aventuras. Mas eles tiveram sorte de encontrar pessoas boas pelo caminho – outro que merece ser citado é o personagem de Fermín (Aníbal Maldonado), um chefe-de-obras que deveria ser clonado.
Outro acerto do roteiro é não tornar estas histórias “mínimas” (gigantes, na verdade) um dramalhão. Na verdade, o filme tem muitos momentos de pura comédia – especialmente na saga de Roberto e seu bolo. Pablo Solarz consegue juntar em seu roteiro os variados elementos da vida mesma, ou seja, comédia, drama, uma certa carga de suspense, de tensão e de aventura. Seu texto também trata de família, busca por oportunidades, vulnerabilidade, firmeza de caráter, enfim… poderia passar horas – e parágrafos – falando de cada aspecto do filme. Mas o melhor mesmo é descobrí-lo. Agora, um aparte nesta história: acho incrível como algumas pessoas, no caso específico do filho de Don Justo, podem ser tão egoístas. O que custava à aquele homem ajudar o pai a realizar o desejo/sonho de conseguir o seu antigo cão, companheiro de boa parte de sua vida, de volta? Vaya!! Nestas horas penso que tem pessoas que realmente não percebem o que é importante nesta vida.
Outra reflexão interessante do filme é a de que ninguém, por mais próximo que seja de uma pessoa, pode saber tudo a seu respeito. (SPOILER – não leia… vc já sabe). Os três personagens principais do filme sentem e passam por situações que ninguém, além deles mesmos, pode entender. Don Justo acredita que o acidente que ele causou lhe define mais do que outras ações e gestos conhecidos por seus familiares e amigos. Carregado de culpa, ele acredita que apenas Malacara o conhece de verdade. Roberto, como um bom vendedor, sabe convencer os demais para que eles façam o que ele deseja. Ele veste uma armadura e interpreta um papel em todo e qualquer encontro mas, em uma lanchonete ou em um quarto de hotel, sozinho, ele se revela (para ninguém). María Flores também deixa ser vista pela televisão, “por todo o mundo”, mas apenas ao se olhar no reflexo de um espelhinho é que percebemos o quanto ela é maior do que os minutos que os produtores deste filme deram para ela.
E se Historias Mínimas inteiro é bem escrito e bem dirigido, o final dele é o que nos provoca uma reflexão ainda mais importante, e de forma muito natural. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Não importa se o cachorro encontrado por Don Justo não era o seu Malacara. Não vem ao caso se a idéia de surpresa romântica de Roberto não se concretizou. Pouco importa se o que María Flores traz para casa é um multiprocessador todo “moderno” ou um kit de maquiagens que parece ter sido feito para crianças. O importante em cada uma destas “chegadas” foi o caminho percorrido por seus personagens. Ou, em outras palavras, o que interessa é que Don Justo encontrou o seu perdão; que María Flores realizou o sonho de ser vista por “todo o mundo” pela televisão; e que Roberto conseguiu o seu quinhão de esperança. Humanista, sensível e otimista, Historias Mínimas é um destes filmes que deveria ser obrigatório.
NOTA: 10.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Me desculpem os nossos “hermanos” argentinos, mas é MUITO estranho ouvir a maneira deles falarem. Claro que cada país de língua espanhola tem a sua forma de falar, mas ainda assim… Sinto muito, mas o idioma que eles falam é o “argentino” (sic), porque o castellano, ou seja, o idioma dos colonizadores, aquele que é utilizado na Espanha, é outro. Totalmente. Pessoalmente, gosto mais do castellano do que do espanhol falado pelos argentinos.
Eu gostei de todos os atores do filme, mas tem um que, sem dúvida, merece cada segundo em que ele aparece em cena: Antonio Benedicti. Que monstro, este homem! Sua expressividade, especialmente pelo olhar, é magnífica. De tirar o chapéu, realmente. Outras que conseguem “hipnotizar” enquanto estão em cena são as atrizes Julia Solomonoff e Mariela Díaz.
Na parte técnica do filme, além dos profissionais já citados, vale a pena comentar o trabalho preciso do editor Mohamed Rajid.
Historias Mínimas é um dos grandes êxitos do cinema argentino. Em sua trajetória, este filme de 2002 abocanhou 22 prêmios e foi indicado ainda a outros sete. Entre os prêmios que ganhou, destaque para o de Melhor Filme Estrangeiro em Língua Espanhola dos Prêmios Goya; duas menções especiais e um prêmio especial do júri do Festival Internacional de Cinema de San Sebastián – as maiores premiações da Espanha; e outros dois prêmios para Carlos Sorin no Festival de Havana.
O filme também se saiu muito bem na opinião do público e da crítica. No site IMDb ele conquistou a nota 7,6. O Rotten Tomatoes abriga 23 críticas positivas e apenas duas negativas, o que garante para Historias Mínimas uma aprovação de 92%.
Nas bilheterias Historias Mínimas foi razoavelmente bem: arrecadou pouco mais de 282 mil pesos na Argentina e, nos Estados Unidos, pouco mais de US$ 102 mil.
Um detalhe chamou bastante a minha atenção no filme: os bastidores do programa de TV no qual María Flores vai tentar a sua sorte. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Muito interessante a maneira com que os estereótipos e a imagem distorcida que a personagem, representando todas as espectadoras viciadas nesse tipo de programa – de prêmios, sorteios e desafios – vão sendo tratados pelo filme. María Flores sai maravilhada desta experiência, diferente de nós, que percebemos com um bocado de ironia e cinismo o tipo de ambiente improvisado daquele programa. Uma das partes mais cômicas e irônicas do filme, sem dúvida.
Enquanto as histórias do filme vão se desenvolvendo, fica a impressão que muitas pessoas que aparecem em papéis secundários são “gente comum”. E não é por menos: Sorin realmente utilizou pessoas daquela região que não eram atores para fazer papéis pequenos no filme. O que, evidentemente, só aumenta um pouco mais o tom “realista” da história.
Lançado em 2002, Historias Mínimas é uma co-produção da Argentina e da Espanha.
CONCLUSÃO: Um filme sensível e belo em cada detalhe, que revela histórias “simples” e cotidianas carregadas de humor, drama, desafios e pequenas conquistas. Como a vida mesma, alguns diriam… Produção argentina que deveria constar na lista básica de filmes feitos na América Latina que devem ser vistos. Além de apresentar um roteiro coerente e envolvente, Historias Mínimas revela um cenário lindo: o da parte menos “glamurosa” da Patagônia argentina. Sem esconder a pobreza local e nem os desafios de seus personagens, esta produção acaba sendo realista e, ao mesmo tempo, otimista. No fim das contas, nos deixa o sabor de que a vida é feita de momentos de felicidade, conquistas singelas, em meio a um cotidiano muitas vezes de desafios, tédio e poucas oportunidades. Grande trabalho do diretor Carlos Sorin e do roteirista Pablo Solarz. Mas nada disso funcionaria tão bem sem a interpretação emocionada e hipnotizante de Antonio Benedicti. Para quem gosta de filmes desta estirpe, não haverá erro.
SUGESTÕES DE LEITORES: Eis aqui um filme que foi indicado por um leitor deste blog há séculos atrás e, só agora, consegui assistí-lo. Aliás, comento que neste momento, sem nenhuma “série de filmes” para serem assistido e nem nada, voltarei a consultar a minha lista de produções que foram citadas ou sugeridas aqui no blog e… dá-lhe! Pouco a pouco assistirei a todos. Há muito tempo algumas pessoas com quem eu já troquei idéias sobre cinema – e elas foram/são muitas – haviam me falado de Historias Mínimas. Mas, definitivamente, foi o comentário de Tony Freitas, no dia 28 de julho do ano passado – puf! há quase um ano! – que me fez ir atrás deste filme. Aliás, Tony, você nunca mais voltou aqui no blog. Espero que retornes, inclusive para falar de outros filmes. Na época do teu comentário, me perguntavas porque não era possível encontrar Historias Mínimas no Brasil. Pois, boa pergunta. Eu consegui assistir a este filme através de um amigo argentino – que há tempos tinha feito a propaganda desta produção. Mas reparei que realmente ele não está à venda no Brasil. Se não tens um amigo/a argentino/a para te emprestar o filme, a única maneira que eu vejo é importá-lo… se queres mesmo assistí-lo. Na Amazon.com, por exemplo, ele está sendo vendido entre US$ 14 e US$ 22,56. É uma saída… mas se optares por importá-lo, fica de olho na região que corresponde ao DVD.
5 respostas em “Historias Mínimas – Histórias Mínimas”
[…] Mas, nem por isso, eles são produções parecidas. Historias Mínimas, o filme recentemente comentado, narra vidas simples, de pessoas que moram no interior da Patagônia argentina e que tem a […]
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Acabei de assistir esse filme para uma prova oral de Espanhol da minha faculdade. Ele é muito bom mesmo! Parabéns pela crítica, e valeu professora Ana Lúcia Esteves!!!
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Oi Eva!
Antes de mais nada, seja bem-vinda por aqui.
Parabéns mesmo para a tua professora, que passou este filme para a tua turma. Bom gosto o dela. 🙂
Fico feliz que tenhas gostado da crítica.
Obrigada pela tua visita e pelo teu comentário. E volte por aqui mais vezes, inclusive para falar de outros filmes – há vários do cinema espanhol e latino no blog, dá uma procurada.
Abraços e inté!
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Acabei de assistir a “Histórias Mínimas” e me remeti às críticas sobre o filme, chegando a seu blog. Parabéns pelo conteúdo! Visitarei mais vezes. O filme, realmente, é muito bonito e singelo. Abraço e obrigada pela leitura de seu texto. Olímpia.
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Ale! Acabei de ver esse filme, que me foi indicado pelo Netflix (santo Netflix!) e fui buscar críticas sobre. Encontrei a tua no Google 🙂 Muito boa tua análise, concordo contigo, esse filme é muito bonito mesmo, muito sensível. Foi um prazer ver o filme e, agora, ler teu comentário. Beijos!
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